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Silêncio na senzala: a escravidão velada em terras valencianas

No documento camilacarvalhogomesdasilva (páginas 44-48)

Capítulo 1 – A identidade na contemporaneidade

1.10 Silêncio na senzala: a escravidão velada em terras valencianas

“Dado que a cultura popular é transmitida oralmente e não deixa vestígios escritos, é necessário pedir á repressão que nos conte a história do que reprime”.

(MUCHEMBLED apud BARBERO, 2009, p. 131).

No que tange a esta ideia-força averiguada na bibliografia que nos serviu de base, é interessante frisar a omissão dos autores relativa às usuais práticas no tratamento dos escravos. Ao contrário, constatamos que as exceções, ou seja, o bom tratamento dado a alguns negros escravizados surge neste discurso canônico como se fosse algo costumeiro. É pertinente destacar também nestas narrativas a tentativa de evidenciar os fazendeiros de Valença daquele século XIX como “bons senhores”.

Boas provas destas constatações se encontram nas obras do historiador Rogério Tjader. Em seu livro “Uma pequena história de Valença”, destacamos trechos onde tal ideia é nítida:

Nos imensos cafezais do Visconde trabalhavam, de sol a sol, os escravos, que foram, de forma efetiva, os verdadeiros construtores braçais da riqueza valenciana. Ao contrário do que, porventura, viesse a ocorrer em outras regiões do Brasil, os escravos valencianos eram muito bem tratados por seus senhores. Alguns viajantes estrangeiros que por aqui passaram, deixaram suas impressões a este respeito, nas quais afirmavam como “os escravos valencianos eram bem vestidos, limpos e de aspecto tranquilo” (TJADER, 2003, p.38).

E Tjader ainda completa:

Somente como exemplo, merece ser citado que o Visconde do Rio Preto fazia ensinar música aos fiéis servidores, ostentando em sua Fazenda do Paraíso, nada menos do que duas orquestras, cujos componentes desfilavam garbosamente uniformizados nas paradas ou participavam compenetrados, nas missas solenes, fúnebres, onde tocavam os “réquiem” de músicas clássicas. Aliás, este exemplo de bom trato aos escravos, foi seguido por um grande número de outros senhores de terras (TJADER, 2003, p.38-39).

Ainda sobre este autor, vale por em relevo algumas citações retiradas de sua obra “Visconde do Rio Preto, o esplendor de Valença”, onde Tjader discorre sobre o tratamento alimentar dado pelo fazendeiro Domingos Custódio Guimarães, o Visconde do Rio Preto, a seus escravos, comentando que neste quesito “também se faz presente a preocupação do

Visconde, modificando, enriquecendo e multiplicando as refeições dos escravos”. (TJADER, 2004, p.125).

Em relação ao trabalho dos negros nas fazendas do Visconde do Rio Preto, Tjader diz que raras vezes foi exigido destes trabalhadores fazer serão, acontecimento corriqueiro em muitas fazendas, nos diversos países onde adotava-se o sistema escravocrata. Segundo o autor, “domingos e dias santos de guarda eram rigorosamente respeitados, quanto ao descanso da escravaria excetuando-se, é claro, o serviço essencial pelos quais os escravos encarregados recebiam compensações de várias outras maneiras” (TJADER, 2004, p.126).

Outro fato nos salta aos olhos. Os principais livros que nos serviram de base para a estruturação daquela que seria a identidade valenciana imaginada e cultivada através dos tempos poucas referências fazem à figura do negro nesta cidade. Contudo, sabe-se que o negro era um ator comum neste cenário social, como nos conta Marialva Barbosa, ao mencionar em seu livro “História da Comunicação no Brasil” a narração do holandês Dierick Ruiters, que ficou em torno de um ano preso na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII:

Vi, certa feita, um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados à faca. Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas piche derretido. O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma noite, de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem ter as suas feridas tratadas (RUITERS, D.In: FRANÇA, 2000

apud BARBOSA, 2013, p.19-20).

Todavia, não podemos ocultar a informação de que algumas parcas vezes encontramos alusões aos negros nas publicações consultadas. Entretanto, nestas escassas passagens o negro dificilmente é personagem principal da narrativa, como podemos confirmar no trecho referente à construção dos dois principais jardins de Valença:

(...) o então presidente da Câmara Municipal, Coronel João Rufino, fez construir os dois primeiros jardins públicos que existiram em Valença. Inicialmente foi o da Praça da Câmara, hoje Visconde do Rio Preto. Foram obras difíceis, para aquele tempo em que não existiam máquinas nem tratores. Todo o serviço de embelezamento daquela área, que incluía desaterros, nivelamentos, foi feito à mão, por pedreiros especializados auxiliados por escravos (TJADER, 2003, p. 33).

Há também que ser mencionado que a abordagem feita a respeito do tema escravidão depende muito da época em que o livro foi escrito. Esta diferença no modo de falar sobre o assunto torna-se manifesta se compararmos as duas principais obras cujo enfoque é a trajetória histórica do município pesquisado. Enquanto no título “História de Valença – (1803- 1924)”, de Luiz Damasceno Ferreira, cuja primeira edição data de 1924, não descobrimos nenhuma parte discorrendo sobre a escravidão de maneira crítica, já na obra “Valença de Ontem e Hoje - 1789-1952 - Subsídios para a História do Município de Marquês de Valença”, de Leoni Iório, escrita em 1953, é possível encontrar algumas poucas passagens neste sentido. Vale ressaltar também que Iório menciona alguns negros valencianos no subtítulo “Tipos populares” (IÓRIO, 1953, p.145-150). Porém, é crucial atentar para o fato de que Iório caracteriza essas figuras de maneira caricata.

A invisibilidade do negro nestas obras literárias que nos contam a história de Valença corrobora a ideia de que, antigamente, na época em que estes livros foram escritos, a história era contada somente pelos “vencedores”. Hoje, como comprova o livro de Marialva Barbosa, já não é raro perceber nas obras a voz, antes silenciada, dos grupos marginalizados da sociedade brasileira.

É crucial comentar ainda a ausência de menção a algum tipo de letramento dos escravos valencianos na bibliografia tradicional da cidade. Em nenhum momento das obras de Leoni Iório, Luiz Damasceno, ou Rogério Tjader alude-se à capacidade de ler e/ou escrever dos escravos (ou à capacidade e à vontade de interpretar imagens expostas nos jornais impressos do final do século XIX).

Já no livro de Barbosa (2013, p.149-177) boa parte do capítulo “Imaginação visual: a caminho do novo século” trata do tema. No referido capítulo, um dos cenários apresentados “se refere à capacidade leitora e escriturária dos escravos” (BARBOSA, 2013, p.149). Podemos supor que, apesar de não terem sido encontrados rastros deste letramento dos escravos nas obras sobre Valença, os negros escravizados que viviam nesta região possuíam certo grau de instrução, já que alguns tinham condições de compor bandas de música, como aquela patrocinada pelo Visconde do Rio Preto (TJADER, 2004, p. 124-125).

É interessante expor também o caso relatado por Barbosa sobre um crioulo que, em 11 de dezembro de 1873, foi ao Juizado de Órfãos da cidade de Valença para entrar com processo requerendo sua liberdade. O negro, que atendia pelo nome de Romão, assinou no processo seu pedido de liberdade. A autora salienta que tal assinatura “está postada, com letra firme, denotando o manejo das artes da escrita. A letra (...) não é tremida, nem desenhada. Romão escreve seu nome de maneira clara. (...) Romão, crioulo, era capaz de, com firmeza,

escrever seu próprio nome” (BARBOSA, 2013, p. 154). Vale ressaltar o fato de que na literatura tradicional de Valença, não há menção a este acontecimento. Talvez, em trabalhos acadêmicos locais mais recentes, seja possível achar acontecimentos semelhantes ao caso do negro Romão. Mas, como o foco do nosso trabalho foi a literatura tradicional, para justamente elencar ideias-chave, nestas obras, sustentadoras de uma identidade valenciana “oficial”, não buscamos averiguar esta hipótese.

Ainda sobre a questão, Barbosa esclarece que o crioulo mencionado não era uma exceção à regra. Segundo a autora, existem muitos indícios reveladores de outros negros escravizados capazes de ler e/ou escrever (BARBOSA, 2013, p.156). Após expor cartas e diversos outros tipos de documentos históricos escritos ou somente assinados por escravos, Barbosa ainda comprova a existência daqueles que eram capazes até mesmo de criar poemas, mesmo que os versos sejam decifráveis apenas se os lermos em voz alta, visto que sua grafia é feita à maneira que se falava na época (BARBOSA, 2013, p.158-159).

É relevante ressaltar também que a partir da segunda metade do século XIX os homens e mulheres escravizados, grupo que correspondia ao maior contingente populacional das cidades, defrontou-se com a intensificação da cultura do impresso e com a reprodução da palavra impressa em modelo visual, misturando-se a suas maneiras orais de se comunicar:

Percebendo a palavra escrita de múltiplas maneiras, (...) os escravos do século XIX misturavam nas suas práticas leitoras e escriturárias o mundo da oralidade e do letramento. Entretanto, entrar no novo mundo era também a possibilidade de encobertar a exclusão e o aviltamento da condição escrava. (...) saber ler e escrever permitia a eles poderem enunciar nos modos orais uma liberdade que ainda não existia”. (BARBOSA, 2013, p. 164).

Acreditamos que o mesmo argumento serve para justificar a participação dos escravos pertencentes às propriedades rurais do Visconde do Rio Preto em uma banda de música patrocinada por este. Em outras palavras, fazer parte de um grupo de “artistas”, que por vezes se apresentava a um público da elite valenciana13, provavelmente fizesse com que estes escravos se sentissem mais livres e mais donos de suas próprias vidas.

13 Em seu livro “Visconde do Rio Preto: o esplendor de Valença” Tjader nos conta que certa vez a nora do Visconde mandou

celebrar missa de ação de graças na Catedral de Nossa Senhora da Glória, em Valença. E que nesta ocasião a orquestra de escravos, patrocinada pelo Visconde, se apresentou com seus 60 instrumentistas, na companhia de 50 vozes de pequenos escravos (TJADER, 2004, p.125).

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