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erta tarde, em uma cidade do interior de São Paulo, ouviu-se um som em forma de interrogação. Era uma pesquisadora cheia de questio- namentos diante de algo que havia criado; refletia e seu pensamento ultrapassava apenas o pensar; ela confabulava consigo mesma oralizando suas questões:

— Como saber se uma história criada por um grupo de pessoas que parte de um jogo criado por mim traz aportes para o conhecimento? Como sentir a rele- vância desse jogo jogado através de uma história criada? Como sentir a arte que está presente nesse jogo? Elas podem nos influenciar? Elas nos divertem? Nos proporcionam a construção?

Ao mesmo tempo, com a certeza de que o que havia criado era eficaz, ela respondia:

— Sim! Sim! Histórias não se findam! Histórias prosseguem! Histórias passam por novas leituras.

E com essa convicção exclama dizendo:

— Histórias são contadas todos os dias! Histórias podem ser criadas partindo de um jogo poético composto de ações que permite o criar, o recriar, o contar; en- volve uma ação que leva o ser humano a um aclarar de suas potências originais.

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im, a leitura é de extrema relevância na vida do ser humano, e não só a leitura de livros, mas de obras, músicas, danças, filmes, entre outros. O trabalho com a leitura permite um (re)pensar nossa sociedade, o contexto do qual estamos inseridos, e pode nos levar à criticidade, isto signi- fica, nos tornarmos capazes de sabermos nos colocar no mundo sem sermos manipulados por outros; entendermos que somos seres dotados de saber e capazes de dialogar e opinar.

O que acontece é que, em muitas instituições, as ações que envolvem a leitura crítica têm sido esquecidas, muitas vezes restrita a compreensão das palavras dos autores, ou dando primazia à tecnologia, não que essa seja ruim, pelo contrário, é um rico instrumento que pode contribuir no processo de en- sino-aprendizagem. Entretanto, não podemos deixar de valorizar as páginas que construíram nossa história iniciada com o papiro9, um tipo de papel usado

para suporte da escrita da antiguidade, chegando às ricas páginas dos livros que utilizamos nos dias de hoje. Esse valorizar tem grande significado quando entendemos a grande contribuição que o livro tem em nossa formação e em nossa vida em sociedade.

Se olharmos ao nosso redor, tudo envolve a leitura e a escrita, portanto a valorização desses tem papel fundamental tanto no contexto em sociedade quanto e, principalmente, no processo de formação do professor. Também desenvolvemos nossa oralidade, pois quanto mais lemos, mais somos capa- citados para argumentarmos, para nos expressar, para criar...

Como vimos no ato da criação através do jogo DP, a produção textual foi colocada em prática e faz-se necessária à compreensão da diferenciação do ato de dizer e contar, pois se temos nossa palavra, devemos entender essa diferença.

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É – já o disse – formar leitores que saberão escolher o ma- terial escrito adequado para buscar a solução de proble- mas que devem enfrentar e não alunos capazes apenas de oralizar um texto selecionado por outro. É formar seres críticos, capazes de ler entrelinhas e de assumir uma posi- ção própria frente à mantida, explícita ou implicitamente, pelos autores dos textos com os quais interagem, em vez de persistir em formar indivíduos dependentes da letra do texto e da autoridade dos outros. (LERNER, 2002, p. 27)

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Ao realizarmos a leitura de uma história acionamos vários conhecimen- tos, vivências que corroboram com o que estamos lendo. Ao preparar uma história para ser contada, faz-se necessário compreendê-la e, consequen- temente, envolver-se para que possamos colocar em prática a contação de histórias e não apenas o dizer sobre uma história. O dizer, segundo Bajard (2014, p. 113), “inclui a recitação, a fidelidade ao texto constituído apenas pela língua escrita”, dito de outro modo, aquele que diz uma história se limita ao texto que está em suas mãos deixando de proporcionar o encantamento que a narrativa pode trazer; é ficar “preso” na leitura que lê palavras e não as expressa, mesmo que estejamos lendo um livro, pois estar com o livro nas mãos também pode incentivar nosso ouvinte a ler.

O problema se instala quando, nós professores, pedimos para que nos- sos alunos leiam uma história ou um livro para avaliar. Há muitas crianças e adultos que leem muito bem, mas não compreendem o que leram. Infelizmen- te, nosso país ainda está caminhando no quesito leitura, mas é certo que em muitas escolas, quando o aluno domina o dizer, o educador acredita que ele compreendeu sua leitura. “[...] sempre que a ‘leitura em voz alta’ é identificada à leitura, ela usurpa o papel desta última, fazendo desaparecer a atividade de leitura como construção de sentido” (BAJARD, 2014, p.117), ou seja, há o esquecimento de que se faz necessário promover ações em que os leitores estejam inseridos em situações de interpretação de texto. Ainda segundo o autor, “[...] como se espreme uma fruta para extrair seu suco, a atividade bucal permite extrair o sentido. A voz alta liberada pela decifração se torna necessária à leitura”, diz Bajard (2014, p. 37 - grifos do autor). Dito de outro modo, não se pode confundir a leitura em voz alta com compreensão daquilo que se leu; para poder dizer precisa compreender.

Aludindo sobre o contar, recorremos novamente ao autor citado quan- do se refere a uma obra teatral antiga onde seu intérprete tem que realizar transposições, ou seja, adaptações sem que o sentido da peça se perca. É como ter a letra de uma canção, mas sem melodia e, quando vamos ao pentagrama da partitura, colocamos a clave de sol e iniciamos a construção das notas musicais, teremos, ao final, uma melodia que trará a beleza e o encantamento que sua letra traz. Ao contar histórias “o texto é reconstituído através de contribuições da língua oral, [...] da margem à espontaneidade, uma vez que libera as mãos do livro, o olhar da leitura e as palavras do texto preestabelecido.” (BAJARD, 2014, p. 113)

O contar é interpretar, é emocionar, é pensar nas vozes, é refletir sobre o espaço que será contada a história, é se preparar, é encantar, é criar.

O ato de contar histórias enquanto expressão artística é um ato de criação. Sabe-se, por exemplo, que a cada vez que narramos uma mesma história, mesmo que o texto físico tenha sido memorizado e narrado integralmente, executa- mos um evento único e original. Sendo assim, ao se recontar uma mesma história, ainda que o narrador e os ouvintes sejam os mesmos, as suas experiências de vida e as suas reações diante dela serão outras. (MORAES, 2012, p. 17-18).

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Esse reconto possibilita colocar em prática a criatividade e imaginação existentes dentro de nós. É realizar um movimento que consiste em trazer os conhecimentos prévios à tona; conhecimentos de mundo que são vivenciados todos os dias. O reconto é uma representação pessoal da história. Na esco- la, quando proporcionamos o reconto, damos a possibilidade de a criança exercer a sua autonomia. Mas é necessário o professor dar repertório para esses recontos, ou seja, ser leitor, ler para as crianças e colocar em prática essa ação.

Aquele que conta a história delineia a estrutura de sua criação. Concor- dando com Moraes (2012), o narrador deve conhecer a história para que pos- sa expressar, do início ao fim, com propriedade e segurança, a mensagem da narrativa; deve saber resumir, pois assim conseguirá interagir com seu ouvinte, saberá ir e vir em qualquer momento. Ele traz, através do olhar, do corpo, da voz as revelações de cada personagem. E como ele pode ser formado?

Contar histórias em qualquer situação pode ser uma estratégia para que haja um maior envolvimento entre aquele que conta e o que ouve para que, juntos, possam estabelecer relações de amizade, aprendizado. Além de possibilitar o trabalho para resolução de conflitos, a contação de histórias permite o desenvolvimento do raciocínio, da cultura, da interação, do diálogo, entre tantos outros aspectos, “de expressão e de verbalização”. (MAURÍCIO, 2016, p.150)

Contar histórias é uma ação que deveria estar presente em qualquer contexto!

Como um filtro de análise, evidencio as possibilidades de preparação para a contação de histórias pautada em Sisto (2012) quando diz que essa elaboração para a ação de contar histórias envolve emoção, texto, adequa- ção, corpo, voz, olhar, espontaneidade/naturalidade, ritmo, clima, memória, credibilidade, pausas, silêncios e o elemento estético. De maneira resumida, segue cada um desses tópicos.

Emoção: é através dela que se desenvolvem os sentimentos contidos na história, não se resume ao choro. Se a história moveu o contador, certa- mente adentrará no público.

Texto: a leitura do texto deve ser a condição necessária para a desen- voltura no ato da contação, pois é o apropriar-se do texto que dá a seguran- ça necessária para estabelecer o desenvolvimento dos acontecimentos da narrativa, ou seja, a história deve apresentar sua estrutura no momento da narrativa com a introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho.

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Corpo: há expressões do corpo como possibilidades ilustrativas, en- fáticas e sintéticas. A ilustrativa consiste em gestos mais previsíveis, ou seja, como exemplificado pelo autor, “[...] dar forma a códigos amplamente difun- didos e aceitos para expressar ideias gerais, como dormir, em que apoiamos a face sobre a palma da mão, [...] ilustrativo faz surgir um jargão gestual que dá lugar a signos padronizados.” (SISTO, 2012, p. 50). Os gestos enfáticos re- forçam algo dito, é sinônimo de força, para chamar a atenção, por exemplo, quando queremos expressar que algo é grande. O sintético é o simbólico, de valor pessoal; um exemplo que o autor nos traz é “alisar a perna para signifi- car amor, em vez de colocar a mão em cima do coração.” (ibidem, p. 51).

Clima: cada história tem seu clima para o desenrolar da narrativa. “A manipulação dos climas de uma história faz parte da perspicácia do conta- dor de antecipar que efeitos ele quer atingir, [... ] em sua plateia.” (p. 52)

Pausas, silêncio e voz: são momentos de intensificação dos efeitos que determinado momento da narrativa pede, é impactar. É possibilitar a reflexão, permitir a construção da imagem mental. A voz é um prolongamento do cor- po; com ela “se faz coisas que, a princípio, estariam na esfera do corpo: tate- ar, acariciar, afagar, socar, etc.” (p. 51). A voz é que traz a beleza no momento da contação, que faz com que o ouvinte imagine o animal, ou uma pessoa triste, alegre enquanto a história é narrada. Ela inclui timbre, intensidade.

Interação: elemento que visa à participação coletiva do grupo através do diálogo. Oliveira (1992, p. 33), diz que “a aprendizagem desperta proces- sos internos de desenvolvimento que só podem ocorrer quando o indivíduo interage com outras pessoas.” Assim, podendo haver a construção conjunta entre os sujeitos e a realização do aprendizado.

Gênero textual: através dele pode-se perceber o conhecimento referen- te aos vários gêneros existentes, pois “gêneros são “formas de ação social”, pois abrangem uma categoria cultural; um esquema cognitivo; [...] uma estru- tura textual; uma forma de organização social e uma ação retórica.” (MARCUS- CHI, 2008, p. 149).

Imagens: através das imagens podemos estabelecer comunicação; po- demos realizar releituras e criar partindo da efígie que estamos observando. Possibilitam o criar e recriar.

Nas palavras de Regina Machado (2004), essas possibilidades se re- sumem à disposição interna de observação, percepção, curiosidade, imagens internas vivenciadas e externadas pelo contador, entre outros aspectos ob- servados como as narrativas e a linguagem para o reconto apresentado.

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ara proceder às análises das histórias criadas (apêndices 1, 2 e 3) e encenadas dos grupos participantes da pesquisa trago o filtro de análise citado anteriormente, baseado em Sisto (2012). As criações serão identificadas como U1 para os participantes do terceiro semestre do Centro Universitário do interior de São Paulo; U2 para os participantes do terceiro semestre da Universidade da capital São Paulo e U3 para os para os participantes do primeiro semestre do mesmo Centro Universitário do interior de São Paulo.

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Aurora, por que chora? Achou um passarinho branco que foi embora. (U2)

A emoção apareceu em todas as narrativas. Casos de amor, de acolhi- mento; histórias que trouxeram alegria, medo, tristeza, alívio, adoção, inveja, raiva, entre outras.

Nas apresentações, no que se refere à emoção, alguns grupos a trou- xeram também em suas apresentações das histórias criadas.

Na U1, os grupos participantes pareciam vivenciar o momento e, por mais que a maioria optou pela narrativa realizada por uma pessoa, a voz daquela que narrava levava o grupo à encenação com mais intensidade, vivenciando a história.

A U2 realizou apresentações que envolveram a todos os participantes sem se limitarem a narração de um integrante. Trouxeram a emoção em forma de dança, teatro, música, poesia, entre outras formas de expressão à história criada.

Na U3, as apresentações foram mais tímidas e, acredito que pelo fato de estarem no primeiro semestre, a emoção não ficou em evidência na maio- ria dos grupos.

A disposição dos grupos foi intensa, mas pude perceber que a timidez de alguns os impediu de pensar na história como uma apresentação ence- nada, levando-os a apenas ler. Nesse sentido me remeto a Elie Bajar (2014) quando diz que quando apenas lemos um texto não conseguimos envolver o ouvinte, ficamos presos na leitura.

SOBRE

A EMOÇÃO

JOGO

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As histórias criadas, em sua maioria, tanto da U1 e U2 quanto na U3 trouxeram a realidade da vida cotidiana.

Na U1, o que prevaleceu foram textos que trouxeram temas como o amor, preconceito, encontro, racismo, compaixão; a U2 abordou em suas criações palavras como medo, tristeza, perda, esperança e, na U3 falaram sobre ami- zade, arte, imaginação, encantamento.

A maioria das histórias trouxe a estrutura da narrativa contendo intro- dução, desenvolvimento, clímax e desfecho, mas percebi que uma história foi interrompida e não trouxe seu desfecho; penso que o grupo pode ter esque- cido de entregar a página que completava a história.

Lembro-me das palavras de Paulo Freire (1989, p. 9), quando diz que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”, percebo a importância das experiências vividas, como essas contribuem para o processo imaginativo. Es- ses elementos que ficam na memória afetiva, conhecimentos adquiridos dian- te de experiências vividas, que no exercício necessário à criação, são como reservas de experiências acumuladas, possibilitam a criação, a visualização, à atividade imaginativa, que devem ser trabalhadas, mediadas.

SOBRE OS