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5. A brinquedoteca e o brincar no contexto escolar

5.2. Como esses discursos “refletem-se” e “refratam-se” nas atividades dos sujeitos

5.2.1. a A 1ª Série

Com a mudança na legislação brasileira (conforme consta no artigo 9.394/96 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)), as crianças começaram a freqüentar a 1ª Série com 6 anos completos até o mês de janeiro de 2006. Uma das metas para o Ensino Fundamental no Plano Nacional de Educação (PNE) é a ampliação para 9 anos do tempo de escolarização. Ela visa com que as crianças tenham “um tempo mais longo de convívio escolar com maiores oportunidades de aprendizagem” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCACÃO, 2006, p.9)85.

Para cumprir a lei, esta turma constituiu-se de 30 crianças, pois abrangeu as crianças com seis anos completos e as que fariam sete anos até o final do ano letivo.

No ponto de vista da diretora da escola, essa mudança aconteceu de forma brusca e sem que a escola tivesse recebido o suporte necessário da SME:

“Não é só o querer implantar porque inclui os alunos de seis anos que é uma lei

que vem lá do Governo Federal, veio para cá e cumpra-se a lei. E aí chegou ao ponto de, num curso sobre a inclusão de seis anos, a assessora do secretário da educação dizer que as escolas que não tinham parquinho, se botasse uns pneuzinhos já estava bom. Então tu percebes que a própria educação às vezes não vê a criança como uma criança, é mais um número para ganhar dinheiro do Ensino Fundamental”.

Conforme consta nas orientações do Ministério da Educação para a inclusão das crianças com esta idade na escola:

Em se tratando dos aspectos administrativos, vale esclarecer que a organização federativa garante que cada sistema de ensino é competente e livre para construir, com a respectiva comunidade escolar, seu plano de ampliação do ensino fundamental, como também é responsável por desenvolver estudos com vistas à democratização do debate, o qual deve envolver, portanto, todos os segmentos interessados em assegurar o padrão de qualidade do processo ensino aprendizagem (Ibid., p.7).

Porém, a liberdade oferecida à escola ou à SME parece estar mais relacionada com a falta de suporte técnico/metodológico do que com as possibilidades de desenvolver estratégias inovadoras. Como indica a fala da diretora da escola:

“A nossa escola tem duas salas de aula e uma primeira série. Nessa primeira série

tem alunos de seis anos que completaram agora em janeiro, seis anos que vão completar

85. Documento retirado no site do Ministério da Educação

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sete agora em junho e que vão completar sete no final do ano. Eu tenho três idades dentro de uma sala só, com 30 alunos. As carteiras do jeito que eles mandaram reguladas, têm quinze e são trinta alunos. Só que as crianças ficam assim, não cabem. Então pensar a educação e pensar o lúdico é muito bonito ir lá e dizer: ‘-Ai porque nós temos uma brinquedoteca na rede. Porque a escola tal tem a brinquedoteca, e a função e o objetivo agora é de proporcionar o lúdico”.

A escola enviou à SME um projeto de formação das professoras, para pensar a condição das crianças na escola e a contribuição da brinquedoteca para a realidade na qual a escola estava passando. O projeto não foi contemplado para receber o suporte teórico/metodológico para tanto. No ano anterior, a escola tinha tentado ampliar o projeto da brinquedoteca para outras escolas municipais interessadas, através do envio de um projeto para a Fundação Abrinq, que as abrangeria. O projeto foi literalmente “engavetado” pelos funcionários da SME que deviam dar o seu parecer. Todos os projetos perderam o financiamento.

Com a mudança de legislação, a escola deparou-se com um problema:

“Porque as crianças que vem da Educação Infantil passam por um trauma de estar

pegando em lápis e é difícil porque você chega no Ensino Fundamental e tem que no final do ano o aluno estar lendo. E esses alunos de seis anos têm que estar lendo no final do ano. Então é uma coisa, tem que estar lendo como os de sete”.

Mas tal fato pode realmente ser apresentado como um trauma para as crianças? Na pré-escola elas também escrevem. Neste caso talvez seja menor a pressão para as crianças concluírem o ano letivo dominando a leitura ou de apresentarem a maturidade para tal. Essa dificuldade apareceu também nos comentários sobre a turma: “têm crianças que só

querem brincar”.

Segundo a diretora da escola, a brinquedoteca é ainda mais importante para os mesmos, pois: “(…) para essas crianças é mais importante ainda, é claro para todas as

idades, mas para essa idade eles estão ainda muito no brincar mesmo. Brincar por brincar, brincadeiras mesmo. Ai eu acho que a brinquedoteca entra nessa parte mesmo de brincando, mas ensinando, fazendo essa ligação das regras de ter que aprender mas de uma forma mais agradável, de uma forma mais amena. Não é aquela coisa, de não pode porque...através dos jogos eles vão aprendendo as regras e levando essas regras para outros lados, para a rua, para a sala de aula, para o recreio, que é uma turma bem agitada. Porque imagina, eles estão na flor da energia, então imagina, parados, não tem

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como. Então a função da brinquedoteca para eles é fundamental justamente que é para a própria energia, analisar isso um pouco mais para eles se concentrarem. A própria concentração, para eles brincarem gostoso, mas o aprender também. Então essa forma mais lúdica de aprender”.

Mesmo parecendo não conhecer os dispositivos propostos pelo Ministério da Educação, a fala da diretora vêm ao encontro dos mesmos. Consta no documento já citado:

Ressalte-se que a aprendizagem não depende apenas do aumento do tempo de permanência na escola, mas também do emprego mais eficaz desse tempo: a associação de ambos pode contribuir significativamente para que os estudantes aprendam mais e de maneira mais prazerosa (Ibid., p. 7).

O documento cita ainda que para que estas atividades sejam mais prazerosas as atividades lúdicas podem ser um estímulo para as crianças aprenderem na escola.

Porém, contraditoriamente, no I Semestre de 2008, o MEC, juntamente com o INPE (Sistema de informações, pesquisas e estatísticas educacionais) instituiu a “Provinha Brasil” que visa “oferecer às redes públicas de ensino um instrumento de diagnóstico do nível de alfabetização das crianças com idade entre seis e oito anos de idade”.86

Atualmente essa “provinha” não é de forma obrigatória, mas até quando?

A escola é então colocada frente ao impasse de criar algo novo (utilizando o lúdico) em meio às amarras ideológicas e institucionais impostas à sua profissão, sem no entanto receber recursos e apoio técnico para tal e, finalmente, prestando contas do seu processo através de um instrumento produzido por outras instâncias para avaliar o rendimento das crianças.

É importante citar a experiência da passagem de 8 para 9 anos escolares no Ensino Fundamental, com o acolhimento inicial de crianças passando de 7 para 6 anos; como aconteceu na Noruega, nos anos 90, descrita por Trageton (2005).

Segundo a autora, dada a resistência inicial dos pais motivada pela preocupação de que a escola primária não possuísse uma pedagogia envolvendo o brincar como na pré- escola, houve uma mobilização para formar os professores e de re-estruturar o currículo nacional visando aproveitar o melhor do programa da pré-escola e o melhor do programa da escola primária.

O cotidiano escolar deveria ser organizado de forma a suprir a necessidade das crianças de brincar e de desenvolver atividades livres. Nele, a utilização do tema estudado

151 deveria inspirar a criança a brincar e, em contrapartida, o brincar deveria trazer inspiração para os temas estudados, sempre numa perspectiva multidisciplinar.

Segundo a autora, pela primeira vez na história, o “brincar livre” é incluído no horário escolar e, neste caso, constituiu-se como a quarta maior “disciplina” nos primeiros anos da escola primária, ocupando 247 horas do currículo escolar.

Tal forma de organização visou incitar o brincar de três formas: o livre brincar em que a crianças controlam o tempo e as atividades; o brincar como impulsionador de temas transversais trabalhados via interdisciplinaridade; e o ensino de matérias através de brincadeiras controladas pelos adultos.

Podemos então observar que há níveis de organização diferenciados de expressão e de uso do brincar que vão do pólo do controle da criança ao pólo do controle dos adultos.

Mas isso não quer dizer que não houve a preocupação de que esta forma de organizar os tempos, os espaços e as atividades não levaria os professores a esquecer a prioridade dada ao brincar das crianças. E para isso, “Os professores receberam formações para aceitar, compreender e dominar o “brincar livre” na escola”87 (Ibid., 168).

Essa formação consistiu em levar um professor da pré-escola a trabalhar com um professor da 1a série durante um ano letivo e a seguir um curso especialmente preparado em torno dessa temática.

Não é o caso da professora da 1ª série da escola pesquisada, que começou a trabalhar como efetiva na escola no início da coleta de informações. A mesma deparou-se com uma turma de 30 alunos de 6 e 7 anos, numa sala de aula equipada para atender apenas 15, com a organização metodológica das atividades dependendo de sua “criatividade” e da sua “ conta e risco”.

A professora utilizou os momentos em que os alunos estavam na brinquedoteca para fazer, no espaço da sala de aula, uma primeira avaliação individual do nível silábico das crianças. Conseqüentemente, pouco apareceu nas filmagens. Dos 11 encontros que foram filmados, a professora esteve presente em 5 deles. Nos momentos de ausência, a auxiliar de ensino deu suporte para a brinquedista. Sempre sentando na roda com as crianças88, a mesma não impunha sua presença nas atividades e nas relações entre as crianças, tendo assim uma presença discreta. A mesma realizava mediações no sentido de

87. Classroom teacher have to train themselves especially to accept and master “free play” at school (Ibid., p. 168).

88. O fato de as professoras sentarem no círculo com as crianças, é entendido como uma tentativa de buscar uma relação de maior proximidade com as crianças. Porém, sempre haverá diferença entre as mesmas, mas estas podem estar mais próximas ou mais distantes, dependendo da postura da professora.

152 qualificar o que elas estavam brincando/fazendo num tom de voz calmo, numa relação de proximidade e de escuta com as mesmas.

Dos 11 encontros filmados na 1a série, em 9 aconteceram atividades dirigidas e em 2 atividades livres. Desses 9 encontros, apenas em um a participação de todas as crianças foi obrigatória, a fim de experimentarem o jogo da memória. Nos demais encontros a atividade dirigida foi a confecção de uma pista feita com material de sucata para que as crianças pudessem brincar com os carrinhos da marca Hot Wheels89. Para isto foi feito um planejamento coletivo no início de cada encontro, para a execução de cada etapa da construção da pista: coleta e seleção do material, definição e confecção dos espaços, papietagem90, pintura e acabamento com o nome das placas.

Em todos os momentos do processo de construção da pista houve uma grande circulação de crianças. Mesmo a participação não sendo obrigatória, as crianças se engajaram na atividade.

O argumento utilizado pela brinquedista para o encaminhamento da atividade foi de que:

“A 1a como eles gostam muito de brincar com os joguinhos, então a gente vai trabalhar com eles agora uma maquete tipo um pista de corrida. Aí eles foram dizendo o que deveria ter ou não e aí a gente vai começar a montar a partir deles. Como eles gostam de carrinhos e está a febre do Hot Wheels na sala”.

A brinquedista explica: “É uma marca de carrinho de ferro, resistente, tem pista,

tem um monte de coisa. Então eles estão trazendo muito para a sala e a professora comentou. E aqui eles gostam muito de brincar, tanto com os carrinhos quanto com os bonecos pequenos e as meninas também”.

É o que também foi justificado para os pais, no relatório da brinquedoteca do II Trimestre letivo: “Articulando conteúdos em sala de aula, combinamos que construiríamos uma pista para brincar de carrinhos”. Os conteúdos, no entanto não foram explicitados.

Conforme consta no relatório do 2° Semestre (feito pela brinquedista, enviado aos pais), além da construção da pista nele consta as atividades livres preferidas pelas crianças

89. Hot Wheels é o nome de uma linha de produtos lançada pela empresa Mattel. Aqui a brinquedista refere- se à uma coleção de carrinhos em ferro. Somente no ano de 2008, 190 novos modelos foram lançados no mercado mundial. Para maiores informações, consultar o site http://intl.hotwheels.com/

90. Papietagem é uma antiga técnica de confecção de máscaras para o teatro. Trata-se de sobrepor diversas camadas de jornais com cola caseira (grude), sobre uma base, a fim de produzir uma estrutura firme depois de seca.

153 (lego, casinha, fantasias, jogo de futebol de botão, pebolim, carrinhos, bonecos, bonecas, jogo do pato e batalha naval).

Na avaliação da brinquedoteca pelas crianças (no pré-conselho do I Trimestre), as brincadeiras e brinquedos preferidos foram: casinha (3 vezes), bonecas, bonecos (2 vezes), dinossauros, carrinhos, brinquedos, jogos (2 vezes), jogo de dama, jogo da memória, cara a cara, lego (4 vezes). As crianças afirmaram que “o tempo é pouco para brincar, e que gostam muito da Carol”, (a brinquedista). No II Trimestre afirmam que “Carol é legal porque deixa eles brincarem, e porque dá bastante brinquedo”.

Na ata do Conselho de Classe do I Trimestre não consta a avaliação que as crianças realizaram no pré-conselho. Consta somente que a avaliação foi lida pela diretora da escola; o que também aconteceu no II Trimestre, cujo relatório não consta nenhum registro do pré-conselho.

Em relação ao grupo, a professora destaca que no início os participantes estavam atentos às suas reações. O que lhe chamou a atenção foi que eles perguntaram quando iam começar a trabalhar; “como se tudo o que ela vinha fazendo fosse brincadeira”. Isto será melhor discutido nas análises do “bilan”.