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1. EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

1.3. Democracia

1.3.2. Sentidos da democracia para a educação em direitos humanos

Em uma ordem política democrática, é pressuposto que as decisões vinculativas sejam tomadas somente por quem está sujeito às decisões e se presume que todos os adultos devem constituir o corpo de cidadãos, salvo reduzidas exceções. Ademais, também é pressuposto o princípio elementar de justiça, pelo qual “as coisas raras e valiosas devem ser distribuídas de maneira justa”291. Fixados tais pressupostos, é possível analisar critérios para garantia de um processo democrático ideal, que garanta igualdade política.

287 DAHL, Robert. op. cit, p. 414. 288 Ibid., p.77 e p. 369.

289 Ibid., p. 354. 290 Ibid., 366.

Segundo Dahl, um dos critérios para o processo plenamente democrático decorre do Princípio Forte de Igualdade e significa que “o demos deve incluir todos os adultos sujeitos às decisões coletivas de caráter vinculativo de uma associação”292, isto é, a cidadania deve ser inclusiva para garantir que todos aqueles adultos que se submetem à lei devem participar do processo democrático, com exceção dos estrangeiros em trânsito e das pessoas com deficiências mentais comprovadas.293

Como vimos, a democracia moderna foi ampliada não apenas no que concerne ao território de atuação, mas, também, no que tange aos titulares dos direitos de cidadania, como decorrência histórica e social da luta pela burguesia pela expansão dos seus direitos e dos fundamentos democráticos do autogoverno, da igualdade intrínseca e da liberdade, que envolvem a autodeterminação e as autonomias pessoal e moral.

A amplitude da cidadania, conjunto que compõe o demos, tem relação com a igual consideração e com a presunção de autonomia pessoal, que considera que “ninguém é melhor do que você mesmo para ser juiz de seu próprio bem ou interesse ou para agir em prol da concretização destes”294.

Contudo, como já exposto, a história da cidadania mostra que ela se desenvolveu gradativamente, de uma perspectiva extremamente reduzida e elitista na antiguidade para uma perspectiva mais ampla com o Estado nacional, até se estender quase completamente no século XX.295 Essa construção se desenvolveu a partir da compreensão de que o princípio forte da igualdade política não precisava ser aplicado de forma muito ampla para que a democracia se desenvolvesse. Assim, havia democracia em relação ao demos, aos cidadãos que participavam, mas não em relação às pessoas sujeitas às decisões coletivas.

A despeito da evolução, trata-se de problema histórico não resolvido pelas teorias democráticas originárias e modernas296, como observa Dahl:

292 Ibid., p. 190.

293 Dahl rejeita a cidadania como algo totalmente contingente, até porque isso poderia levar à ausência de

distinção entre a democracia e outros regimes como a aristocracia, a oligarquia e a ditadura de partido único e conclui, a partir do Princípio da Igual Consideração de Interesses e da Presunção de Autonomia Pessoal, que justificam o Princípio Forte da Igualdade, que todos os adultos, salvo raras exceções de pessoas com comprovada deficiência mental e estrangeiros em trânsito ou com residência temporária, devem ser incluídos na cidadania de forma plena, pois são qualificados para tomar as decisões que lhes interessam, de modo que as decisões vinculativas devem considerar, igualmente, as pretensões de cada cidadão. (Cf. Ibid., p. 164-165 e 188- 208).

294 Ibid., p. 154.

295 Assim como ocorreu com a educação e com os direitos humanos, é possível enxergar a história da cidadania

como elitista ou discriminatória, por sua origem restrita e pelos prejuízos causados pela discriminação indevida, ou, pelo lado positivo, como uma história de conquista paulatina de direitos.

Embora a democracia ateniense possa ter tido um caráter extremamente exclusivo, ela certamente não foi a única a ter esse caráter. Da Grécia clássica aos tempos modernos, algumas pessoas têm sido invariavelmente excluídas da democracia, por desqualificadas, e até este século quando as mulheres conquistaram o direito ao sufrágio, o número de pessoas excluídas excedeu – às vezes, como em Atenas, por uma grande margem – o número de pessoas excluídas. Foi assim na primeira ‘democracia’ moderna, os Estados Unidos, que excluíram não apenas as mulheres e, é claro, as crianças, mas também a maioria dos negros e dos índios.297

Exemplo marcante da discriminação ocorreu com as mulheres suíças. A despeito do país ter sido o primeiro a estabelecer o sufrágio universal para os homens, o que ocorreu em 1848, somente incluiu as mulheres em 1971, sendo certo que “a exclusão do sufrágio significava também a exclusão de muitas outras formas de participação. Por conseguinte, até o século XX, todos os países ‘democráticos’ eram, no máximo, governados como poliarquias masculinas”298.

Como vimos, essa discriminação que ocorreu em relação à cidadania, especialmente sobre as mulheres, também se desenvolveu em relação à educação e os direitos humanos299, não se limitando apenas a essas esferas, mas a todas ou quase todas as esferas que da vida das mulheres.300

A discriminação generalizada que atingiu os grupos e pessoas excluídas da cidadania, desenvolvida por governos paternalistas, não democráticos, compostos por homens “virtuosos”, é a confirmação histórica de que tais governos não conseguem proteger a contento os bens e interesses dos excluídos da cidadania, como se deu com os escravos, os trabalhadores e as mulheres301. Diante dessa constatação, Dahl assevera a importância da cidadania ampla como forma de reduzir ao máximo possível a exclusão dos interesses de determinadas pessoas ou grupos:

Se aceitarmos a Ideia da Igualdade Intrínseca, nenhum processo de criação de leis pode se justificar moralmente se não levar igualmente em consideração os interesses de cada pessoa sujeita às leis. Por um lado, não creio ser possível demonstrar que a democracia é suficiente para garantir a proteção dos interesses básicos de todas as pessoas sujeitas às suas leis. Por outro lado, a história da experiência humana oferece provas convincentes de que é quase certo que as pessoas privadas da oportunidade de

297 Ibid., p. 6.

298 Ibid, p. 371-372.

299 Assim como ocorreu com a educação e com os direitos humanos, é possível enxergar a história da cidadania

como elitista ou discriminatória, por sua origem restrita e pelos prejuízos causados pela discriminação indevida, ou, pelo lado positivo, como uma história de conquista paulatina de direitos.

300 Cf. KAMADA, Fabiana Larissa. As mulheres na História: do grito ao silêncio. In:BERTOLIN, Patricia Tuma

Martin; ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan (orgs.) Mulher, sociedade e direitos humanos. São Paulo: Rideel, 2010, p. 37-60.

301 Segundo Dahl, “...vale a pena fazer uma pausa para tomar nota do fato de que provavelmente as piores

invasões de direitos fundamentais, incluindo, é claro, os próprios direitos políticos primários, ocorre quando aqueles que estão sujeitos às leis do demos são excluídos dele.” A solução é incluídos no demos. (Op. cit., p. 292).

defender seus interesses por terem sido excluídas da cidadania não terão seus interesses levados em conta pelo demos que as excluiu. Embora a cidadania numa república democrática não garanta que os interesses da pessoa sejam pesados de forma igual na criação das leis, a história certamente demonstra que a cidadania é uma condição necessária.302

Assim, Dahl justifica que a cidadania amplamente inclusiva é necessária para que os interesses de todos que se submetem às leis tenham seus interesses considerados. Conforme observa Dahl, embora John Stuart Mill tenha afirmado que o ensino universal deve preceder a libertação universal, foi somente após a extensão do sufrágio, em 1868, que o Parlamento criou as escolas públicas de ensino fundamental, sendo certo que “a história desde então prova ainda melhor que quando um grande grupo de adultos é excluído da cidadania, é quase certo que seus direitos não receberão igual consideração”.303

Além da cidadania ser uma exigência da autonomia pessoal, é também do desenvolvimento pessoal moral, pelo qual se adquire “um senso mais maduro de responsabilidade pelos próprios atos sobre outrem, uma disposição maior para refletir sobre as consequências desses atos para os outros e também para levá-las em consideração e assim por diante”304, o que afasta governos paternalistas305.

Além da ampla cidadania, Dahl aponta como critério para o processo democrático a participação efetiva, pela qual “os cidadãos devem ter uma oportunidade igual de expressar suas preferências quanto ao resultado final. Devem ter oportunidades adequadas e iguais de colocar questões na agenda e expressar seus motivos para endossar um resultado e não outro”306, pois a ausência de participação impede que as suas preferências sejam levadas em consideração e viola o Princípio da Igual Consideração de Interesses.

Outro critério é a igualdade de voto no estágio decisivo, critério pelo qual, “no estágio decisivo das decisões coletivas, cada cidadão deve ter assegurada uma oportunidade igual de expressar uma escolha que será contada como igual em peso à escolha expressada por qualquer outro cidadão. Na determinação de resultados no estágio decisivo, essas escolhas, e

302 Ibid., p. 163.

303 Ibid., p.. 205. 304 Ibid., p. 163.

305 Segundo Dahl, “qualquer pessoa cuja autoridade pessoal fosse permanentemente substituída pela autoridade

paternalista seria mantida num estado perpétuo de infância e dependência. Consequentemente, se as decisões coletivas sempre fossem tomadas por autoridades paternalistas – por um corpo de guardiãs, por exemplo – isso significaria que, na esfera dos assuntos políticos, as pessoas jamais sairiam da infância.” (Ibid., p. 163).

somente essas, deverão ser levadas em consideração”307. É o que se costuma denominar sufrágio e que decorre da igualdade dos cidadãos e da Presunção de Autonomia Pessoal.

A compreensão esclarecida também é indicada por Dahl como critério para o processo democrático. Explica que, historicamente, existe uma preocupação dos defensores da democracia em esclarecer e informar os cidadãos através da educação e da discussão pública, tendo em vista que, para o povo definir o que quer e o que é melhor, ele precisa ser minimamente esclarecido.

Assim, para Dahl, “cada cidadão deve ter oportunidade iguais e adequadas de descobrir e validar (dentro do prazo permitido pela necessidade de uma decisão) a escolha acerca da questão a ser decidida que melhor sirva aos interesses do cidadão”308. Isso significa que as instituições devem procurar favorecer e garantir informações, com igualdade, e discussões, dentro dos prazos possíveis, para que os cidadãos possam compreender os meios e fins e as consequências das políticas para seus interesses e dos demais.

Dahl acrescenta como quarto critério o controle de agenda, pelo qual “o demos deve ter a oportunidade exclusiva de decidir como as questões serão colocadas na agenda de assuntos a serem decididos mediante o processo democrático”309. Isso significa que cabe aos cidadãos definir quais assuntos exigem decisão vinculativa e, dentre esses, quais os cidadãos têm qualificação para decidir e em quais condições delega a sua autoridade, sendo certo que tal delegação pode sempre ser recuperada.

Observa-se que os critérios apontados visam garantir um processo democrático em qualquer associação, mas Dahl ressalta a importância no âmbito do Estado, por ser a mais importante de todas as associações e essencial para a vida em sociedade, sendo certo que “um povo que aliena seu controle final sobre a agenda política e as decisões do governo do Estado corre o sério risco de também alienar seu controle final sobre outras associações importantes”310.

A partir desses critérios, Dahl conclui que os cidadãos devem ter oportunidades adequadas e iguais de participar do processo democrático, já que a democracia é, também, uma exigência de justiça distributiva e todos têm o igual direito de alcançar os benefícios que

307 Ibid., p. 172.

308 Ibid., 176. 309 Ibid., p. 179. 310 Ibid., p. 207.

ela proporciona311. Assim, as garantias de participação devem ser efetivas e não meramente formais, sendo certo que as diferenças econômicas, sociais e culturais, pré-requisitos da democracia, podem afetar essa igualdade política.312

Nesse sentido, nota-se a relação entre direitos econômicos, sociais e culturais e a garantia da efetiva participação democrática, motivo pelo qual, ao esboçar os requisitos para um país democrático avançado, Dahl propõe a regulação estatal para garantir a igualdade política e reduzir das desigualdades políticas gritantes decorrentes das diferenças na distribuição dos recursos, das posições e das oportunidades econômicas e de conhecimentos, informações e habilidades cognitivas.313

Sobre tais propostas, vale destacar, desde já, que, para um país democrático afastar um movimento em direção ao governo dos quase guardiães de fato314, ele precisa concentrar sua atenção no demos, na cidadania, e estreitar o abismo existente entre o conhecimento das elites políticas e o conhecimento dos cidadãos comuns.315

Para tanto, Dahl propõe que seja garantida, de forma fácil e adequada, a informação sobre a agenda política a todos os cidadãos e que eles tenham oportunidades de influenciar e participar dessas discussões políticas, o que pode ser viabilizado por meio das telecomunicações.316

Dahl acredita que o projeto para tornar o conhecimento acessível aos cidadãos vai variar de um país democrático avançado para outro e afirma que sua eficácia exige que cada

311 Ibid., p. 496. Entre tais benefícios, Dahl aponta valores como liberdade, o desenvolvimento humano e a

proteção e promoção dos interesses humanos compartilhados.

312 Em exemplo, Dahl observa que um cidadão pobre tem menos recursos políticos e, portanto, menor influência

nas decisões do que um cidadão rico: “Suponhamos que o cidadão P seja pobre e o cidadão R seja rico. Portanto (assim poderia prosseguir a argumentação), P e R podem ter ‘oportunidades iguais’ de participar das decisões coletivas, no sentido de que ambos são legalmente habilitados para tal. No entanto, como R tem muito mais acesso que P a dinheiro, informação, publicidade, organizações, tempo e outros recursos políticos, não somente R provavelmente irá participar mais do que P, mas também sua influência sobre as decisões terá muito mais peso que a de P.” (Ibid., p. 181).

313 Diante disso, “um país democrático avançado concentrar-se-ia na redução das causas remediáveis das

desigualdades políticas gritantes”313, que são desigualdades na liberdade, nas oportunidades de desenvolvimento

pessoal e na promoção e proteção de interesses válidos, sendo que destaca três causas universais de desigualdades políticas: as diferenças de recursos e oportunidades para o emprego da coerção violenta; as diferenças de posições, recursos e oportunidades econômicas; as diferenças de conhecimento, informação e habilidades cognitivas. (Ibid., p. 515-16).

314 Dahl assim denomina as elites políticas das democracias complexas atuais que tem como fonte primária de

influência o conhecimento especializado e não a justificativa moral e epistemológica que Platão e outros reivindicavam. Além das críticas à guardiania, Dahl credita que esta composta por quase guardiães ainda tem outros problemas, pois a especialização oferece uma base restrita que prejudica os juízos morais (Ibid., p. 539)

315 Ibid., p. 540-545.

316 Contudo, ressalva que “os cidadãos não podem superar os limites de sua compreensão política simplesmente

através da participação em debates uns com os outros; e embora a tecnologia os capacite a acompanhar uma discussão através da votação não garantiria que as políticas adotadas protegeriam ou promoveriam os seus interesses”. (Ibid., p. 542).

cidadão seja informado e ativo em todas as questões importantes. É necessário, portanto, “uma massa crítica de cidadãos bem informados, numerosos e ativos o suficiente para ancorar o processo”317.

Nota-se, então, a importância da educação em direitos humanos para a garantia da qualidade e efetivação da democracia, pois, para exercer a participação no processo democrático, os cidadãos precisam estar bem informados e conseguir compreender criticamente as questões políticas.

A partir dos sentidos fornecidos por esses critérios e da relação estabelecida entre democracia e direitos humanos no Estado Democrático de Direitos, que será analisada a seguir, pode-se estabelecer os caminhos da educação em direitos humanos para efetivação da democracia.

317 P. 543. O autor propõe a criação de um público atento reduzido, menor que o demos, para realizar tal função.

Exemplifica com a criação de vários minipopulus compostos por mil cidadãos cada que deliberariam por um ano sobre as questões urgentes com o uso das telecomunicações e que seriam complementares aos órgãos legislativos. (Ibid., p. 543-544).

2. EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA NO ESTADO