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CAPÍTULO 3 – O ESPAÇO NACIONAL ASABRANQUENSE DE ROQUE

3.3. Roque Santeiro entre o arcaico e o moderno 112.

A abertura da novela Roque Santeiro, em 1985, pode nos fornecer elementos relevantes para entendermos como a telenovela busca representar o espaço nacional, a Nação. A música, Santa Fé, composta por Moraes Moreira exclusivamente para a abertura faz referência explícita a religiosidade, ao Cinema Novo e a dualidade bem-mal: “Deus e o Diabo na terra/ Sem guarda-chuva/ Sem bandeira/ Bem ou mal/ Ninguém destrói essa guerra/ Plantando brisa e colhendo vendaval”, diz a letra, expressando a ambiguidade tão essencial em Roque Santeiro, onde Deus e o Diabo travam uma guerra, desprotegidos de bandeira ou guarda-chuva, na terra onde o bem e o mal confundem-se onde, apesar da fé no milagre, a tristeza convive com a alegria: “Não sou nenhum São Tomé/ O que eu não vejo eu ainda levo fé/ Eu quero a felicidade, mas a tristeza anda pegando no meu pé”.

As imagens surgem em fragmentos, os planos fechados abrem-se revelando cenas de teor surrealista. Em plano fechado, uma fila de trabalhadores do campo carregam instrumentos de trabalho, ao abrir o plano, estão caminhando sobre uma grande folha, assemelhando-se a formigas. O nome Roque Santeiro, aparece em cor verde sob uma auréola angelical brilhante. Um avião sobrevoa um céu de nuvens esbranquiçadas, o que depois se apresenta como a cabeça de um crocodilo. Um trator agrícola trabalha trafegando por cima de enormes espigas de milho, acompanhado por duas senhoras em vestidos coloridos. Uma locomotiva passa sob o que parece ser a dobra final de um túnel, no que depois, revela-se ser uma flor. Um homem anda em zigue-zague numa moto por cima de alguns cocos secos. Outro, camponês, guia um carro de bois sobre uma penca de bananas-verdes. Um jangadeiro manipula a vela da embarcação, mas navega sobre as asas de uma borboleta azul. Por último, um congestionamento de automóveis acontece em cima de uma vitória-régia.

A abertura de Roque Santeiro, síntese audiovisual da telenovela elaborada pelo designer alemão Hans Donner, pode ser assim entendida como uma colagem de elementos advindos de domínios diferentes, delineada por uma estética surrealista. O mundo rural, dos

lavradores que retornam do trabalho, é inscrito na natureza tropical, assim como a locomotiva que passa pelo túnel das dobras da flor, uma mistura imagética que realiza a bricolagem da técnica com o primitivo da natureza formando um painel de conteúdo heterogêneo. O congestionamento de automóveis com suas buzinas e sons de motores, toma a mesma forma circular da vitória-régia estando por cima dela, são imagens que bricolam o arcaico-rural com o moderno e/ou urbano, fusionando natureza homem e artefatos modernos, alegorias surrealistas, que se aproximam da estética “tropicalista”.

Nesse sentido, faz-se necessário retomar aqui alguns traços do ideário tropicalista que não apenas podem ser visualizados na abertura como, de certa forma, aparecem em algumas cenas e personagens da telenovela. É como se Dias Gomes, ao produzir a telenovela, levasse para dentro de Roque Santeiro o universo do nacional-popular que se configurou como um projeto no período pré-1964, adicionando o debate implementado pelo manifesto tropicalista na segunda metade da década de 1960, a partir da justaposição entre o arcaico e o moderno. O espaço nacional, representado por Asa Branca, pode assim ser compreendido como um painel de imagens e discursos em que o moderno continuamente entra em confronto com o mundo arcaico e rural, onde valores liberalizantes e conservadores atravessam as personagens as vezes desnorteando-as existencialmente, emoldurado pelo tom carnavalesco risonho e sarcástico, todos elementos que também constituem o universo tropicalista.

Surgido no contexto do final da década de 1960, o tropicalismo é fruto de uma conjuntura política e cultural marcada pelos debates maniqueístas em torno de concepções culturais ainda advindas do populismo nacionalista, que viam a cultura de massa e a cultura pop em ascensão, como ameaças estrangeiras a autêntica cultura nacional. Ora, o movimento iniciado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, provoca fraturas no interior deste debate que envolvia a música popular brasileira, expondo e assumindo o caráter contraditório e multifacetado da sociedade complexa que se desenvolvia no rastro da indústria cultural, no país, provocando no público o estranhamento e a necessidade de uma nova sensibilidade para compreensão do que estava sendo proposto (FAVARETTO, 2000, p. 20)

As músicas tropicalistas trazem a ambiguidade e a indefinição como contraponto à sensibilidade nacional-popular, que buscava captar a identidade nacional em uma suposta totalidade, através de uma visada ideológica essencialista e mistificadora. É no sentido de desmitificar, que músicas como Alegria Alegria, com suas imagens caóticas em forma de colagem, coloca em cheque e desconstrói a formação discursiva nacional-popular, ao colocar em prática musical o caráter antropofágico, que deglutia matrizes culturais diversas, para

então obter o que Favaretto denominou de “suma cultural” (FAVARETTO, 2000, p. 26), quando elementos contraditórios como o arcaico-moderno, local-universal são “devorados”, misturados e depois expressados em uma operação sintética, que pretende ser uma súmula alegórica da realidade nacional, dizendo e fazendo ver o que seria a face alerquinal, carnavalesca da nação brasileira.

Essa operação antropofágica que o tropicalismo realizou, consistiu numa espécie de atualização do modernismo, movimento comumente datado da realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922, que teve como destaques artistas e escritores como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, com influência em diferentes campos culturais como a literatura, a pintura e arquitetura. Assim como no período em que surge o tropicalismo, o modernismo como movimento cultural dialoga com transformações sociais profundas referentes ao processo de industrialização e urbanização ocorridas durante as primeiras décadas do século XX no Brasil, trazendo “uma consciência histórica que até então se encontrava de maneira esparsa na sociedade”. (ORTIZ, 2012, p. 40), tornando-se assim o ponto de referência de uma nova forma de se pensar a cultura nacional.

Foi imerso nessas transformações que o movimento modernista colocou em evidência o experimentalismo que o caracterizou em suas produções culturais. O Manifesto Pau-Brasil, redigido por Oswald de Andrade, é representante do que seria uma operação antropofágica do modernismo em que integrava aspectos culturais – étnicos, linguísticos, culturais, folclóricos, artísticos e históricos – realocando a “originalidade nativa” a uma perspectiva moderna que misturava o primitivismo nativo às “técnicas de vanguarda e industrialização”, paralelamente, criticando a tradição “de ser douto”, dos bacharéis como Ruy Barbosa de “Falar difícil”, aspecto que podemos aproximar do sentido crítico postulado pelo movimento tropicalista surgido décadas depois, também problematizador de uma tradição que o precedeu, que junta- se a outras convergências entre os movimentos que Favaretto assim definiu:

Representam os momentos terminais de inserção dos imperativos básicos da arte moderna: “experimentalismo (ênfase no processo produtivo, espírito de paródia, alegorização, visão grotesca e carnavalesca do mundo); conflito entre a exigência da nacionalização estética e o cosmopolitismo da prática artística; explicitação da situação problemática da arte” (FAVARETTO, 2000, p. 58).

Dessa forma, o tropicalismo reinterpreta e traduz a antropofagia do modernismo no contexto de transformações impostos pelo avanço da indústria cultural como polo agregador da sociedade brasileira, incorporando elementos da cultura pop no intuito de “produzir efeitos artísticos de crítica à música brasileira” (FAVARETTO, 2000, p. 46), ao mesmo tempo em que realizavam a justaposição entre o arcaico e o moderno, em composições que traziam o

folclore, ritmos populares, cancioneiro nordestino e as informações estrangeiras do rock in roll dos Beatles e The Rolling Stones, formando um sincretismo musical explosivo.

Podemos perceber mais claramente a justaposição do arcaico com o moderno através da música Tropicália, composta por Caetano Veloso, em que uma série de imagens em estilhaços montam um painel que aglutina diversas matrizes de identidade nacional: “Eu organizo o movimento/ Eu oriento o carnaval/ Eu inauguro o monumento/ No planalto central do país”. Traz a carnavalização como constituinte da brasilidade e a referência explícita a Nação, ao centro do Brasil. O moderno se materializa no monumento composto de “papel crepon e prata” e logo depois imagens que remetem a natureza e ao sertão em que se misturam referências a Catulo da Paixão Cearense e ao escritor José de Alencar: “Os olhos verdes da mulata/ A cabeleira esconde/ Atrás da verde mata/ O luar do sertão”, logo após, o monumento moderno é colocado em contraposição a aspectos do subdesenvolvimento: “O monumento não tem porta/ A entrada é uma rua antiga/ Estreita e torta/ E no joelho uma criança/ Sorridente feia e morta/ estende a mão”.

Podemos aproximar a operação que o tropicalismo faz ao trazer a ambiguidade para o debate em torno da identidade nacional, com o que Canclini denominou “culturas híbridas”. O autor em sua análise incide sobre temas duais tais como tradição-modernidade, norte-sul, local global onde busca perceber, numa perspectiva “otimista”, os processos socioculturais de hibridação, ocorridos a partir do século XX, quando estruturas antes estabelecidas separadamente combinam-se para gerar outras estruturas, objetos e práticas, englobando não só as artes, como também, a vida cotidiana e o desenvolvimento tecnológico.

Portanto, para Canclini (2003), existe um certo risco em delimitar a identidade nacional dentro de um quadro inflexível de línguas, tradições e condutas estereotipadas, pois esse processo de enrijecimento esconde as inúmeras influências e matrizes culturais que historicamente deram forma a determinadas práticas culturais, assim, camuflando as hibridações e rejeitando “maneiras heterodoxas de falar a língua, fazer música ou interpretar tradições”. Ora, para o autor, no contexto da América Latina, negativar a hibridação, engessar a cultura, seria ir contra a complexidade que foi nossa própria formação enquanto povo:

Por ser a pátria do pastiche e do bricolage, onde se encontram muitas épocas e estéticas, teríamos o orgulho de ser pós-modernos há séculos e de um modo singular. Nem o paradigma da imitação, nem o da originalidade, nem a teoria da dependência, nem a que preguiçosamente quer nos explicar pelo real maravilhoso ou pelo surrealismo latino-americano, conseguem dar conta de nossas culturas híbridas (CANCLINI, 2003, p. 23)

É a partir dessas análises, quando vislumbramos a justaposição entre o arcaico e o moderno, a carnavalização através do riso, da ambiguidade tropicalista e o hibridismo entre aspectos que remetem a tradição e a modernidade, que podemos aproximar a telenovela Roque Santeiro dos postulados trazidos pelo tropicalismo e a “hibridação” constatada por Canclini. O Jornal do Brasil, quando Roque Santeiro já alcançava altos índices de audiência, publicou um debate em que se buscava compreender o motivo do sucesso da telenovela. Entre os debatedores estavam o compositor Geraldinho Carneiro e o diretor de cinema Luiz Carlos Barreto que em certo momento indagou: “Você não sente que visualmente a novela tem um tom néon?”. Quando o compositor Geraldinho respondeu: “É um néon misturado com jegue”101. Esse diálogo captou o sentido que aqui buscamos exprimir sobre Roque Santeiro: a justaposição do animal de carga, arcaico, rural, com o néon das ruas modernas, das casas noturnas, a exemplo da Boate Sexus. Asa Branca é o espaço nacional entre o “néon” e o “jegue”.

O anúncio de que, na cidade de Asa Branca, estava prestes a se inaugurar uma boate, causou comoção nos setores mais conservadores da sociedade asabranquense, cujos principais representantes são Dona Pombinha, Mocinha e o padre Hipólito, aliados ao professor Astromar. A indignação das beatas e do padre recrudesceu quando souberam que a inauguração do local seria no mesmo dia em que seria inaugurada a estátua de Roque Santeiro: “Nem ao menos respeitou a data!”, exclama dona Pombinha. “Parece ser de propósito para o escândalo ser ainda maior”, afirma o padre. “Escândalo? Isso é quase uma heresia. Uma boate de strip- tease a duzentos metros do local sagrado”, define Mocinha. A abertura teria sido um pedido de Sinhôzinho Malta: “e um pedido de Sinhôzinho Malta é uma ordem, ninguém tem coragem de dizer não”.

A reação conservadora das beatas e do padre, revela o arcaísmo moral que compõe a tipicidade desses personagens que, alimentados pelo viés do fanatismo religioso, passam a enxergar como ameaça que deve ser confrontada, valores mais liberalizantes estranhos a sociedade a que representam. Dessa forma, em Asa Branca, o arcaico e o moderno entram em conflito também no que diz respeito a valores e visões de mundo, como explicitado no sermão proferido pelo padre Hipólito, durante o segundo capítulo, em que faz uma referência explicita a abertura da boate como um corpo ameaçador aos valores estabelecidos na pequena cidade:

101 Roque Santeiro em questão: o fenômeno cultural que reflete um certo Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Caderno B. 20. Out. 1985, p. 6

E eu quis lembrar estas palavras, neste momento, porque como todos sabem anuncia-se nessa cidade para depois de amanhã, a abertura de uma casa noturna, lugar onde será feito o culto da carne e do sexo, isso equivale a dizer o culto do pecado, o culto do demônio, vamos permitir que isto aconteça? Vamos assistir de braços cruzados a invasão do vício e do pecado em nossos costumes. Eles dizem que isso é o resultado do progresso, que é o resultado do crescimento da cidade que é o preço que todos nós devemos pagar. Mentira!

Por outro lado, nesse mesmo capítulo, em visita a Pousada do Sossego, Malta conversa com Matilde e conhece as dançarinas: “O senhor sabe que o padre anda fazendo uma campanha contra nossa boate? Até em sermão já falou!”, diz Matilde. “Meu Deus, o que há de mal numa boate?”, completa Ninon. Trazidas de fora pela dona da boate, Matilde, as dançarinas, Ninon e Rosaly, com suas roupas coladas e extravagantes, são como elementos exóticos que passeiam pela cidade, desejadas e estranhadas ao mesmo tempo. Dona Pombinha e Mocinha, sempre vestidas como típicas beatas, entram em conflito constantemente com as dançarinas, são figuras que se contrastam e se chocam. Em certo momento, entre a igreja e a praça, sob olhar condenatório de dona Pombinha, uma das dançarinas faz a constatação: “Mas elas vivem virando a cara para gente, essas mulheres”. Matilde, personagem experiente, vinda do Rio de Janeiro, há um ano ambientada na sociedade asabranquense, tenta explicar: “É questão de santo, o santo delas não combina com o nosso”. Passando em frente a boate, visualizando o letreiro, Dona Pombinha exclama em tom de indignação: “Sexus! Olha o nome, meu Deus!”. São momentos que precedem uma verdadeira batalha entre os valores tradicionais e modernos.

“Não sei porque caprichar tanto, o povo daqui é tão grosso”, constata Ninon, durante os preparativos da inauguração, durante o sexto capítulo. Nesse momento, uma bomba de pequeno porte é lançada no meio do salão causando certo alvoroço. Um bilhete foi deixado onde se lia: “Essa é uma bombinha de São João. Se vocês ousarem abrir essa espelunca, vai explodir uma bomba de verdade. Não queremos aqui mulheres da sua espécie”. No entanto, durante a noite, o neon em múltiplas cores brilhava, realçando o nome Sexus e anunciando a abertura da boate. O delegado Feijó pede para um policial “ficar de olho”. No espaço interno da boate alguém toca piano enquanto pessoas sorvem os primeiros goles de bebida. Sinhôzinho Malta chega acompanhado da viúva Porcina. Logo depois chega também toda equipe cinematográfica. Do lado de fora, alguém está à espreita, a câmera segue seu ponto de vista focando no poste de luz. O pano se abre e começa o número musical, as dançarinas cantam e dançam a marchinha “Banana não tem caroço”, mordendo cada uma, uma banana: “Banana não tem, caroço, meu bem, passa em qualquer pescoço neném”, diz a letra, no mais típico tom de chanchada carnavalesca. Porém, alguém surge com um alicate, cortando o fio

elétrico que alimenta a boate, a luz se apaga, ouve-se gritos, a inauguração foi atacada novamente e suspensa por tempo indeterminado.

O conflito de valores e aspectos culturais que se deu na trincheira da abertura da boate Sexus, reaparece na chegada da equipe de cinema em Asa Branca. A equipe com o diretor, os técnicos e os atores de renome nacional como o galã Roberto Matias e Linda Bastos, equivale a um corpo estranho e moderno com que a população de Asa Branca passa a conviver diariamente. Contudo, o estranhamento é recíproco. Assim que chega à cidade a equipe se instala na Pousada do Sossego, não sem a desconfiança do ator Roberto Matias, ao visualizar a fachada do prédio: “Pousada do Sossego. Sossego num pardieiro desse? Se tiver água para tomar um banho já vou me dar por satisfeito”, diz o ator.

O diretor Gerson do Valle passa a ter uma série de obstáculos iniciais para filmar as cenas da película. Em seu contato com Asa Branca, acontecimentos variados o colocam em situações de encantamento, estranhamento, crises existências e artísticas. É como se aquele universo místico, religioso e arcaico de Asa Branca, precisasse ser elucidado, estudado mais a fundo por ele para que o filme fizesse sentido. Já estabelecido na cidade, durante o capítulo vinte e quatro, o diretor presenciou uma espécie de milagre na praça, quando um paralítico, em meio aos romeiros e turistas que ali estavam, andou em direção a estátua de Roque, causando uma forte impressão e fazendo-o perceber a complexidade daquele fenômeno religioso:

“Tudo que pensamos até hoje está uma droga! Uma romantizaçãozinha de um troço muito sério. Esse roteiro não diz nada, absolutamente nada sobre o drama sociológico que nós estamos assistindo. Era preciso refinar tudo, a partir de uma ótica mais aprofundada, porque, na raiz de tudo isso, estamos todos nós, é o tal caldeirão cultural onde nós fomos forjados”

Dentro do caldeirão cultural no qual submerge Asa Branca, representação metonímica da nação, a produção do filme sobre Roque Santeiro passa a conviver com os ingredientes mais arcaicos. A viúva Porcina e o coronel Sinhôzinho Malta, como autoridades estabelecidas na cidade, querem saber detalhes da produção cinematográfica, de início, algo vetado pelo diretor, alegando que só terão acesso ao filme no dia de sua exibição. “Quer dizer que eu só vou ver o filme quando passar no cinema?”, pergunta viúva Porcina ao prefeito. “Falei com eles, insisti, mas é uma gente tão esquisita”, responde seu Florindo Abelha. A viúva Porcina no seu tom autoritário típico arremata: “Pode deixar que eu resolvo esse assunto”. No carro cor-de-rosa, com seu jagunço ao lado, Porcina invade a gravação que está ocorrendo na frente da igreja, derrubando peças do cenário: “Mas quem é essa maluca?”, pergunta o diretor ao prefeito. “Viúva Porcina!” é a resposta.

“Viu o que a senhora fez?”, pergunta o diretor no início do segundo capítulo, “Manda a conta que eu pago”, afirma a viúva Porcina. Após o diretor alegar que a questão não seria só o dinheiro, mas também o tempo que perderia com o conserto do material, afirma Porcina: “Isso é bom. É o tempo de vocês entenderem que essa fita não pode ser feita assim sem dar satisfação a quem merece”. O ator Roberto Matias, se aproximando pergunta: “Essa mulher fez isso de propósito?”. “Fiz! Por que, mocinho?”, responde Porcina. “Eu acho que isso merecia…”, ao tentar concluir a frase, o ator mira o jagunço sentado ao lado de Porcina, ele está descobrindo o revólver que estava sob a roupa, Roberto Matias então recua.

Através dos contatos iniciais com o clima de Asa Branca, a equipe de filmagem começa então a compreender que, para realizar sua produção e conseguir filmar A Saga de Roque Santeiro, terá que ceder aos caprichos e vontades das pessoas poderosas da cidade, principalmente, da viúva Porcina e do Sinhôzinho Malta. Na tentativa de prestar queixa a autoridade policial do delegado Feijó, percebe-se a inversão de condutas que faz parte do universo asabranquense, onde o poder econômico que emerge das fazendas de Malta e Porcina, submete qualquer outro tipo de autoridade. O delegado logo tenta explicar para o diretor: “O senhor não é daqui. O senhor sabe quem é a viúva Porcina”, diz ele, em uma outra versão do “O senhor sabe com quem está falando?”, típica de uma sociedade onde impera valores autoritários e arcaicos e relações sociais pessoalizadas e hierárquicas. “Moço, se o senhor quer um conselho de amigo, não se meta com essa gente é o mesmo que mexer em casa de marimbondo”. Finaliza o delegado, antes do diretor Gerson do Valle decidir retirar a queixa.

Na Pousada do Sossego, o diretor se encontra com Sinhôzinho Malta: “Eu gostaria que o senhor fosse tomar uma cachacinha na minha casa”, convida Sinhôzinho, com um semblante sério. “Nos agradecemos muito, amanhã talvez”, responde o diretor. Sinhôzinho