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UNESCO: uma visão holística da educação (Paris 1998)

2 CONDICIONALISMOS POLÍTICOS E IDEOLÓGICOS DA DESVALORIZAÇÃO DAS

2.3 Condicionalismos políticos da desvalorização das Humanidades

2.3.1 UNESCO: uma visão holística da educação (Paris 1998)

Tomamos como ponto de partida desta reflexão dois documentos elaborados no âmbito da conferência intitulada The World Conference on Higher Education in the Twenty-First

Century: Vision and Action, organizada pela UNESCO e realizada em Paris em 1998 (5-9 de

Outubro). Antes de mais, uma pequena introdução à UNESCO (feita a partir da informação contida no respectivo site57), para assim avivarmos o contexto desta conferência.

A UNESCO - organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, foi criada no decurso de uma Assembleia Geral da ONU, a 16 de Novembro de 1945 (embora a sua constituição tenha sido assinada um ano depois), com o intuito de consolidar e dar resposta à crença de 37 países, para os quais os acordos políticos e económicos não seriam suficientes para construir uma paz duradoura. Em poucas décadas, a Humanidade assistira a duas guerras mundiais e estava claro que a paz “must be established on the basis of humanity’s moral and intellectual solidarity.” Para além da construção da paz, a UNESCO tem por missão contribuir para a erradicação da pobreza, para o desenvolvimento duradouro e para o diálogo intercultural. A educação é uma das principais atividades a concorrerem para a concretização destes objetivos.

A UNESCO está comprometida com uma visão holística da educação, estendendo-se a sua ação desde o nível pré-escolar ao nível superior (higher education). Este último é promovido tendo por base uma conceção de sociedade crescentemente enraizada no conhecimento (increasingly knowledge-based society), e é considerado como um fator-chave

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no desenvolvimento social, económico e cultural, assim como um promotor dos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, da democracia, da paz e da justiça.

Esta definição abrangente de educação defendida pela UNESCO, coerente com o facto de a UNESCO não ter uma missão exclusivamente económica, bem pelo contrário, aponta para a pouca probabilidade de se encontrarem nas recomendações políticas elaboradas pela UNESCO motivos para desencadear, ou continuar, um processo de desvalorização das Humanidades.

O acontecimento The World Conference on Higher Education in the Twenty-First

Century: Vision and Action58 parece ter reunido todas as condições para se tornar um

importante marco histórico, uma provável influência, expectavelmente forte, no rumo que o ensino superior tomou desde aí e a nível internacional. Essas condições favoráveis a um forte impacto, percecionadas no decurso da consulta do site da UNESCO, são as seguintes:

- a importância e o alcance do tema;

- o elevado número de países participantes (180);

- a diversidade de atores participantes: “national policy-makers, institutional leaders, the professoriate and researchers, the student community, the economic and professional sectors, IGOs, NGOs, agencies of the UN system and numerous groups in civil society”; - a dimensão do investimento em reflexão, feito para a sua preparação: várias conferências

regionais preparatórias a antecederam, entre Novembro de 1996 e Março de 199859, nas quais se confirmou que “we are now facing global problems that call for solutions to be applied worldwide, even though in every region there are variations in the economic, social, cultural and political context”; e

- as posições formalmente acordadas nos documentos finais da conferência, entre todos os stakeholders, relativamente às ações necessárias para a reforma do ensino superior no séc. XXI60. Os documentos são: World Declaration on Higher Education for the Twenty-First

Century: Vision and Action e Framework for Priority Action for Change and Development of Higher Education.

58 Informação disponível em http://www.unesco.org/new/en/education/themes/strengthening-education- systems/higher-education/reform-and-innovation/1998-world-conference/, site consultado a 17 de Outubro de 2014.

59 O calendário com as preparações e a mobilização feitas entre 1996 e 1998 está disponível em http://www.unesco.org/education/educprog/wche/eng.htm.

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O teor dos anseios expressos e das recomendações constantes nestes dois documentos finais abrem um espaço inegável às Humanidades. As primeiras palavras do preâmbulo da Declaração despertam logo a atenção por causa do modo abrangente e nobre como se fala do ensino superior.

On the eve of a new century, there is an unprecedented demand for and a great diversification in higher education, as well as an increased awareness of its vital importance for sociocultural and economic development, and for building the future, for which the younger generations will need to be equipped with new skills, knowledge and ideals (UNESCO World Conference on Higher Education, 1998).

O conhecimento da realidade, relativo aos riscos e oportunidades existentes – então – no ensino superior, está bem patente no documento, sendo natural essa clarividência após uma preparação tão esmerada da conferência. Quanto aos riscos é dito:

Everywhere higher education is faced with great challenges and difficulties related to financing, equity of conditions at access into and during the course of studies, improved staff development, skills-based training, enhancement and preservation of quality in teaching, research and services, relevance of programmes, employability of graduates, establishment of efficient co-operation agreements and equitable access to the benefits of international co-operation (UNESCO World Conference on Higher Education, 1998).

Quanto às oportunidades é dito:

higher education is being challenged by new opportunities relating to technologies that are improving the ways in which knowledge can be produced, managed, disseminated, accessed and controlled (UNESCO World Conference in Higher Education, 1998).

É feita também toda uma descrição da forma como o ensino superior se desenvolveu na segunda metade do século XX. Só dois valores chegam para dar disso um testemunho: a nível mundial passou-se de 13 milhões de estudantes em 1960 para 82 milhões em 1995. Esta evolução positiva é, no entanto, marcada por diversos aspectos negativos que não evitaram o reforço das desigualdades. Mesmo assim, o impacto positivo que o ensino superior teve, e pode ter na sociedade, é sublinhado.

Higher education has given ample proof of its viability over the centuries and of its ability to change and to induce change and progress in society … society has become increasingly knowledge-based so that higher learning and research now act as essential components of cultural,

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socio-economic and environmentally sustainable development of individuals, communities and nations (UNESCO World Conference in Higher Education, 1998).

A forma como se conclui a abordagem sobre o impacto positivo da universidade na sociedade, e a necessidade da sua reforma, apela a uma forma de pensar a realidade contrária ao crivo económico aplicado às Humanidades, antes e depois de 1998.

Higher education itself is confronted therefore with formidable challenges and must proceed to the most radical change and renewal it has ever been required to undertaken, so that our society, which is currently undergoing a profound crisis of values, can transcend mere economic considerations and incorporate deeper dimensions of morality and spirituality (UNESCO World Conference in Higher Education, 1998).

Também nas recomendações políticas resultantes transparece um espaço para as Humanidades. De uma forma muito sintética, podem-se enumerar as principais recomendações:

- as missões e os valores nucleares do ensino superior, em particular a missão de contribuir para o desenvolvimento sustentável e o progresso da sociedade como um todo, devem ser preservados, reforçados e expandidos;

- a investigação deve ser melhorada em todas as disciplinas, incluindo as ciências sociais e humanas, a educação (incluindo a superior), as engenharias, as ciências naturais, a matemática, a informática e as artes, de acordo com as estruturas nacionais, regionais e internacionais das políticas de investigação e desenvolvimento;

- a relevância da investigação deve ter como fundamento as orientações de longo termo relativas aos objetivos e às necessidades sociais, sempre respeitando as diferentes culturas e a proteção do ambiente;

- o ensino superior deve reforçar o seu papel de serviço à sociedade, especialmente em atividades que tenham por finalidade eliminar a pobreza, a intolerância, a violência, a iliteracia, a fome, a degradação ambiental e as doenças, principalmente através de abordagens inter e transdisciplinares a essas questões problemáticas;

- o ensino superior deve aspirar à criação de uma nova sociedade – não-violenta e não- exploratória, constituída por indivíduos altamente educados, motivados e integrados, inspirados pelo amor à humanidade e guiados pela sabedoria.

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Posto isto, não nos parece infundamentado rematar estas considerações constatando que nestas ideias gerais que a UNESCO apadrinha, não surgem motivos de preocupação relativamente a uma marginalização das Humanidades. O carácter multifacetado da missão da UNESCO como que protege a educação de uma abordagem excessivamente instrumental – ao contrário do que veremos acontecer quer com a OCDE quer com o World Bank. A UNESCO contextualiza a educação (abrangendo o ensino superior) numa sociedade crescentemente enraizada no conhecimento, o qual é um componente essencial do desenvolvimento cultural, sócio-económico e ambiental sustentável, de indivíduos, comunidades e nações (em conformidade com as citações feitas).

Tendo em conta o processo de desvalorização a que as Humanidades estão sujeitas, levantamos como hipótese que esta conferência, afinal, não teve a influência desejada e esperada pela UNESCO, pelo menos no que diz respeito à valorização das Humanidades. Resta saber como é que esta influência foi neutralizada.