• Nenhum resultado encontrado

4.1. Estado de direito democrático

4.1.4. Segurança jurídica

O princípio da segurança jurídica traz aquela ideia de que as relações sociais devem estar estabilizadas a bem da própria sociedade e do Estado, protegidas por normas claras e não

71

109

volúveis. É com base neste raciocínio que o princípio ganha de alguns doutrinadores a denominação de princípio da proteção da confiança.

Entre eles, as vozes abalizadas de Jónatas Machado e de Paulo Costa, quando asseguram realizar tal princípio não só uma norma jurídica clara, mas o ato administrativo bem determinado72:

“O princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos cruza-se com a exigência de legalidade tributária no princípio da precisão, clareza e determinabilidade das normas e actos tributários, com especial relevo para aqueles que se referem aos elementos essenciais dos impostos, mas não só...

(...)

Este princípio não se limita às normas, antes estende o seu programa normativo a todos os actos da administração tributária. Assim, por exemplo, o acto de liquidação deve evidenciar claramente o montante principal da prestação e os juros compensatórios, devendo além disso explicar com clareza o respectivo cálculo e distingui-los de outras prestações devidas...” (destaques do autor).

Metajuridicamente, qualquer cidadão necessita se sentir seguro, o Estado protegendo seus direitos e os confrontando com os dos seus semelhantes. A profusão de normas irradiadas por diversas pessoas autorizadas para tanto provoca instabilidade jurídica.

Assim, o princípio em análise auxilia na congregação de valores sociais supremos, posto que repele o gesto de serem editadas normas veiculadas por qualquer tipo legislativo sem a visão que se deve ter de sistema jurídico, no qual o central cuida do geral e o periférico cuida do específico. Enfim, normas desconjuntadas proporcionam insegurança jurídica.

Objetiva é a sentença de Francisco Pinto Rabello Filho:73

72

Ob. cit., pp. 56 a 58.

73

110

“Os cidadãos, então, digamos assim, têm tranquilidade na sua vida de relação, nos seus negócios, no seu dia-a-dia enfim, porque sabem e têm confiança em que o Estado lhes não surpreenderá, não adotará medidas inopinadas que os aflijam” (destaques do autor).

Disto resulta que a lei deve transmitir clareza, compreensível aos olhos de quem deva cumpri- la, de sorte que o indivíduo saberá exatamente quais direitos e deveres possui para se integrar pacificamente ao meio social.

Logo, defluem da segurança jurídica a certeza e a igualdade, porquanto o individuo terá a certificação de que seu direito estará garantido pelo estado de direito e em igual medida de outro concidadão que o possua em mesma intensidade e qualidade, transmitindo-lhe a sensação de ser “senhor dos próprios atos e dos atos dos outros”, ou conferindo “certeza à incerteza das relações sociais” para se valer de expressões de Tércio Sampaio Ferraz Junior e Alfredo Augusto Becker, citadas pelo jurista Roque Carraza.74

E é por isto que o postulado em referência concentra forças na proteção da confiança e no exclusivismo, vez que o jurisdicionado, pela primeira, convencido de que o sistema jurídico deve regimentar da melhor maneira possível as relações jurídicas, se mostra confiante de que as eventuais violações a direitos seus serão reparadas pela máquina estatal, e, de modo reverso, as violências que praticar serão igualmente coibidas. Já o exclusivismo traz a convicção de que cada uma das situações de vida serão disciplinadas por normas determinadas, exclusivas, por assim dizer, e não por preceitos aleatórios e inconstantes.

Daí transparecerem os institutos do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e do caso julgado, porque os três trazem a ideia de que os direitos reconhecidos pelo Estado ingressam definitivamente na esfera patrimonial do seu titular, sendo intocados por modificações legislativas supervenientes.

74

111

Abordagem adequada à segurança jurídica aplicável a caso concreto foi desenvolvida pelo jurista António Carlos dos Santos75, a propósito de detectar majoração de tributo por via de cortes na despesa com remunerações de funcionários e de pensionistas.

Segundo o jurisconsulto, a literatura econômica considera impostos fenômenos que produzem efeitos econômicos similares à exação tributária. Destarte, a Lei do Orçamento de Estado - LOE de 2012, a pretexto de reduzir despesas, implantou cortes nos subsídios de Natal e de férias de funcionários públicos e pensionistas, o que traria efeitos econômicos similares aos de um aumento do IRS sobre vencimentos da função pública (categoria A) e sobre as pensões (categoria H).

Embora tais cortes não traduzissem impostos no sentido clássico do termo, são figuras híbridas e atípicas, a integrarem um novo tipo de parafiscalidade, operada pela via da despesa.

Submetido o referido ato do estado ao crivo do Tribunal Constitucional - TC, este entendeu inexistir ferimento à CRP, no que pesem três votos em contrário, dos quais merece destaque (por pertinência temática) o do Conselheiro J. Cura Mariano, para quem a medida faz pouco caso do elemento da necessidade inerente ao princípio da proporcionalidade, pois a opção pela tributação genérica permitiria atingir o mesmo objetivo - o equilíbrio orçamental - mas com uma mais justa repartição dos sacrifícios.

Do ângulo da segurança jurídica ou proteção da confiança, de outra sorte, assinala o cientista António Carlos dos Santos:76

“Numa primeira aproximação, os cortes nos subsídios da função pública inscrevem-se no domínio laboral (Estado empregador), são uma medida que põe em causa, de forma abrupta e sem contrapartida (em colisão com o princípio da proibição do retrocesso social), remunerações atribuídas por lei e, consequentemente, princípios de

75

“A Nova Parafiscalidade: a Tributação por Via de Cortes na Despesa com Remunerações de Funcionários e

de Pensionistas”.

76

112

segurança jurídica. Põe-se então o problema de saber em que medida uma entidade patronal (mesmo que seja o Estado) pode, unilateralmente e sem qualquer contrapartida, diminuir o crédito salarial do trabalhador para satisfazer outros créditos, pondo em causa um princípio de confiança legítima, expectativas legítimas, se não mesmo direitos adquiridos (expressão hoje sob fogo cerrado da ideologia neoliberal). Deve ter o Estado empregador um privilégio que as entidades privadas não têm nem podem ter?” (parêntesis e itálicos originais).

Portanto, deriva da segurança jurídica a liberdade de todos terem acesso à prestação jurisdicional, a chamada inafastabilidade da jurisdição. Mas antes até do livre acesso ao Judiciário, o cidadão-contribuinte, por opção, tem direito de questionar o seu direito de livrar- se de cobranças equivocadas ainda no seu estágio de maturação, com acertamento final a ser decidido no interior do próprio Poder Executivo.

A alternativa ganha formidáveis vantagens, eis que o lançamento defeituoso será revisado pela própria Administração, dispensando-o da análise do Judiciário, Poder já sobrecarregado de demandas, além de evitar que o contribuinte se defenda em ações judiciais, com mobilização de tempo e recursos financeiros desnecessários. Isto propicia e muito segurança jurídica.

A atividade da tributação não escaparia da influência da segurança jurídica, na medida em que os cidadãos não poderiam ficar vulneráveis ao arbítrio das pessoas políticas de exigir tributos na quantidade, qualidade e da maneira que bem entenderem, mesmo que tais pessoas se valham do instrumento da lei. O ato administrativo de cobrança do tributo, como exteriorização formal da sua exigência, deve estar submetido a um processo de discussão ordenado, nas vias administrativas ou judiciais.

Isto foi serenamente previsto pelo legislador português ao editar a Lei Geral Tributária - LGT, de evidente aplicação uniforme em todo o território nacional, de cuja exposição de motivos pode-se extrair as seguintes palavras:

113

“A concentração, clarificação e síntese em um único diploma de regras fundamentais do sistema fiscal que só uma lei geral tributária é susceptível de empreender poderão, na verdade, contribuir poderosamente para uma maior segurança das relações entre a administração tributária e os contribuintes, a uniformização dos critérios de aplicação do direito tributário, de que depende a aplicação efectiva do princípio da igualdade, e a estabilidade e coerência do sistema tributário. A imagem de um sistema tributário disperso e contraditório prejudica fortemente a aceitação social das suas normas e, consequentemente, a eficácia do combate à fraude e evasão fiscal”.

Recorde-se que a LGT, debaixo desta ideia uniformizadora e de pacificação jurídica, dedicou um Título inteiro ao procedimento tributário – englobando o processo administrativo e o procedimento stricto sensu -, disciplina depois desdobrada com o Código de Processo e Procedimentos Tributários – CPPT.

Sob o viés da segurança jurídica, a lei indubitavelmente propagará o sentimento de previsibilidade que deve nortear as relações de conduta, satisfará as expectativas para que o melhor direito seja concretizado, ou, pelo menos, que haja todo um esforço para a sua realização.

Normas procedimentais precisas passarão tranquilidade para o contribuinte, confiante que ficará em debater a matéria debaixo de regras que assegurem plenamente o exercício do contraditório e da ampla defesa, além de darem alicerce para que os seus direitos e garantias fundamentais sejam protegidos. Dita lei conformará estabilidade para que o ambiente onde ocorra o debate da liquidação em sentido amplo se mostre aquietado, sereno, livre dos desequilíbrios e irracionalidades procedimentais, muitas vezes perpetrados pelos desavisos do legislador local.

Oportuno o magistério de Frederico Seabra de Moura:77

“Não pode haver sistema tributário sem segurança, sem padronização na atuação fiscal dos entes federados, sem previsibilidade na conduta do Fisco, sem balizas à atuação estatal. Aquilo que se pretender um conjunto de enunciados tendentes à regulação da vida social e não consagrar o valor da segurança jurídica não pode ser qualificado como um ordenamento, nos moldes de um Estado Democrático de Direito”

77

114

Uma relação tributária que repouse num processo de discussão desordenado, montado em ritualística que ignore princípios e postulados instrumentais relevantes, terá efeito contrário, produzirá mais inconformismo, deixará o contribuinte insatisfeito em não ver seus argumentos analisados dentro de um processo de discussão harmônico e abalizado. Isto o insuflará a submeter sua tese ao crivo do Judiciário, ante a sua suspeita dela não ter sido convenientemente apreciada na instância administrativa.

Vale aqui o diagnóstico de Roque Carraza para o caso brasileiro:78

“Infelizmente, ainda há um grande autoritarismo entranhado na Administração Pública Brasileira, que, como lembra Sérgio Ferraz, ‘(...) se julga senhora e dona do processo administrativo decidindo, a seu talante, quando e como instaurá-lo, seu iter, a dimensão da atividade dos administrados em seu bojo, sua publicidade ou reserva etc.”.

E - ainda com esteio nas lembranças de Sérgio Ferraz - continua o jurista apontando problemas frequentes vivenciados na militância administrativa tributária, tais como a resistência dos servidores em conceder vistas dos autos do processo ou a recusa de receber para protocolo as petições.

Estas e outras patologias decerto são eliminadas por uma lei procedimental precisa e determinada. Procedimento administrativo sedimentado em normas pouco esclarecedoras e suscetíveis a arbitrariedades contaminam a segurança jurídica, adiam a resolução dos conflitos sócio-jurídicos.

Apesar de ser inquestionável que a segurança jurídica deva reinar nas relações sociais, das quais as regras e atos administrativos são mentores expressivos, sempre haverá terreno para que se utilizem métodos interpretativos para se dizer o direito. Aliás, nunca é demasia lembrar, todo o direito é interpretativo.

78

115

É por isso que Diogo Leite de Campos e Mônica Horta Neves Leite de Campos79 advertem que a segurança jurídica pode ser largamente consumida pelo prosseguimento do princípio da certeza jurídica, vez que normas precisas, conhecidas e estáveis permitirão elevados níveis de certeza e segurança na sua aplicação. Mas sempre haverá margem de interpretações que necessita ser aprimorada, pois preponderantemente a norma jurídica não apresenta conteúdo completo, inquestionável, a comportar preenchimentos e adensamentos. O aprimorar dela começa com o exame reiterado de casos de idêntica subsunção, inclusive dentro do próprio procedimento administrativo.

Como não poderia ser diferente, tem igual dimensão o princípio da segurança jurídica no Brasil, muito mais conhecido na doutrina com este título do que pela nomenclatura proteção da confiança, embora se reconheça que esta última exprima melhor a mensagem nele contida do que a primeira.

Em outras palavras, a decodificação do significado de segurança jurídica não é tão imediata do que a proteção de confiança, muito mais inteligível no sentido dos cidadãos se sentirem confiantes frente a ordem legal estabelecida, quanto aos atos individualmente praticados e as relações com seus compatriotas.

É já no Preâmbulo da Constituição brasileira que se percebe a preocupação em zelar pela segurança jurídica, porquanto ali está dito que a Assembleia Nacional Constituinte, imbuída no propósito de instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade e a segurança, entre outras prioridades, acabou por proclamá-la.

Preocupação continuada ao serem apresentados os direitos e deveres individuais e coletivos observáveis no Estado Brasileiro, posto que no caput do art. 5º se garante aos brasileiros e

79

116

estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Deriva da garantia da proteção da confiança o princípio da irretroatividade ou da proibição da retroatividade que, embora vinculado ao direito material, merece ter algum espaço no presente trabalho. Em linhas gerais, traduz o preceito de que a lei tributária não pode retroagir para antes da data da sua publicação com o intuito de atingir – e regular – fatos ocorridos anteriormente. Em Portugal há previsão constitucional com este teor (CRP, art. 103-3), de modo que ninguém será obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa, sobretudo se ela operar destoante com princípios fundamentais da ordem constitucional. Nem mesmo se tolera a retrospectividade, ligada a fatos de formação sucessiva (como são aqueles relacionados a impostos sobre rendimentos), ou quando a lei tem missão interpretativa, se a conduta do contribuinte foi pautada na boa fé; aliás, quanto à retroação da lei para atingir fatos ligados a rendimentos, Diogo Ortigão Ramos e Fernando Lança Martins80 chegam a afirmar que tal iniciativa fere o próprio Estado de Direito. Tais rigores são percebidos outrossim por Jónatas E. M. Machado e Paulo Nogueira da Costa81. Relativizam o princípio Diogo Leite de Campos e Mônica Horta Neves Leite de Campos82, ao admitirem a retroação no alargamento de benefícios fiscais ou se a lei interpretativa for ao encontro a um entendimento dominantemente adotado no passado, ou ainda quanto a lei inovadora no campo do imposto sobre rendimentos, caso em que a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor. Note-se que aceitar a retroação para estender benefícios fiscais a contribuintes agrediria a proteção da confiança do lado do interesse coletivo, pois se assim prevalecer o Estado ficará intimidado de criar novas vantagens em prol do sujeito passivo pelo justo receio de relações jurídicas outrora estabilizadas ensejarem pedidos de devolução de imposto e sangrias desnecessárias no erário; todavia, em se tratando de penalidades advindas da relação fiscal, óbvio que a lei menos severa retroaja para contemplar os contribuintes.

80

“A Proibição da Retroactividade da Lei Fiscal no Âmbito do Estado de Direito”, pp. 219 e ss..

81

Ob. cit, pp. 59 e ss.

82

117

Embora no Brasil a irretroatividade se aplique a todo e qualquer tributo e tenha outrossim estatura constitucional (CFB, art. 150, III, “a”), a vedação à retroatividade passou a ser modulada em certas hipóteses. Assim é que, com apoio da jurisprudência (ADIn 605-3/DF) e por expressa disposição do CTN (art. 106-1), a lei de conteúdo interpretativo poderá retroagir para alcançar fatos pretéritos, não obstante os veementes protestos da doutrina; de fato, se dúvidas há a respeito do dever de pagar tributo em certa situação, é razoável que – em nome mesmo da segurança jurídica - advenha uma lei conferindo-lhe em definitivo uma interpretação, de modo que estará livre o contribuinte de eventuais cobranças, se esta lhe for favorável, ou, se esta lhe for prejudicial, afinal assumirá a obrigação tributária, adimplida sem a imposição de penalidades pecuniárias; porém, jamais poderá haver a retroatividade para atingir relações caducas, prescritas ou protegidas pelos efeitos da coisa julgada. De outra parte, também há suporte nos Tribunais para autorizar a retroatividade quando a lei aumentativa do imposto sobre a renda for publicada no curso do ano fiscal, pois para esta exação o fato gerador só se aperfeiçoa e se materializa no final do exercício, caraterizado pelo conjunto de fatos – meros fatos, até então – ensejadores de rendimentos auferidos pelo contribuinte.