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CARREIRA EBTT [22], TAE [03]

3. E STUDOS DO LAZER NO B RASIL – NOTAS INTRODUTÓRIAS

3.2. Concepções e outros significados

3.2.2. Sobre ócio

Se o lúdico teria precedência como manifestação inerente à ação humana, e não apenas no âmbito do lazer, pode-se dizer que o ócio está situado num patamar que se aproxima do lazer100 e que, como ensina Marcassa (2002), no estudo já citado sobre a institucionalização do lazer na cidade de São Paulo,

as formas encontradas pelos setores marginalizados para a fruição e a vivência de experiências lúdicas expressam que os diversos usos do tempo livre possuíam um

sentido associado ao modo de organização coletiva que envolvia o cotidiano dessa

parcela da sociedade paulista na época. [...] [O] ócio e as atividades de descanso e

divertimento que não fossem compatíveis com a racionalidade produtiva em ascensão, deveriam ser banidos do [dia a dia] da cidade (MARCASSA, 2002, p.84, grifos meus).

A autora localiza o ócio no domínio da ocupação do tempo livre, que, na perspectiva da formação social capitalista, seria o tempo do não trabalho, funcional e articulado à recuperação da força de trabalho, da capacidade do trabalhador de voltar a produzir com a mesma eficiência (ou ainda melhor) depois de um período de descanso. Marcassa, nesse contexto, ainda indica que o ócio se torna, nesse tempo, um instrumento significativo de organização social, coletiva, o qual, obviamente, tem atenção especial por parte dos proprietários do capital. Em prol da racionalidade produtiva e voltada para o lucro e a produção de riqueza sobrevalorizada pelo trabalhador, mas não apropriada por este, o ócio é algo a ser combatido e, de preferência, extirpado da vida do trabalhador.

Mais tarde, Mascarenhas (2005, p.207-208)101 vai nos dizer que o ócio é identificado como “uma forma residual de apropriação do tempo livre, tendente ao desaparecimento” e “ainda ativo nos dias de hoje”. Ainda assim, diante do peso que o ócio ainda tem na formação social em que vivemos, o autor se propõe o necessário

100 É importante levar em conta que existem diferenças significativas em relação a alguns significados conferidos a ócio na formação social em que vivemos. Em espanhol, ocio é a palavra que vai designar o equivalente ao que entendemos, na nossa cultura, como o conjunto de atividades, práticas e vivências de lazer. Na língua espanhola, também encontramos os vocábulos recreación e recreo para se referir a lazer.

101 O capítulo Em busca do ócio perdido, em Mascarenhas (2005, p.207-240), foi, posteriormente, publicado em Padilha (2006a, p.75-103) com pequenos acréscimos, particularmente no início e no fim.

diálogo com o que “tem sido produzido, sistematizado e difundido a respeito do tema do ócio no campo do lazer” e, grosso modo, identifica duas vertentes: uma, de base idealista, denuncia o abandono da noção clássica de ócio no lazer, considera que sua humanidade se perdeu e reclama “modos de vida do passado como chave para a autodeterminação do indivíduo no presente”; e outra, “paradoxalmente, alinha-se à racionalidade produtiva”.

Na primeira vertente, Mascarenhas (2005) nos indica que é o ideal de ócio

antigo que orienta o entendimento de lazer, que, quanto mais se aproximasse da ideia

da ausência de obrigações, num “modo de vida inteiramente dedicado ao desenvolvimento físico e intelectual com fim em si mesmo” (p.208), mais verdadeiro seria. Observa que, ao se colocar esse entendimento, cria-se uma confusão na qual são impostas sérias dificuldades de compreensão do que seriam um e outro fenômeno, uma vez que lazer e ócio são colocados como articulados um ao outro, este, a partir de um ideal que aquele não deveria nunca perder de vista, sob pena de desvirtuamento da sua essência. Na base das dificuldades indicadas, estaria a precariedade do entendimento da história e da constituição de cada um deles, dado “o flagrante idealismo metafísico de se definir o lazer a partir de uma idéia absolutamente transcendente”, cuja “compreensão é marcada ainda pelo peso de uma boa carga de idealismo histórico” (p.211). Essa perspectiva, na análise do autor, tem como representante mais significativo, dentre os estudiosos do lazer, De Grazia (1966), sendo Bruhns (2002) importante divulgadora do seu pensamento no Brasil e quem, como adverte ainda Mascarenhas (2005), vai indicar que “a retomada do ideal clássico de ócio é algo que não está presente na obra” de De Grazia.

De fato, um exame rápido da obra permite identificar, logo no início, que De Grazia (1966, p.xix) diz ao leitor que se trata de um estudo que leva em conta os elementos que são indicados no título: Tiempo, trabajo y ocio; título original: Of

time, work and leisure. Esclarece que o primeiro seria um elemento fundamental, já

que o lazer nos dias de hoje se mede em unidades de tempo; que o segundo é antônimo do tempo livre, mas não do lazer, e que este e o tempo livre vivem em mundos diferentes, considerando ainda que todos nós podemos ter tempo livre, mas nem todos podem ter lazer; que lazer não é totalmente realizável e seria uma forma, uma condição do homem, desejada para a sua existência, a que poucos aspiram e

outros poucos têm acesso; que um dos principais objetivos do livro seria desfazer a confusão entre lazer e tempo livre.

Assim, ao longo de seu estudo, De Grazia vai abordar as questões sobre os três elementos que indica, com base na sociedade estadunidense do início dos anos 1960, ressaltando, especialmente, os elementos relacionados ao tempo livre diante dos avanços tecnológicos, da utilização das máquinas e de como esses avanços não cumpririam a promessa de mais tempo livre para que os homens usufruíssem, de fato, das várias formas de ocupá-lo, dentre elas, o lazer. Chama a atenção, ainda, para os modos de consumo e lazer e para a influência da mídia sobre esses aspectos na então sociedade estadunidense, particularmente entre os jovens.

A crítica de Mascarenhas (2005, p.210) indica que, ao longo da leitura da obra, poderemos identificar elementos que nos dizem o contrário. Assim, Mascarenhas vai ao encontro do que nos diz Munné (1980, p.42), que inclui De Grazia (1966) entre aqueles que suspiram de forma ardente pela volta à skholé, uma perspectiva do ideal grego de ócio, segundo a qual só seria possível se dedicar à contemplação e ao cultivo dos valores na condição de se estar livre da necessidade de trabalhar, privilégio de poucos cidadãos na sociedade grega. Ainda assim, Munné (1980), como De Grazia (1966), alinha-se aos que defendem a posição de que o lazer sempre existiu, inclusive nas sociedades antigas.102

Sobre a outra vertente identificada por Mascarenhas (2005, p.211-215), alinhada à racionalidade produtiva, “mais que um saudoso e, por vezes, até bem intencionado elogio ao ócio”, afirma-se o seguinte: “vai além, dedica-se a uma verdadeira exaltação do ócio, tomando-o como panaceia para todo o tipo de problema socioeconômico hoje existente”. Busca no ideal grego de ócio, particularmente no espírito livre e criativo do homem na antiguidade, o que possa embasar as teses de economia do ócio, de ócio criativo, cujo apologeta é o italiano De Masi (2001a),103 para quem o trabalho já não representa mais a categoria central que explicaria o papel dos indivíduos e da coletividade; é o tempo livre que passaria a determinar nosso destino, não só cultural, mas também economicamente. A tese

102 Cf. Reis, Cavichiolli, Starepravo (2009, p.64) e Gomes (2003b, p.58; 2004b, p.134).

103 De Masi (2001a) é, na verdade, um texto do autor que integra um livro organizado pelo próprio De Masi, no qual ele reúne textos de Bertrand Russel e Paul Lafargue, autores de cujos conceitos se apropria de forma inadequada, como apontado em crítica de Marcellino et al (2004), a ser indicada mais à frente.

defendida pelo italiano da economia do ócio, a “ocupação prazerosa do ócio pelo trabalho mental suave – daí o apelido de ócio ativo –” (MASCARENHAS, 2005, p.219), resulta da fórmula do ócio criativo, por sua vez, resultado da equação

trabalho criativo mais ócio ativo, que advêm de uma indissolúvel temporalidade, na

qual tempo de trabalho e tempo livre não mais se separam e passam a se suceder, rígida e linearmente. Chega-se a esse cenário por meio da constatação da cantilena de que a substituição da forma industrial do trabalho por tarefas mais flexíveis e mais “criativas” estaria a exigir trabalhadores adaptados a essas mudanças, diante da reestruturação da base técnica da produção, que absorvia cada vez mais o trabalho humano.

Mascarenhas (2005) segue a sua análise advertindo para o fato de que De Masi (1999) escamoteia a divisão social do trabalho ao propor a redistribuição do tempo de trabalho – num elegante e sedutor discurso – sem levar em conta a estruturação dessa divisão em classes a partir da propriedade privada dos meios de produção, exibindo uma suposta aproximação às reivindicações pela diminuição da jornada de trabalho. Parece assustador, diante da formação social em que ainda vivemos, as afirmativas de que

o trabalho criativo requer “tempo integral”: alguém empenhado em absorver um problema cuja solução comporte uma ideia nova (seja ele um artista, um publicitário, um profissional liberal, um empresário ou um artesão) não pode interromper o pensamento perdendo o fio da meada, como fazia o operário que, ao soar a sirene, largava o serviço na cadeia de montagem. Quando aquele que cria

tem um problema na cabeça, seu cérebro trabalha sem cessar, esteja ele no escritório, em casa, acordado, dormindo, entre o sono e o despertar (DE MASI, 2001a, p.15 citado por MASCARENHAS, 2005, p.218, grifos meus).

Essa seria a lógica do ócio criativo, produtivista, uma espécie de ócio à moda taylorista, categoria que, na obra de De Masi (1999, 2000, 2001a, 2001b), vai substituir o trabalho na centralidade para a organização e a explicação da vida.

O que Mascarenhas (2005, p.216) continua a mostrar é que De Masi (1999) não é capaz de uma análise crítica da realidade que considera, pois que não toca, de fato, nas questões de injustiça social, do desemprego, do excesso de trabalho, as quais resultam do descompasso advindo do avanço das forças produtivas, com tudo o que têm hoje de tecnologicamente incorporado, diante de “uma anacrônica cultura

do trabalho que ainda nos aprisiona no reino das necessidades”. O que está em curso,

tacitamente, é a “completa colonização do tempo livre pelo trabalho”, e, nesse processo, o que se percebe é que, de forma implícita à noção de ócio criativo,

articula-se a uma perspectiva instrumental repleta de valores utilitaristas e

compensatórios, conforme indicado em Marcellino et al (2003, 2004)104 e reafirmado em Marcellino (2010). No entanto, adverte Mascarenhas (2005, p.216), o ócio

criativo de De Masi é concebido como o próprio trabalho e não se dá “nem como

compensação escapista às insatisfações do trabalho nem como instrumento para a recuperação da força de trabalho”.

Os autores em Marcellino et al (2004), no entanto, chamam a atenção para a falta de cuidado de De Masi (2001a, 2001b) no aprofundamento de conceitos, particularmente em relação a trabalho e sociedade pós-industrial. Indicam que a utilização dos conceitos de outros autores, por exemplo, é feita por De Masi fora do contexto das obras consideradas e que,

neste aspecto, chama a atenção o uso das obras de Lafargue e Russel, no decorrer dos escritos [...], mas principalmente em A economia do ócio [...]. Os textos são

utilizados descontextualizados da crítica ao modo de produção capitalista [...].

Principalmente em relação ao panfleto de Lafargue, não é a denúncia engajada do trabalho alienado, nem a crítica do trabalho assalariado, à divisão social do trabalho e a luta de classes do modo de produção capitalista, pressupostos fundamentais do texto, que interessam a De Masi, mas simplesmente o elogio do que ele preferiu rebatizar de ócio (MARCELLINO et al, 2004, p.76, grifos meus).

Mascarenhas (2005, p.216) apresenta ressalva acerca das perspectivas utilitaristas e compensatórias que não estariam no horizonte do ócio criativo, e afirma que este nada mais é do que uma manifestação da “expropriação do saber

fazer intelectual, através do adequado envolvimento do trabalhador criativo”

(p.219), que desenvolve seu trabalho em áreas cujas exigências demandam não só sua capacidade de criar, de imaginar, de projetar, de executar o que imaginou, mas de ir além do que projeta, abstratamente, e executa, materializando o que projetou. Como ensina Vieira Pinto,

a lei do progresso humano não consiste na diminuição, em valor absoluto, do trabalho da espécie, mas na transferência dele para as modalidades mais nobres, mais difíceis. [...] O trabalho muscular aplicado pelo camponês no plantio e na lavoura é devolvido com grande acréscimo, em termos energéticos, pela cópia da sementeira. Com esta o trabalhador se sustenta fisiologicamente e se torna apto a nutrir outros indivíduos, capacitando-se, pela manutenção da vida, a realizar o plantio do ano seguinte. A energia produzida em cada safra termina ao ser consumida pelos indivíduos que se alimentam, e a prova está no fato de ser preciso repetir a sementeira no período seguinte. No campo intelectual, ao contrário, toda a contribuição permanece incorporada ao acervo do saber da espécie e vai frutificar em criações intermináveis na sequência de pesquisadores e pensadores que marcam a história do conhecimento humano. Pode se dizer que enquanto no primeiro caso, o

104 Mascarenhas (2005) refere-se a Marcellino et al (2003), pesquisa que foi, posteriormente, publicada na Revista Licere, em 2004.

dispêndio de energia muscular, o crescimento faz-se em progressão aritmética, no segundo, o dispêndio de energia intelectual, o aumento se dá em progressão geométrica. O esforço de criação científica distribui-se por um pequeno número de indivíduos dentro da sociedade, mas a energia mental por eles gasta é sempre crescente, em função do próprio poderio das máquinas, que oferecem à humanidade, em geral, quantidades cada vez maiores de energias físicas, para dominar e transformar a natureza (VIEIRA PINTO, 2005, p.82-83).

Para além de considerar apenas o trabalho intelectual realizado na pesquisa científica, a capacidade de criar, abstrair, projetar e materializar o imaginado como projeto também se apresenta no trabalho da publicidade, da moda, da mídia, da música, do teatro, das artes plásticas, dentre outros áreas de atuação profissional. O que se pretende com a panaceia do ócio criativo, na verdade, é um tipo de trabalho que,105 como indica Mascarenhas (2005, p.219), “opera sobre as mesmas bases de exploração do trabalho material, cultivando, de um lado, a concepção em tempo cada vez menor, na direção da mais valia relativa, e, de outro, a inventividade de tempo integral, ampliando a mais valia absoluta”.

No que diz respeito ao ócio, importam ainda algumas referências ao desenvolvimento histórico do conceito em alguns momentos, um deles, já indicado quando nos referimos à ideia de skholé na Grécia Antiga, onde, tal como nos ensina Marcassa (2004a, p.166), “aparece como um valor nobre, atitude inseparável de um modo de vida contemplativo, ligado ao exercício da filosofia e da política, o que lhe dá lugar na composição do ideal educativo do período: a Paideia”.106 Seu significado é o de “um estado de paz, de fruição criadora, condição para a sabedoria”, para o exercício intelectual destinado ao aprimoramento do espírito, o que, entretanto, “supunha a isenção do trabalho, atividade considerada penosa, desprezível, menor ante a hierarquia do universo, portanto, um serviço de escravos”. Outro momento diz respeito à decadência da Grécia Antiga e à ascensão do Império Romano, quando o ócio passa a ter conotação de “tempo liberado para o descanso para a alma e a recreação do espírito”, indicando que o trabalho deixa de ter a negatividade de antes e “passa a representar dignidade” e, junto com o ócio, a constituir “o modo de vida do homem completo”. A autora esclarece que

105 Importa conferir Lessa (2008) acerca das suas considerações sobre trabalho imaterial, considerado por Mascarenhas (2005, p.220-221) o equivalente ao que De Masi tenta nos vender como a ideia de ócio criativo, algo que, nem de longe, está “a serviço da emancipação humana, mas da destruição criativa desencadeada pelo capitalismo avançado”.

a conjugação e o equilíbrio entre otium (ócio) e nec-otium (não-ócio, ou seja, negócio) e a conversão do ócio à atividade meio e do trabalho à atividade fim, tornam-se condições fundamentais para a manutenção de uma sociedade obediente e mercenária, cujos valores e normas envolviam a submissão ao poder do Estado e respeito aos seus representantes (MARCASSA, 2004a, p.166-167).

O ócio passa a assumir caráter mais recreativo, de divertimento voltado para as massas e usado como instrumento de controle pelo imperador; não é mais modo de vida, como na Grécia Antiga, e relaciona-se, então, com o descanso, com a recreação, assumindo “formas de recompensa e preparação para o próprio trabalho”. Dessa maneira, continua Marcassa (2004a, p.167), “o ócio, que até então significava liberdade, ainda que exclusiva para determinadas camadas sociais, converte-se amplamente na própria não-liberdade”, diante da diversão violenta oferecida como forma de controle e que acaba por brutalizar os indivíduos.

A difusão do cristianismo e a queda do Império Romano são outras referências importantes no desenvolvimento histórico do conceito de ócio, quando passa a ser articulado de forma mais complexa e diferenciada. Junto do ócio popular – cuja compreensão inclui o descanso e a festa sob os olhos atentos da aristocracia feudal e do clero –, “surge uma classe ociosa, nova significação atribuída ao ócio”, com “espírito lúdico classista e a um estilo de vida cavalheiresco”, uma dimensão social que pressupunha, “de um lado, a abstenção do trabalho”, o qual volta a assumir conotação negativa, “e, de outro, o cultivo de atividades livremente escolhidas, como a guerra, a política, as justas e batalhas medievais,107 a religião e a ciência”. São essas atividades que vão distinguir quem as pratica, em termos de “elevada posição social [...] pela diferenciação de classe garantida por uma vida de ociosidade” (MARCASSA, 2004a, p.167). Na Idade Média, aprofunda-se o domínio religioso sobre as formações sociais, e, com ele, a condenação do ócio como um tipo de vício que seria prejudicial ao trabalho, esforço pessoal necessário para criar e acumular riqueza. Evidencia-se, continua a autora, que “formas de ocupação do tempo, como o trabalho corporal, as festas, jogos, espetáculos, danças e comemorações, representavam um perigo à purificação da alma e um desvio dos homens do caminho que os levaria ao encontro de Deus” (p.168), além do risco de se corromperem pelos prazeres da carne.

107 Justas são disputas entre cavaleiros medievais com suas armaduras e o uso de várias armas, tipos de lanças, de espadas, etc. e que ainda são reproduzidas hoje, juntamente com as batalhas medievais, como possibilidades de entretenimento em alguns “parques temáticos de lazer”.

Outra referência diz respeito à industrialização nascente no século XVIII, quando o ócio passou a ter sentido assistencial, destinado não só aos trabalhadores, mas também às suas famílias, como expressão de atividades cujo significado era a busca da valorização utilitária de algo que fosse considerado importante e integrado aos objetivos de progresso e desenvolvimento da época. “Os homens de negócio veem-se pressionados pelas ideias puritanas e pela necessidade de se dedicarem às indústrias em expansão”, e é preciso articular a ideia de ócio ao atendimento dessa necessidade. Nisso, o ócio passa a ser materializado em “passatempos moderados com aparência de dever”, conferindo-se a eles um sentido de ocupação do tempo que, “embora nada lucrativo”, apresenta-se “dotado de alguma utilidade importante” (MARCASSA, 2004a, p.167), a qual se pode imaginar não como algo favorável ao trabalhador.

Finalmente, uma última referência está relacionada ao fato de que,

no Brasil, é no final do século XIX e início do século XX que, buscando alcançar o posto das sociedades mais desenvolvidas do mundo, desenvolveu-se um projeto de controle social que procurou banir as experiências não correspondentes à manutenção da ordem e da disciplina necessários à lógica do trabalho no capitalismo nascente. É quando ao ócio são atribuídos valores como desordem, improdutividade, debilidade corporal e perda de tempo. Como um hábito não circunscrito à esfera da utilidade e estranho aos padrões de comportamento culturalmente dominantes, o ócio torna-se inadequado à sociabilidade da família burguesa e à formação moral dos novos trabalhadores, os quais passavam a assumir uma tarefa crucial no processo de produção e no desenvolvimento social almejado (MARCASSA, 2004a, p.168).

Reforçando o que é indicado de Marcassa (2002) no início desta seção, pode- se considerar que as questões relacionadas ao ócio, como parte dos diversos usos do tempo livre, o constituem como instrumento importante de potencialização da organização coletiva dos trabalhadores nesse âmbito. Nesse entendimento, levando- se em conta que o ócio estaria relacionado a atividades de descanso, ao divertimento e, mesmo, ao lazer, pode-se também falar de uma compreensão de tempo livre como um tempo de não trabalho. Neste, o trabalhador projeta possibilidades de desvencilhar-se do domínio do capital, do trabalho alienado, ainda que, como vimos anteriormente, o tempo livre esteja sob a colonização do trabalho, entendido aqui como trabalho produtivo, alienado, a serviço do capital, e não do trabalhador. Marcassa vai reforçar o que encontra nesse contexto em outros momentos,