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2.2. No Brasil

3.1.1. Sede constitucional

Não há dúvidas de que os princípios aplicáveis ao procedimento administrativo tributário para discussão do lançamento estejam entalhados na Constituição Republicana em vigor. A começar porque tal espécie procedimental constitui um meio através do qual o cidadão pode buscar a proteção do seu direito de se opor à Administração Pública toda vez que esta lhe fizer

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uma exigência descabida de pagamento de tributo. Mas não – e ainda – batendo às portas do Judiciário e sim pedindo a ela mesma que reconsidere sua posição.

Ao longo do texto constitucional se vê abordagens alusivas a princípios jurídicos que têm aplicabilidade direta no procedimento administrativo tributário, alguns de cunho geral, outros de cunho específico.

Como se viu em capítulo anterior, todos os princípios se relacionam entre si, em maior ou menor grau de interação, um servindo de apoio para o outro, um prestigiando mais um setor da vida do que outro. Embora pareça distante, seria razoável admitir-se influência do princípio da dignidade da pessoa humana no procedimento administrativo tributário? Claro que sim, se imaginarmos que uma discussão administrativa do tributo deve se pautar em bases respeitosas, local propício para os direitos do contribuinte serem reverenciados, em atenção a sua capacidade contributiva e abrindo espaço para o exercício do contraditório e da ampla defesa. Atender tais prerrogativas significa prestigiar a dignidade da pessoa humana, na medida em que seus direitos tributários não serão violados se forem debatidos num ambiente onde haja cerimônia aos princípios jurídicos específicos. Ademais, a dignidade da pessoa humana, de tão importante que é, acaba por ser tratada como fundamento constitucional dos dois sistemas sob análise, o brasileiro e o português.

Além da dignidade da pessoa humana, há que se falar também na solidariedade social (CRP, art. 1º, c/c art. 26-2 e 63), com interessantes ramificações e contrapontos vistos adiante, no estado de direito democrático (art. 2º), na legalidade (art. 3º, c/c art. 103-2 e 3, 164 e 165), na isonomia (art. 13), no direito de informação (art. 20, c/c art. 35, 37 e 52), este ora tratado como direito, ora como princípio, na celeridade (art. 20), na confidencialidade (art. 26-1 e 2), no direito de petição (art. 52-1), aqui prestigiado tanto fora como dentro do procedimento, na repartição justa da riqueza e dos rendimentos (art. 103) e na publicidade (art. 119), sem prejuízo de outros explícitos ou subentendidos. Todos estes, de uma forma ou de outra, serão comentados amiúde mais a frente, com seus respectivos desdobramentos.

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Tais princípios ecoam no direito tributário adjetivo, assim considerado como um conjunto de regras jurídicas apontadas para executar as normas tributárias substantivas e garantir a tutela dos valores e das pretensões jurídicas delas imanentes, para aproveitar a conceituação utilizada por Joaquim Freitas da Rocha.23

Afirma o referido jurista ser o Direito Tributário adjetivo um conjunto de normas jurídicas, o que significa que tanto fazem parte dele os princípios como as regras jurídicas, ambos podendo ser escritos ou não escritos, apesar da predominância das normas escritas. Esta última circunstância, aliás, leva a conclusão do Direito Tributário adjetivo ser um Direito eminentemente legal, no sentido em que a grande parte das suas normas estão consagradas em diplomas desta natureza.

Ademais, dito ramo é de índole instrumental ou acessória. Essa instrumentalidade capta-se de uma forma correta se estiverem presentes as suas reais funções, uma de natureza executiva, outra de natureza garantística.

Prossegue o autor:24

Por um lado, as normas de Direito Tributário adjectivo têm por função estar ao serviço das normas substantivas, de modo a assegurar a sua execução. Estas últimas, na maior parte dos casos, não são normas auto-exequíveis, no sentido de independerem de outras para a produção dos seus efeitos. Pelo contrário, uma das suas características mais marcantes reside exactamente na hetero-exequibilidade, pois a completa e correcta produção dos seus efeitos jurídicos depende da existência de outras normas que as tornem operativas e aptas a desencadear as potencialidades que o mundo do Direito lhes reserva. Tais normas são precisamente as normas de Direito adjectivo que, por isso, assumem um papel marcadamente secundário ou instrumental, ao serviço das primeiras”.

Indiretamente o procedimento tributário para discutir a liquidação em sentido amplo possibilita a todos os cidadãos gozarem dos seus direitos consignados na CRP, conforme sagra o princípio da universalidade (art. 12-1), porquanto têm eles a chance de questionarem

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Lições de Procedimento e Processo Tributário, p. 92 e segs.

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se o tributo cobrado está a arranhar o seu direito de ser submetido a uma tributação justa e equânime, uma das manifestações do direito de resistência.

Portanto, desde a seção constitucional dedicada aos direitos e deveres fundamentais, nomeadamente na apresentação dos seus princípios gerais, que o procedimento administrativo tributário encontra reverberação.

Se, no entender da Administração Pública, deve o contribuinte tributo, claro fica que o procedimento administrativo tributário é o ambiente criado dentro dela mesma com o fito de ser exercitado o direto de resistência previsto na CRP (art. 21), porquanto a ordem lançada – pague-se tributo – pode ser tensionada se ofender direito, liberdade ou garantia. Óbvio que o direito de resistir se relaciona como ultima ratio, como bastião derradeiro para perseverar contra ato de poder público ou privado que violente direito; mas o procedimento administrativo tributário pode ser entendido como ultima ratio no sentido de ser este o estágio final de discussão da validade da exigência antes dela ser exigida judicialmente.

Dentro do procedimento administrativo tributário também há espaço para a ocorrência do direito de petição, não esquecido no texto constitucional (art. 52-1), visto que após a oficialização da exigência do tributo pode o contribuinte atravessar pedido à autoridade competente do tipo reclamação ou recurso fundamentando a defesa do seu direito, ao tempo em que lhe é igualmente assegurado a faculdade de ser informado em prazo razoável acerca do resultado da respectiva apreciação. Indiscutivelmente estas são situações verificadas no transcorrer do procedimento administrativo tributário.

Cumpre salientar que os órgãos e agentes constitucionais, para converterem as suas competências em atos, devem obedecer a um iter procedimental juridicamente regulado. Não escapa à regra o procedimento administrativo tributário, vez que, através dele, a competência impositiva tributária é disparada em concreto e, em seu seio, tem o contribuinte a oportunidade de contrastar os seus direitos.

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Logo, todo procedimento administrativo para discutir a liquidação em sentido amplo constitui uma garantia franqueada ao cidadão para que ele nesta instância possa fazer valer um direito que julga vilipendiado. Elevado ao qualificativo de garantia, soa inquestionável que o procedimental tributário deva exprimir justiça, a todo instante permitindo o contraditório e a ampla defesa, a colocar em constante prova o direito de lançar o tributo versus o direito de resistir à sua cobrança, até a sua ratificação ou reforma definitiva.25

Daí se imaginar as garantias impugnatórias no procedimento administrativo, designadamente as reclamações e recursos administrativos, encetados perante qualquer autoridade pública, inclusive aquelas denominadas de autoridades administrativas independentes, a exemplo das organizações não governamentais e agências não dependentes.

O constituinte lusitano dedicou um capítulo especial para tratar da Administração Pública, por ser esta atividade de grande relevo para a sociedade portuguesa. Assim é que no Título IX surgem dispositivos voltados para os princípios fundamentais deste setor, sua estrutura, direitos e garantias dos administrados, regime da função pública, restrições ao exercício de direitos, responsabilidade dos agentes e funcionários, além da polícia.

Assim, é neste Título (art. 266 e ss.) onde mais o procedimento administrativo ganha realce, pois é ali que a Administração Pública encontra disciplina e o respectivo procedimento constitui um veículo de discussão entre a pretensão estatal e a oposição do administrado.

J. J. Gomes Canotilho,26 após reconhecer a dificuldade em se encontrar uma definição satisfatória de Administração Pública, define-a como sendo aquela que persegue de modo permanente e autônomo as tarefas da comunidade, efetuada por órgãos estatais, das regiões autônomas, do poder local e das demais formas de administração indireta do Estado e da

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Recorde-se a ideia de inexistir verdadeira lide no debate do tributo no seio da Administração Pública, apesar de se perceber nitidamente uma oposição de interesses.

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administração autônoma de caráter associativo ou institucional, por intermédio de medidas concretas e juridicamente vinculadas a fins de interesse público constitucional e/ou legalmente pré-determinados.

No que toca mais de perto a presente pesquisa, merecem uma referência inicial os princípios fundamentais da prossecução do interesse público, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (e em especial dos contribuintes), a subordinação dos seus agentes e órgãos à lei e aos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé, todos promovidos a princípios fundamentais (art. 266-1 e 2), todos norteadores da Administração Pública direta e também de outros segmentos da República Portuguesa.

Dentro das normas que ditam a estrutura da administração (art. 267-1), registre-se a que preconiza a desburocratização, o oferecimento de serviços junto a sociedade e a participação dos interessados na gestão pública, as três com nítido reflexo no procedimento administrativo tributário. Além destas, agora com referência explícita à atividade administrativa, ressaem as regras que ordenam sua disciplina através de lei especial, a qual visará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços públicos e a participação dos interessados na formação das decisões e deliberações (art. 267-5).

Sob a epígrafe de direitos e garantias dos administrados, o legislador constitucional traz a dicção de que os cidadãos têm o direito de serem informados sobre o andamento dos processos em que figurem como interessados, sempre que o requeiram, com prazo máximo definido em lei, assim como o de tomarem ciência das resoluções que lhes disserem respeito (art. 268-1 e 6). Naturalmente, o procedimento administrativo tributário deve acompanhar a mesma linha.

Passa o procedimento tributário para discutir a liquidação em sentido amplo pela preservação do direito ao arquivo aberto, insculpido na CRP (art. 268-2), vez que o contribuinte atacado pela cobrança do tributo terá livre acesso aos arquivos (informatizados ou não) e registros

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administrativos produzidos dentro e fora do procedimento administrativo tributário para exercício adequado da ampla defesa; a depender da situação e com as devidas cautelas, nada obsta que o contribuinte possa acessar sistemas informatizados internos do órgão público tributante em busca de subsídios e informações que enrijeçam a sua tese de defesa. Até mesmo terceira pessoa não participante de procedimento administrativo tributário específico poderá conhecer o seu teor, exceto em situações que comprometam a justiça ou segurança ou em caso de documentos nominativos. No ver de Canotilho,27 a Constituição não faz depender a liberdade de acesso à existência de um interesse pessoal, pois o que se persegue é um direito de saber. Note-se que especificamente à presente pesquisa, o direito à informação – como corolário do arquivo aberto – será explorado com mais vagar.

Em continuação, o texto constitucional adverte que os atos administrativos (e muitos são praticados na medida em que o procedimento administrativo tributário avança) estão sujeitos a notificação aos interessados e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268-3).

Outra questão a destacar é a que confere aos cidadãos o direito de impugnar também pela via procedimental - mas não só exclusivamente por ela – as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268-5).

Ainda relacionados com o procedimento administrativo tributário estão os dispositivos que determinam estarem os agentes públicos somente a serviço do interesse público (art. 269-1) e a imputação a estes de responsabilidade civil, penal e disciplinar quando no exercício de suas funções ofenderem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, independente de autorização hierárquica (art. 271-1).

Isto porque os funcionários públicos que atuarem na discussão da validade do tributo devem atentar para o interesse coletivo, e isto envolve sua cobrança justa, a favor ou contra a entidade tributante, pois interessa à sociedade o fato do tributo ser exigido na exata medida da

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lei; ao lado disto, a atuação dos agentes e funcionários públicos condutores do procedimento administrativo tributário não devem traduzir abuso de poder, a mitigar o exercício pleno da ampla defesa e o desenrolar livre do contraditório, sob pena de responderem pelo excesso.

Todas estas manifestações - direito de resistência, direito de petição, direito a um procedimento justo, direito à informação e garantias impugnatórias no procedimento administrativo - traduzem meios de defesa extra Judiciário, sem prejuízo daqueles invocáveis perante as autoridades jurisdicionais.

Se ligações mais remotas entre o procedimento administrativo tributário e disposições constitucionais fossem concatenadas, muitas outras ilações poderiam ser feitas nesta direção, embora se julgue sejam estas a que mais toquem de perto a temática da pesquisa e a inteligência do legislador constitucional português.