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CAPÍTULO 3 – O ESPAÇO NACIONAL ASABRANQUENSE DE ROQUE

3.1. Telenovela como “comunidade imaginada”

As definições em torno do conceito de “Nação” e das várias formas que podem definir uma “identidade nacional” impulsionaram debates recorrentes desde as primeiras formações nacionais europeias, a partir do final do século XVIII. Perspectivas variadas pensaram a questão nacional desde concepções essencialistas, que remontam ao pensamento racional iluminista, tomando a identidade nacional como algo que pode ser capturado em sua natureza autêntica, aquilo que constitui o que temos de unidade inexorável, independente de profundas transformações, enquanto portadores de uma dada nacionalidade, como também concepções não essencialistas que percebem as descontinuidades das identidades, a partir do processo histórico e de construções discursivas (REIS, 2006).

O historiador José Carlos Reis ao abordar a questão da “identidade nacional”, trazendo para a realidade brasileira, refere-se a uma “comunidade imaginada”, deslocando o protagonismo do Estado enquanto difusor único de uma identidade nacional, a partir de cima, do campo político, para uma definição que “transcende o Estado”, em que o papel do imaginário popular é também levado em consideração na construção de referenciais simbólicos sobre a “Nação”, que são narrados e compartilhados a partir da literatura, cultura popular, mídia, nas artes e nas “narrativas de origens míticas”. Portanto, a identificação de um determinado povo com tais representações, não seria nem essencial nem irreal, mas havia se tornado uma “realidade profunda, que envolve as mais viscerais paixões do indivíduo”.

Dessa forma, Reis dialoga com autores como Stuart Hall (2006), este ao analisar a questão das identidades culturais a partir do elemento nacional e sua fragmentação no período da pós-modernidade, entende a construção das identidades nacionais no Ocidente como um modelo que foi central para o homem moderno, através de um processo de transferência de referencial de outras formas de identificações pré-modernas, como a tribo e a religião, para a Nação como referência dessa nova forma de identidade cultural na modernidade. Para Hall, a identidade nacional não constitui uma essência, mas sim é formada por discursos, “um modo

de construir sentidos” através de representações simbólicas que são narradas e compartilhadas dentro de uma comunidade:

“[…] tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas (representações) fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação” (HALL, 2006, p. 52).

Podemos observar que tanto para o historiador brasileiro como para Stuart Hall, a concepção de “Nação” conforma-se a partir das representações simbólicas que são narradas e compartilhadas através de diferenciadas matrizes culturais, o que permite a formação de uma “comunidade imaginada”, conceito cunhado por Benedict Anderson ao analisar o processo de difusão do imaginário nacional nas sociedades europeias após o século XVIII.

Buscando oferecer uma interpretação a respeito do fenômeno do nacionalismo pelas “raízes culturais”, Anderson (2008) define a Nação como uma comunidade imaginada. Nesse sentido, de acordo com o autor, paralelamente a limitação e a soberania baseada em fronteiras nacionais, a imaginação é uma característica fundamental no processo de pertencimento a uma determinada Nação, pois, independente de seu tamanho territorial, a maior parte dos habitantes que vivem dentro do território nacional, apesar de não terem contato face a face, imaginam pertencer a uma mesma comunidade.

O autor percebe que o surgimento de uma nova mentalidade temporal na Europa, a partir do século XVIII, em que percepção do tempo nas sociedades passa a ser estabelecida através de uma nova simultaneidade, foi propício para que as comunidades imaginadas se formassem. Esse processo histórico baseou-se na coincidência temporal, marcada pelo relógio e pelo calendário. Para exemplificar essa nova percepção de simultaneidade, o autor analisa o surgimento do romance e do capitalismo editorial dos jornais. Percebendo a relação entre o tempo interno e externo desses objetos culturais, destacou que tais gêneros literários em sua forma de consumo pelos habitantes das nações em processo de consolidação, estabeleceram essa simultaneidade, propiciando a formação das “comunidades imaginadas”:

Sabemos que as edições matutinas e vespertinas vão ser maciçamente consumidas entre esta e aquela hora, apenas neste, e não naquele dia. O significado dessa cerimônia de massa é paradoxal. Ela é realizada no silêncio da privacidade, nos escaninhos do cérebro. E, no entanto, cada participante

dessa cerimônia tem clara consciência de que ela está sendo repetida simultaneamente por milhares (ou milhões) de pessoas cuja existência lhe é indubitável, mas cuja a identidade lhe é totalmente desconhecida. Além disso, essa cerimônia é incessantemente repetida a intervalos diários, ou duas vezes por dia ao longo de todo calendário. (ANDERSON, 2008, p. 68)

Neste trabalho, o conceito de comunidade imaginada é tomado como fundamental para compreendermos como ao longo de sua trajetória, a telenovela brasileira tornou-se uma das principais formas narrativas sobre a nação, através de diferentes representações simbólicas. Definitivamente, esse foi o caso de Roque Santeiro, uma das maiores audiências da história da televisão brasileira que em 1985 chegou, em alguns capítulos, a adesão de cem por cento dos televisores do território nacional antenados em sua trama.

A telenovela exibida pela Rede Globo foi um exemplo de como o gênero televisivo tornou-se um ritual nacional diário, em que simultaneamente milhões de telespectadores posicionam-se, na privacidade do lar ou em ambientes públicos, como no caso das praças de algumas cidades do interior, em frente aos aparelhos televisores para acompanhar os acontecimentos das tramas e o destino dos personagens. Esse ritual cotidiano e diário adquiriu no Brasil uma forte penetração social perpassando camadas sociais distintas e eliminando barreiras geográficas, mais intensamente, a partir da década de 1980, quando a proporção de lares que possuíam aparelhos televisivos saltou de cerca de 22,8%, na década anterior, para 56,1% (HAMBURGER, 1998, p. 440).

Nesse sentido, a telenovela no Brasil se estabeleceu como um espaço difusor e elaborador de representações sobre o nacional, mobilizando narrativas que eram repercutidas por diferentes canais, pesquisas de opinião, revistas especializadas, cadernos especiais de jornais diários, programas de rádio e de televisão e cartas de fãs, passando a disputar com setores tradicionais, antes privilegiados, como o espaço escolar, a Igreja e o partido político, por exemplo, no oferecimento de padrões referenciais de identidade e comportamento que circulam na opinião pública nacional, a partir do seu potencial de compartilhamento e da participação imaginária do telespectador, proporcionado pela rede televisiva distribuída por todo território nacional. (LOPES, 2014, p. 3-4).

Dessa forma, quando uma telenovela como Roque Santeiro, atinge o nível catártico de audiência que foi alcançado, termina por conformar um espaço público onde as representações ultrapassam o sentido de “dar a ver” e de conhecer o mundo representado, acabando por instituir a visibilidade por meio de imagens, formando, assim, um campo de disputa entre setores da sociedade que buscam ocupar, influenciar este espaço (MAUAD,

2018, p. 255). Dessa forma, pela capacidade que a telenovela adquiriu em catalisar os debates sociais, deve ser compreendida além do simples entretenimento, sai do espaço restringido do privado, para atuar no espaço público como. De acordo com Marques (2015), a partir de uma concepção ampla da política, como uma “rede complexa de processos comunicativos em torno de questões que dizem respeito ao cotidiano e às experiências”, a telenovela atua politicamente provocando os indivíduos para assumirem um posicionamento diante de questões que envolvem a “dimensão moral” da sociedade.

Roque Santeiro foi um produto cultural que provocou variados debates, repercutidos na imprensa escrita da época, numa intertextualidade característica do gênero. Uma dessas discussões provocadas, girou em torno da questão do celibato dos membros da Igreja Católica. Diante da aproximação do final da telenovela, a opinião pública efervesceu na discussão a respeito do destino que seria dado a relação amorosa entre o padre Albano e Tânia, a filha do coronel Sinhôzinho Malta. Na época, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem em que abordava o Movimento dos Padres Casados e a torcida para que o padre Albano acabasse a novela concretizando a união conjugal no final da telenovela. O ex-padre casado, Rogério Ataíde Caldas Pinto, porta-voz do movimento, declarou para o jornal achar que o autor Dias Gomes “deve estar recebendo alguma pressão para que o padre Albano fique assim tão angustiado diante do conflito da sua relação amorosa com Tânia e a disciplina do celibato”79.

Na mesma reportagem, o autor Dias Gomes afirmou ter escrito dois finais, “em um deles acontece o casamento, em outro, eles ficam separados”. No dia da exibição do último capítulo. Gomes reuniu na Casa de Criação Janete Clair, uma instituição criada pelo autor para formar escritores de teledramaturgia, amigos como Jorge Amado e Zélia Gattai, além de alguns atores que fizeram parte do elenco para, envolta de um telão, assistirem o desfecho da novela. De acordo com a reportagem, a sugestão do escritor Jorge Amado era de que “o padre deveria ficar com as duas, Tânia e a Igreja”. O final não teria agradado Zélia Gattai, que teria ficado inconformada com a separação. Dias Gomes, então, procurou explicar que sua intenção era “causar a indignação do telespectador contra o celibato”, o que seria um “desfecho mais coerente com a estrutura psicológica do personagem”80.

79 SOARES, Vitor Hugo. Padres casados: a torcida por Albano e Tânia de Roque Santeiro Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Caderno B. 24. Jan. 1986, p. 2.

Mais dois exemplos são relevantes para compreendermos o impacto da telenovela espaço público a partir do fenômeno de audiência que foi Roque Santeiro. Em um capítulo da telenovela, um comentário do personagem prefeito Florindo Abelha, não teria agradado a classe dos psicólogos. Durante a cena, quando discutia com a esposa Dona Pombinha a possibilidade de contratar o serviço de um psicólogo para sua filha Mocinha, o prefeito teria dito: “Sabem como é psicólogo. Eles falam, falam, e no final não dizem nada”. O comentário causou certo desconforto manifestado pelos representantes do Conselho Regional de Psicologia, que emitiram a opinião de que havia sido transmitida “uma imagem distorcida, errônea e vazia sobre a categoria”.

Outro exemplo, de categoria profissional não satisfeita com os rumos tomados por personagens, foi a dos policiais civis. Em certa altura da novela, chega a Asa Branca o promotor Prata81 (Milton Goncalves), para investigar uma série de mortes que vinha acontecendo na cidade, juntamente com o delegado Feijó. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia e Corregedor-Geral do Detran, na figura do, na época, seu representante delegado Ciro Vidal, veio a público manifestar a indignação com a suposta subordinação a que era submetido o personagem delegado Feijó, em relação ao promotor Prata: “Isso não existe entre autoridade policial e o Ministério Público. Não há hierarquia nesse sentido. É o mesmo que um jornalista ser subordinado a um padre”. Além dessa crítica, a opinião do delegado na vida real, seria a de que o delegado Feijó “mancha a imagem da categoria ao frequentar boates todas as noites em mangas de camisa, manter relações com uma prostituta”, referência a dançarina Ninón, interpretada por Cláudia Raia, “e deixar a família em segundo plano”82.

Assim, podemos compreender esse fenômeno cultural nacional como algo “tão visto como falado”, que alimenta discussões no cotidiano das pessoas, tanto de temáticas ligadas ao mundo privado, como do público, realizando uma síntese que muitas vezes ultrapassa os espaços restritos usualmente reconhecidos como locais em que a novela é discutida na opinião pública, passando então a ser debatida nas “primeiras páginas e seções de política de jornais de elite” (HAMBURGER, 1998, p. 481). Esse caráter de intensa interação com o público

81 Esse personagem tinha uma marca que era o uso da gravata borboleta, uma referência a um midiático investigador da vida real que vinha trabalhando no caso Baumgarten, jornalista morto em 1982, caso que veio a público no ano seguinte, após a publicação de um dossiê em que acusava integrantes do SNI de planejar sua morte.

82SOARES, Ricardo. Policiais contra o delegado de Asa Branca. Jornal do Brasil, Caderno B. 13 de Fev.

receptor é ainda fortalecido por ser a telenovela uma produção “aberta’, sendo escrita, produzida e editada ao mesmo tempo em que vai ao ar. Esse modo de fazer permite que o autor, ao longo dos capítulos, recorra as cartas, e-mails enviados pelos telespectadores, assim como aos grupos de discussões conduzidos por instituições especializadas contratadas pelas emissoras (HAMBURGER, 2011, p. 74).

Para percebermos como essa característica esteve presente nas telenovelas desde seus primeiros passos na década de 1960 e como alguns valores padrões da sociedade, inclusive degradantes como o racismo, influenciavam e influenciam no devir criativo das mesmas, voltemos para um episódio envolvendo a escritora cubana de telenovelas brasileiras Glória Magadan. Em depoimento para a revista Manchete, em que falou sobre o ofício de escrever telenovelas, Magadan relembrou uma carta que teria sido enviada por uma telespectadora a respeito da novela Passo dos Ventos. O conteúdo da carta fazia referência a uma relação amorosa que vinha se desenvolvendo na telenovela entre um criado negro e uma adolescente branca, filha da patroa. A carta recebida teve o seguinte trecho destacado na reportagem:

Sou uma senhora que vê sempre telenovela. Eu e minhas amigas achamos que a senhora é sensacional. Mas estou revoltadíssima com o amor que a senhora inventou para a menina Manah. Sou racista, não escondo, estou revoltadíssima. É razoável que Manah dedique seu amor sublime a qualquer outro personagem (…) mas um criado negro é inadmissível.”83

A opinião racista da telespectadora, ainda de acordo com Magadan, deveria ser levada em conta, pois “se avoluma em outras cartas”. Diante de tal pressão externa, a “solução” encontrada pela autora foi a de matar a personagem do criado nos capítulos posteriores. O episódio reflete a negociação simbólica do destino dos personagens e dos acontecimentos presente na produção da telenovela, marcada por nuances que de acordo com Lopes, varia entre a transgressão e o conformismo, num jogo de mediações complexas envolvendo a produção, o autor e setores da sociedade.

A capacidade de sugestionar uma forte identificação na relação com o telespectador, parte ainda de mecanismos narrativos recorrentes nas telenovelas que Lopes salientou como o entrelaçamento da realidade com a ficção. Exemplificando a partir da fusão entre personagens e figuras públicas, a autora afirma, por exemplo, que a narrativa ficcional consolida uma identificação mais bem estabelecida no imaginário nacional que com o próprio telejornal na divulgação dos fatos. Levantando exemplos desse entrelaçamento, Lopes (2014) relembra a presença das mães de crianças desaparecidas em Explode Coração (1995), numa campanha

que mobilizou o país e o Movimento dos Sem-Terra na novela Rei do Gado(1996) que, além disso trouxe o, na época, senador da República Eduardo Suplicy para estar presente em uma cena de velório de um também senador, personagem da ficção.

Essa capacidade de estreitamento entre ficção e realidade, advém dos recursos estilísticos das telenovelas em externar uma dimensão pedagógica, como no caso da campanha das crianças desaparecidas, com “dispositivos naturalistas ou documentarizantes”, caso do aparecimento do senador Suplicy, provocando o que foi denominado por Lopes (2014) de “leitura documentarizante”, quando se trata a ficção como documento, interferindo em aspectos subjetivos e afetivos como a memória:

“A telenovela, com seus enredos, imagens e sons, nos transporta a um universo que é ao mesmo tempo ficção e espelho da realidade, em uma espécie de jogo subjetivo, possibilitando aos telespectadores diferentes experiências a partir de suas tramas ficcionais. Muito além de apenas entreter, elas trabalham tanto no imaginário coletivo quanto nas memórias históricas e afetivas”. (LOPES, 2014, p. 8)

Toda essa potência social adquirida pela telenovela brasileira ao longo de sua história, a coloca como uma importante ferramenta de construção do imaginário nacional, da “comunidade imaginada” brasileira em constante processo de atualização quando os brasileiros compartilham a assistência da televisão no horário da telenovela diária. Roque Santeiro foi um marco da teledramaturgia brasileira, indo ao ar em 1985, em um ano político chave para a história brasileira, pode ser entendida como um “fenômeno catártico” (HAMBUGUER, 1998), em sua potencialidade de se “exibir” como uma representação “autenticamente” brasileira. A forte identificação com a “Nação” legitimada pelo amplo alcance de sua audiência e repercussão em jornais, revistas e programas de televisão é o que será analisado daqui em diante.

3.2 – O Brasil é Asa Branca: Roque Santeiro, a “Nova República” e a