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6 INTUIÇÕES TEMPORAIS EM EXPERIMENTOS COM SETE

6.7 Seascape Study: Boat and Stormy Sky

Para finalizar essa série de experimentos reflexivos acerca de alguns trabalhos artísticos de Constable, escolhi uma pintura que me permite explorar vertentes de todos os seis referenciais teóricos elegidos para fundamentar esta tese. Seascape Study: Boat and Stormy Sky (Figura 60) promove, em mim, um conjunto de sentimentos cuja sensação temporal aparece no exercício de experimentação estética que faço diante da reprodução fotográfica dessa pintura. Infelizmente, não tive a oportunidade de estar diante da pintura em si, fato que compromete sobremaneira a captura das qualidades que são próprias da linguagem pictórica.

Figura 60 – Seascape Study: Boat and Stormy Sky (óleo sobre papel, fixado em madeira, 1824-1828)

Fonte: The Royal Academy of Arts ([20-?]).

A representação da paisagem costeira dedica sua maior área para a composição do céu tempestuoso, ao passo que o mar revolto ocupa uma área restrita do suporte da pintura, enquanto

a praia quase não é contemplada. Tudo muito integrado e coerente. No horizonte sugerido, uma faixa horizontal, em um azul quase negro, deixa a superfície uniforme; porém, essa uniformidade passa longe de indicar calmaria, pois, na medida da composição, está mais para ser a tempestade em sua maior intensidade, quando a escuridão não permite qualquer visibilidade.

Acima, o céu apresenta todo o seu vigor através de um fenômeno meteorológico que eu não saberia distinguir. Talvez um tufão, ou furacão, ou ciclone, ou apenas um vento muito forte, anunciando o deslocamento das intensas nuvens daquela tempestade para a costa. A perspectiva na elaboração desse elemento, em forma cônica, oferece uma ideia de maior proximidade no lado esquerdo da pintura, em que o detalhamento da representação do fenômeno é maior. Em diagonal, segue perdendo intensidade, reduzindo de tamanho perto do horizonte no terço direito da composição. As pinceladas são enérgicas, exploradas ao máximo, deixando as marcas intensas dos pincéis. Ao que parece, para mim, a atitude de Constable, com os pincéis no suporte, assemelha-se à fúria do fenômeno da natureza sobre a paisagem, guardadas as devidas proporções. Nesse âmbito, penso que essas impressões induzem a um sentimento amedrontador.

Por outro aspecto, acredito que o suporte apresenta um tom marrom, que mais parece a própria matéria do papel ao invés de ser uma imprimação da base para a pintura. A aparência é de que o suporte não recebe tinta em diversas áreas, situação que ocorre não apenas na superfície destinada ao céu. Trata-se do poder de síntese do pintor, elegendo o ato expressivo essencial para o registro rápido da cena observada na natureza, a qual seria alterada em um curto espaço de tempo.

Em se tratando da paleta de cores utilizada, ela é reduzida e, sobre esse ponto, entendo que tenha relação com a brevidade necessária para a captação do instante da paisagem. Ainda acerca dessa questão, volto a exaltar a alta capacidade de síntese do artista. Minha suposição é de que Constable tenha utilizado apenas um tom de azul e um de branco para desenvolver toda a pintura e, com eles, representou os elementos do céu, do mar e da praia. Entretanto, admito que percebo, em pequenas zonas isoladas, dois tons terrosos. Estes ajudam no detalhamento da areia da praia, três ou quatro pinceladas no céu e a vela da embarcação.

Quanto ao mar revolto, Constable é preciso em sua pintura, construindo uma ideia de instabilidade, sobretudo pelo barco inclinado, que tem sua vela inflada na direção da praia. Este cruza as fortes ondas que quebram violentamente, noção proposta pelos empastes brancos, luminosidade máxima da composição.

A embarcação, movida por ventos na vela, induz um dilema ao seu tripulante. Necessita do vento, em prol de ser ágil para chegar em segurança na praia e escapar da tempestuosa realidade que se avizinha. Ao mesmo tempo, teme ventos que envergam o mastro, rompem velas e promovem ondas violentas, agravadas pelo ímpeto furioso do fenômeno que se aproxima.

Levando em consideração o notório interesse de Constable por dar ênfase às condições atmosféricas em seu paisagismo, faço um paralelo humorado, afirmando que a percepção estética que venho relatando culmina por sentir que, nessa pintura, a atmosfera é de urgências. A inquietude impera e o risco também. Imagino que seja a natureza impondo o ritmo do curso do universo.

Todavia, chega o momento em que desejo alinhar algumas vertentes teóricas dos seis referenciais que fundamentam esta tese com minhas intuições temporais diante de Seascape Study: Boat and Stormy Sky. Nesse intuito, começo por minhas sensações de temporalidades movidas por uma relação de causa e efeito. Trata-se das sugestões em que cito as forças do vento como agente causal sobre o mar e a embarcação, a exemplo de quando percebo o barco inclinado, a vela estufada em direção à praia e ao mar revolto. Ocorre que, para compreender eventos como esses, faz-se uso da causalidade, uma das 12 categorias a priori do pensamento instituídas por Kant. Afora os exemplos acima, o sentimento de urgência por conta do fenômeno natural ameaçador representado no céu, que faz o tripulante do barco agir em escape, também é entendido por conta da categoria da causalidade, um elemento cognitivo essencial para o conhecimento.

Um segundo grupo de intuições temporais envolve a percepção da instabilidade da paisagem como um todo. Através da experiência com a reprodução dessa pintura, percebi que embarcação no mar está ao sabor do vento e do mar revolto, as ondas quebram incessantemente e o fenômeno natural no céu está se aproximando. Todas essas sugestões de movimentos estabelecem uma concordância com as concepções aristotélicas acerca do tempo. Nesse aspecto, foi a pintura, com suas tintas no suporte, que promoveu essas sugestões de movimento e de tempo em mim. Como toda pintura se expressa por meio de sua materialidade, tem-se também a intuição do espaço-tempo einsteiniano, sobretudo porque a Teoria da Relatividade Geral demonstra que o espaço-tempo é consequência da distribuição de matéria. Por outro lado, os empastes brancos ao longo da costa, ou seja, a materialidade das tintas, representam as ondas que quebram com força no mar, alterando a estabilidade da embarcação. Além disso, a perspectiva definida por Constable para o fenômeno natural sugerido no céu de sua pintura

produz uma ideia de que ele está mais próximo no alto esquerdo da composição e mais distante no terço direito, chegando ao horizonte. São sensações espaçotemporais e de movimento presentes em minha mente através da experiência estética com Seascape Study: Boat and Stormy Sky.

Outro grupo de percepções de tempo acerca dessa pintura ocorre por meio de narrativas intuídas. Afirmo isso na medida em que posso questionar quanto tempo tardará para o fenômeno da natureza – o qual não sei definir se tufão, furacão ou outro – encontrar a embarcação. Nesse indagar, a noção newtoniana de tempo absoluto faz pensar em sua universalidade. Se o tempo flui igual para todos, como atesta Newton, a tempestade afetará, em um preciso tempo, o tripulante, a vela da embarcação e todos os elementos do mar e da praia, mesmo que estejam com movimentos distintos.

Entretanto, na condição de pesquisador em processos criativos e investigador sobre arte, minha experiência estética, conforme relatado, não conseguiria deixar de intuir sobre a metodologia que Constable empregou para compor essa pintura. Fiz suposições para as etapas do percurso deliberado pelo artista em sua criação, uma sucessão temporal. Dewey discorre muito bem sobre a difícil tarefa que o artista tem ao operar com um material qualitativo. Conforme atesta a filosofia da arte de Dewey, o artista idealiza qualidades encontradas na experiência comum. A temporalidade que percebo está no processo de Constable para selecionar as qualidades da natureza nos instantes de observação e, então, fazer a transposição do que era natural para as qualidades específicas da linguagem pictórica. Não foi à toa que Constable, com suas pinceladas marcantes e vigorosas, assumiu essa atitude. A expressividade do pintor trouxe as sensações captadas em sua observação e, através da pintura, construiu, em mim, intuições e conhecimento acerca da paisagem.

Por fim, creio que relato os sentimentos deste ser que vivenciou a experiência estética, durando nesta trajetória, e que recorre à teoria de Bergson. Quando acuso a atmosfera de urgências, de ansiedade com o perigo, de uma opressão amedrontadora em que o fenômeno representado poderá se tornar devastador, é baseado no fluxo contínuo que interliga, em minha experiência, as qualidades de Seascape Study: Boat and Stormy Sky. A filosofia de Bergson confere realidade ao mundo do sujeito e suas particularidades, considerando o tempo como duração – distante de ser um simples acontecer, mas uma continuidade, compondo uma unidade que determina um único ser durando nessa sucessão, pelo domínio da qualidade. Nesse caso, o sujeito sou eu, durando, quando a sucessão de minhas intuições temporais segue um caminho proposto pelas qualidades da pintura de Constable.