• Nenhum resultado encontrado

4.1. Estado de direito democrático

4.1.3. Solidariedade social

No plano da solidariedade, é de se destacar que não só os cidadãos devem ser solidários entre si, ou com o Estado. Cotejando-a com a teoria política, vem a certeza de que os próprios agentes e órgãos estatais devem ser solidários entre eles.

Pregar solidariedade no cumprimento das competências legislativas ajudará a disseminar a justiça fiscal. Pessoas estatais e cidadãos, num sentido lato, fazem parte da sociedade, e toda ela deverá ser regida pela solidariedade social e pela justiça, particularmente a justiça fiscal. Não se pode imaginar o semear de um sentimento total de reciprocidade retirando deste elo os mandatários do Estado.

Apropriado neste instante trazer à superfície o pensamento de José Casalta Nabais:66

“Daí também que a solidariedade, enquanto fenómeno estável ou duradouro e mais geral, se refira à relação ou sentimento de pertença a um grupo ou formação social, entre os muitos grupos ou formações sociais em que o homem manifesta e realiza actualmente a sua

affectio societatis, dentro dos quais sobressai naturalmente a comunidade paradigma dos

tempos modernos – o Estado. Do que resulta que a solidariedade pode ser entendida quer em sentido objectivo, em que se alude à relação de pertença e, por conseguinte, de partilha e de corresponsabilidade que liga cada um dos indivíduos à sorte e vicissitudes dos demais membros da comunidade, quer em sentido subjectivo e de ética social, em que a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa mesma pertença à comunidade” (destaques do autor).

Pelas competências conferidas aos entes tributantes, as normas jurídicas, à medida em que são exteriorizadas, vão se assentando num sistema complexo, pelo menos aquelas que com ele estejam em conformidade. Esta ação competencial coordenada e solidária dos entes estatais

66

104

será decisiva para fazer com que o sistema tributário cumpra com as suas funções corretamente.

Funções essas que foram bem capturadas por Yonne Dolacio de Oliveira:67

“Finalizando, anoto, antes de prosseguir no exame da estrutura específica do sistema, como se entrelaçam as funções. A função primeira de organização, legitimação e limitação do poder estatal é condição da segunda função: certeza e segurança do Estado e contribuintes, isto é, certeza da existência de um direito que ofereça a possibilidade do conhecimento da sua extensão, das normas regentes da sua modificação e de julgamento; e a garantia do seu efetivo cumprimento. Certeza e segurança garantem a terceira função: a solução de conflitos entre as pessoas políticas e os sujeitos passivos da relação jurídica tributária e entre os próprios entes do governo na sua atuação” (destaques da autora).

Em estudo publicado em periódico lusitano, Cristiano Carvalho68, inspirado também na teoria econômica, defende incisivamente a ideia da solidariedade social disseminada recentemente para justificar aumentos seguidos da carga tributária.

Segundo a inteligência do autor, a solidariedade social resulta da mudança de um paradigma liberal para um paradigma solidarista, no firme propósito de superar um pensamento individualista e fazer implantar a filosofia da primazia da sociedade em relação ao particular.

Funda-se a solidariedade social nas constituições do bem-estar social – welfare state – caracterizadas pela proliferação de direitos sociais. Tais direitos, para serem satisfeitos, necessitam ser custeados pelos tributos. Neste raciocínio, a capacidade contributiva seria um princípio que não só protegeria o contribuinte como também apoiaria o ente tributante em promover incrementos de carga conforme a capacidade contributiva de cada cidadão. Aliás, os solidaristas pregam a adoção de medidas nesta direção não só da parte do Estado propriamente dito mas também da parte de organizações não governamentais.

67

“A Estrutura Específica Interna do Sistema e sua Nota Essencial”, p. 512.

68

105

O tributarista mencionado resume os seguintes argumentos em prol da solidariedade social para implemento da tributação: (1) o indivíduo só se realiza plenamente enquanto membro de uma coletividade; logo, os valores da liberdade e da igualdade devem ser sopesados, no intuito de se buscar um equilíbrio entre eles, mas se isto não for possível haverá de prevalecer o interesse público sobre o privado. (2) O bem-estar social a ser alcançado necessita da implantação de direitos constitucionais de natureza positiva, tipicamente os do Estado do bem-estar social. Várias constituições atuais incrementaram o estado de direito democrático dentro da fórmula de conciliação entre os direitos individuais de natureza negativa e os direitos sociais de natureza positiva. (3) A capacidade contributiva não traduz apenas uma limitação ao poder de tributar mas também o fundamento sobre o qual deve ser instituído o tributo, de forma a dar contornos à dignidade humana. (4) E, por último, a solidariedade social tanto pode ser praticada pelo Estado como através das entidades não-governamentais.

Um a um destes argumentos o articulista vai enfrentando e tentando desfazer, apresentando objeções de cunho econômico-jurídico. A primeira delas, elaborada contra a ideia do interesse público ser superior ao particular, faz inevitavelmente disparar a conclusão de que as liberdades individuais haverão de ser restringidas; por outro lado, a ideia de sociedade como entidade coletiva titular de direitos não passa de uma ficção, porque existem apenas indivíduos, cada um deles dotado de racionalidade e vontade próprias voltadas para melhorar o seu próprio bem-estar, de sorte que eles reagem particularmente aos incentivos gerados pelas normas jurídicas que lhes são destinadas; portanto, se os interesses de uma abstração – a sociedade – forem priorizados em detrimento dos interesses individuais, estes de impossível unificação em interesses comuns, não haverá liberdade e sim coerção.

A segunda objeção, dirigida para a afirmativa de que o bem-estar social será atingido mediante direitos constitucionais de natureza positiva, defende o abandono da sociedade como ente, dotado de racionalidade, intencionalidade, direitos e deveres; na verdade, os direitos sociais e coletivos são criados não para indivíduos puramente considerados mas para uma classe de indivíduos, embora os primeiros, beneficiários ou não beneficiários da receita tributária, sejam os que suportem os seus custos.

106

A terceira delas, voltada para o estado de direito democrático enquanto fórmula de conciliação entre direitos individuais de natureza negativa e direitos sociais de natureza positiva, explica que os primeiros implicam na abstenção do Estado, no sentido de não desrespeitá-los, ao passo que os últimos exigem a prestação de um serviço público (segurança, saúde, educação, seguridade social, só para ficar nestes) nem sempre possível de realizar, haja vista a escassez de recursos necessários para tanto; quer dizer, os direitos sociais enunciam políticas públicas encaixadas em normas programáticas desprovidas de eficácia plena. E, neste cenário, é de se questionar se realmente há democracia quando nas constituições do bem-estar social não há como postular o cumprimento de um direito individual da mesma maneira como se postula um direito social.

A quarta objeção se volta para a função dúplice da capacidade contributiva, pois o autor a enxerga apenas como uma legítima liberdade negativa, até porque configura mera repetição da isonomia e do direito de propriedade, e não possui a faceta inversa de servir como expediente para promoção de políticas públicas redistributivas de renda.

Por último, contra o argumento de que a solidariedade social pode ser realizada não só pela atuação estatal direta mas também pela assunção de entes não-governamentais, objeta-se que o Estado, mesmo atribuindo incentivos fiscais a estes últimos, acabará repassando para todos os indivíduos os custos sociais desta delegação, pois a renúncia fiscal concedida implicará na assunção de majorações tributárias compensatórias a serem assumidas por todos os cidadãos.69

Por tudo isso, conclui o citado autor que os argumentos solidaristas trazem ineficiência econômica (pois há outras alternativas que podem gerar mesmos - ou até mais - benefícios a custos menores), disfarçam um intervencionismo estatal coercitivo, podem estimular a sonegação diante de eventuais sobrecargas tributárias, aguçam o planejamento tributário, promovem injustiça fiscal (pois prejudica os contribuintes de menor porte que não têm

69

Aliás, no Brasil, já há previsão expressa na Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 14, II) de que as renúncias fiscais eventualmente concedidas deverão ser compensadas em aumentos de receita tributária na mesma proporção.

107

condições de implantarem um planejamento tributário condizente, comparado com o grande contribuinte), embora reconheça ser menos improdutivo atribuir o papel destas políticas públicas a entidades não-governamentais. E arremata com um argumento de cunho econômico, o de que os recursos escassos sempre serão geridos de modo mais eficiente pelo aglomerado de indivíduos, em constante interação com o mercado.

De uma forma e de outra, o fato é que a solidariedade social pode ser um mote usado até mesmo contra as tentativas de incremento tributário. O Estado pode tomar iniciativas para majorar a carga tributária e, pelo mecanismo da solidariedade, grupos sociais poderão opor sólidas resistências em rechaçá-las, na linha de que a sociedade não tem mais condições econômicas de suportar sobrepesos na tributação.

Noutras palavras: em nome da solidariedade social, o interesse da coletividade pode ir de encontro às ações estatais, tomadas com base em interpretações errôneas de seus titulares, imaginando que ainda há anseios da comunidade em querer majorações das cargas em troca da realização dos direitos sociais.

Tal fenômeno, no Brasil, vem sendo observado na atualidade, haja vista os gestos infrutíferos de se aumentar a carga tributária e criar novos tributos70.

Aliás, neste país tal princípio é reconhecido pelo mesmo nome e carrega as mesmas notas de conteúdo expressadas no direito português. Nunca pode ser esquecido que a Constituição brasileira reverbera forte influência da Constituição Portuguesa de 1976.

Assim é que já nas primeiras linhas do texto constitucional se professa que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, a teor do que estipula o art. 3º, I.

70

Recentemente o Legislativo Federal repeliu proposta com o fito de ser criada uma nova contribuição social para a saúde, em substituição à extinta CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras).

108

Veja-se o que diz Hugo de Brito Machado, ao se referir à Lei Constitucional Brasileira, mas que tem total pertinência com o direito constitucional português:71

“A solidariedade social não é apenas uma ideia. É um princípio de nosso Direito Positivo, pelo menos a partir da Constituição Federal de 1988, que o alberga expressamente em dispositivo segundo o qual constituem objetivos fundamentais de nossa República ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ (art. 3º, inc I)” (aspas, parêntesis e destaques do autor).

A temática do procedimento administrativo tributário faz com que os entes estatais, em nome da solidariedade político-social, admitam a participação ativa do cidadão não só no momento da elaboração da norma procedimental como também quando este mesmo cidadão está a discutir a validade ou invalidade do tributo contra ele lançado. São as impugnações, reclamações, recursos e audiências os veículos adequados para o exercício deste direito.

A solidariedade mais do que nunca se faz presente porque ao mesmo tempo em que a autoridade fiscal deve se esforçar para saber se a cobrança é legítima, o particular deve se desprender da sua tese se os fatos o convencerem de que a exigência é pertinente. Nem o poder estatal deve renegar o contribuinte a subalterno na relação jurídico-tributária, nem este deve teimar na defesa de um posicionamento vulnerável aos fatos e à justiça fiscal. Eis, portanto, o estágio mais avançado da solidariedade social no bojo do debate administrativo do tributo e que, em último e definitivo plano, deve ser o estado de espírito regente das relações entre o fisco e o contribuinte.