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CARREIRA EBTT [22], TAE [03]

3. E STUDOS DO LAZER NO B RASIL – NOTAS INTRODUTÓRIAS

3.2. Concepções e outros significados

3.2.3. Sobre recreação

Marcassa observa que o lazer

parece ser uma instituição que vai sendo criada na medida mesma em que são banidos os hábitos ligados ao ócio e às atividades tidas como ‘ilegais e imorais’ e criados novos programas para atividades lúdicas e lícitas vinculadas à recreação

e à diversão da classe trabalhadora (MARCASSA, 2002, p.148, grifos meus).

Os indícios de que a recreação reúne em torno de sua chancela atividades sob supervisão e controle porque são “lícitas” indicam que é também a partir dela que se fazem as tentativas de controle do tempo e da alma do trabalhador. No próprio estudo que desenvolve, Marcassa (2002) aponta as várias iniciativas, por parte do poder público e sob a influência e o domínio da burguesia da época, na cidade de São Paulo, na implementação de centros de recreios e parques infantis voltados para as crianças e os adolescentes filhos de trabalhadores, locais cujo objetivo era adequar comportamentos e afastá-los dos perigos da rua, sendo que, para isso, um dos principais instrumentos era a recreação. A autora vai nos dizer que,

com a substituição do ócio, representante da preguiça e da insubordinação aos valores vigentes, pela recreação, entendida como receita e remédio para a melhor

ocupação do tempo livre, é possível visualizar os primeiros movimentos pela

institucionalização do lazer na cidade (MARCASSA, 2002, p.191, grifos meus). Se esse entendimento conduz à percepção de que o ócio, tal como situado aqui anteriormente, e o lazer, como situado ao longo deste capítulo, são elementos de ocupação do tempo livre, pode-se supor a recreação como instrumento de organização, sistematização e controle desse tempo dedicado ao ócio e ao lazer. Marinho e Pimentel (2010, p.24) a consideram uma tecnologia que racionaliza esse movimento, o qual, “em geral”, “representou a apropriação de parte das práticas lúdicas tradicionais e sua reformulação conforme interesses nacionalistas, higienistas e moralizadores”. Os autores reconhecem a polissemia de recreação, o que também se diz aqui do lazer e do trabalho, e destacam dois entendimentos em relação ao seu significado.

O primeiro, com base em Wajskop (1995) e Brougére (1998),108 “remete ao surgimento do termo, a partir das écoles maternelles francesas, seguidas pelos

kindergarten frobelianos, as casas di bambini montessorianas e outros modelos de

instituições educacionais”, espaços nos quais, “a partir do século XVII, os jogos eram vistos como forma prazerosa de se moralizarem as crianças” pobres que, antes, “eram amontoadas nos autodenominados depósitos infantis” e as crianças de famílias abastadas “nos educandários que substituíam a educação em casa”. O segundo trata- se de “um movimento de conformação do proletariado, que começa a se delinear como classe social presente no meio urbano” (MARINHO; PIMENTEL, 2010, p.25). Ao voltar o olhar para esse contexto, Gomes adverte para o fato de que

não nos esqueçamos de que a recreação não trata de um direito ou de uma necessidade; tampouco pode ser vista como sinônimo de jogos e brincadeiras. [...] [Trata-se] de um movimento difundido, no Brasil, em função de interesses diversos, de sentidos de educação comprometidos com projetos sociais e políticos também diversificados, mas necessariamente voltados para a conformação, a reprodução e o ajustamento das massas. Em nossa realidade, confundiu-se o lazer com a

recreação justamente para o alcance desses propósitos. A recreação passou a ser, então o ‘lazer’ legítimo, socialmente permitido [...] (GOMES, 2000, p.121, grifos meus).

Diante disso, parecem acertadas as considerações de Marinho e Pimentel (2010, p.24-25) de que a recreação seria a tecnologia de racionalização das atividades lúdicas, recurso operacional a ser implementado, e que, tornada instrumento de controle, iria disseminar, nesse movimento, um sem-número de “manuais de atividades, fórmulas de organização e modelos de intervenção, os quais cumpriam concretamente o objetivo de manter as pessoas se divertindo, recuperando- as dos aborrecimentos cotidianos”. Diante desse cenário, Wajskop observa, ao se debruçar sobre a brincadeira como objeto de análise, que

a maioria das escolas tem didatizado a atividade lúdica das crianças, restringindo-a a exercícios repetidos de discriminação corporal, visomotora e auditiva, através do uso de brinquedos, desenhos coloridos e mimeografados, músicas ritmadas e exercícios físicos. Ao fazer isso, bloqueia a organização independente das crianças para a brincadeira. Através do trabalho lúdico didatizado, infantilizam os alunos, como se sua ação simbólica servisse apenas para exercitar e facilitar (para o professor), a transmissão de determinada visão do mundo, definida ‘a priori’ pela escola (WAJSKOP, 1995, p.122).

Essa visão, assim, não parece divergente dos objetivos de controle das massas, com a diferença de que começa antes de os indivíduos se integrarem,

conscientemente, às massas como adultos. As considerações de Marcassa ajudam a elucidar essa questão, ao indicarem que,

no Brasil, é possível dizer que a recreação está intimamente relacionada à própria história da educação, da escola e, especialmente, do ensino público primário. Sua ocorrência, porém, pode ser observada ao longo de todo o século XIX, contexto em que aparece como componente de um modelo educativo que ficou conhecido como médico-higienista. Tal modelo disseminou ideias e programas a respeito da saúde, da aquisição de hábitos higiênicos, da atenção sobre a infância e do bem-estar físico e moral, desenvolvendo um projeto de controle corporal da população brasileira que visava modificar os comportamentos e os modos de vida herdados da tradição colonial (MARCASSA, 2004b, p.196).

Esse cenário comparece em Gomes (2003b), estudo no qual a autora trata de experiências institucionais ocorridas num intervalo de 38 anos no Brasil, nas prefeituras municipais de Porto Alegre (1926-1955) e São Paulo (1935-1947) e, no âmbito federal, desde o Governo Vargas até o golpe civil-militar (1943-1964), em busca das trajetórias percorridas pela recreação e pelo lazer no Brasil. Na primeira cidade, trata da implantação dos Jardins de Recreio, sob a coordenação do professor de Educação Física Frederico Guilherme Gaelzer e a partir das ações do Serviço de Recreação Pública (SRP), da Prefeitura de Porto Alegre. O diferencial da proposta implantada, tal como aponta Gomes (2003b), estaria no fato de que os locais onde fossem implantados os Jardins de Recreio deveriam ser adaptados “ou construídos com o objetivo de organizar a prática de atividades recreativas para a população” e “se diferenciavam dos espaços onde ocorria o recreio espontâneo das elites” (p.103). Os locais de instalação eram pensados e “planejados de maneira que pudessem adotar programas completos, capazes de proporcionar benefícios físicos e exercer influência moral e social sobre a população”, de modo a cada um ser construído “‘inteligentemente’ [...] e [que] com atividades bem-conduzidas, seria capaz de guiar os impulsos instintivos dos menores, ocupando-os com exercícios e jogos que levariam à moral e ao caráter” (p.107). A recreação articulava-se então estreitamente à Educação Física, como uma moderna metodologia de atuação, e ao esporte, como instituição que, por seus princípios, parecia dar respeitabilidade à iniciativa, que também se articulava a uma perspectiva de educação moderna defendida à época, e, nesse sentido, uma das atribuições do SRP era estabelecer articulação com a Secretaria de Educação e Cultura.

Sobre São Paulo, Gomes (2003b) se debruça sobre a experiência da Divisão de Educação e Recreio do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São

Paulo, que contaria com outras quatro “divisões: Expansão Cultural, Bibliotecas [...] Documentação Histórica e Social, Turismo e Divertimentos”. A criação do departamento tem algumas de suas particularidades descritas, e uma delas é narrada da seguinte forma:

No dia da publicação das nomeações, com espanto e com escândalo, viu-se que para o lugar de diretor do Departamento da Expansão Cultural, em vez de fulano recomendadíssimo pelo partido, saiu o nome de Mário de Andrade; para a Documentação Histórica e Social, em vez daquele bacharel, cabo eleitoral, foram escolhidos Sérgio Milliet e Bruno Rudolfer; para a Biblioteca era nomeado Rubens Borba de Morais e não aquele sobrinho do deputado tal, e para Educação e Recreio

aparecia Nicanor Miranda, em vez de outro protegido qualquer. E assim para

todos os cargos importantes. Houve um barulhão (DUARTE, 1971, p.71 citado por GOMES, 2003b, p.169, grifos meus).109

É interessante notar o envolvimento de intelectuais como Mario de Andrade na constituição do setor e como se destinavam, com base nisso, postos de coordenação de políticas e iniciativas na cultura – a recreação, entre elas – a pessoas que, na época, seriam as mais “competentes” para lidar com elas nas várias áreas. Além disso, pelo menos dois acontecimentos relacionados são significativos:

recreação, ou recreio, aparece na denominação do setor específico ao lado de educação, indicando sua articulação aos processos de formação e de ensino da

população; e a nomeação recai sobre Nicanor Miranda, continua Gomes (2003b, p.176), “considerado, pelos seus pares, um intelectual dedicado, expressivo estudioso de jogos e recreação no país com grande volume de publicações, especialmente na primeira metade do século XX”.

As análises e as reflexões de Marcassa (2002, p.12) vão levar em conta a obra e o trabalho de Nicanor Miranda à frente do Serviço Municipal de Jogos e Recreio da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, ressaltando a influência norte- americana na sua formação, assim como Gomes (2003b) o faz em relação à mesma influência sofrida por Frederico Gaelzer, no Rio Grande do Sul, onde a municipalidade, em Porto Alegre,

considerava fundamental promover o “bem-estar” das crianças pobres: evitando os

maus hábitos, os vícios e a criminalidade e proporcionado-lhes, em contrapartida, meios de educação, de saúde e de recreio. Para tanto, o poder

público municipal deveria reservar espaços livres na cidade de São Paulo, em processo de urbanização, e conduzir as crianças para ambientes considerados saudáveis e atraentes, nos quais pudessem se exercitar, se divertir e, nas palavras de Mário de Andrade, produzir cultura. Por um lado, tal encaminhamento poderia evitar somente as práticas tidas como nocivas à sociedade, como o ócio e a vadiagem; por

outro lado, seria uma forma de minimizar problemas sociais como a fome, o trabalho infantil e a proliferação de doenças. Verifico, neste momento, a

mobilização do poder público em torno de uma questão fundamental para o lazer: a tentativa de substituir “práticas perniciosas” por outras, “saudáveis e recomendáveis” (GOMES, 2003b, p.173-174, grifos meus).

As ações do poder público, como se vê, iam em direção a ter, ou retomar, o controle sobre os modos de viver da população a partir da correta orientação das atividades de educação, de recreio, de condições mais adequadas de vida, principalmente para os mais pobres, pois nos bairros onde moravam, bairros de operários, “a infância se desenvolvia frequentemente em más condições higiênicas e morais, aspecto preocupante aos olhos dos dirigentes municipais paulistas”, como descreve Gomes (2003b, p.176). Percebe-se que os aspectos higienistas e voltados para a moral da burguesia da época foram os que orientaram a instituição dos Parques de Jogos e dos Parques Infantis no cenário da cidade, o que pode ser identificado, particularmente, na criminalização do ócio, da vida nas ruas e no combate à vadiagem por considerarem-nos ocorrências nocivas ao desenvolvimento moral e intelectual dos trabalhadores e de seus filhos, obviamente sem se fazer menção aos filhos das classes dirigentes.

Para ilustrar o contexto da época, um excerto d’O Estado de São Paulo do dia 6 de dezembro de 1936, a partir de referência de Nicanor Miranda, parece ser adequado. Escrevia o repórter (provavelmente, expressando a opinião do jornal e de parcela significativa da burguesia da época, bastante próxima da explicitada nos dias de hoje) que

essas crianças errantes, pelas ruas, praças, ao vício, à perversão, ao jogo, às observações precoces mal-sãs, são aspiradas pelos “play-grounds”, onde as atividades divertidas dos brincos, das piscinas, das marchas, com passagem pelo gabinete do dentista, o consultório do médico, a sala de merenda com o copo de leite, dão saúde, ordem, socialização [...]. Ninguém escaparia à educação. Uma maravilha de Parques Infantis de São Paulo! (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1936 apud GOMES, 2003b, p.178-179).

O entendimento de recreação, nesse contexto, não parecia fugir muito de uma articulação funcional a atividades de (con)formação, principalmente das crianças, com base em uma ideia de educação que levaria em conta uma perspectiva assistencialista na passagem pela via da higiene bem-cuidada na cadeira do dentista e no gabinete do médico e pelo assistencialismo que crê na promoção da saúde articulada ao simples fornecimento de alimentação saudável. Curiosamente, não se indicou que os programas e outras iniciativas oferecidas à população, de jogos e

recreio articulados à educação, seriam destinados a todos, já que os nomeados eram os “adolescentes operários”, os trabalhadores e seus filhos.

A terceira experiência institucional analisada por Gomes (2003b) diz respeito ao Serviço de Recreação Operária (SRO), criado no Governo Vargas, em 1943, responsável, a partir de então, pela organização das horas de lazer dos trabalhadores e de suas famílias. A iniciativa de implantação do serviço se deu no âmbito do então Distrito Federal para, depois, chegar ao restante do país e visava, de acordo com a imprensa da época, “cumprir um programa de assistência social, desenvolvendo esforços no sentido de melhor aproveitamento das horas de folga do trabalhador” (p.236), conforme publicado no Jornal Hora do Brasil, edição de 8 de junho de 1944, e indicado em Brasil (1944, p.284). A criação do SRO atendia a determinações contidas no “Decreto-lei n. 4.298 de 14/5/1942, que previa a aplicação do imposto sindical em finalidades culturais e esportivas”, e ele funcionaria junto a uma “Comissão Técnica de Orientação Sindical, sendo mantido por uma verba destacada, anualmente, pela própria Comissão” (GOMES, 2003b, p.255-256).

Havia, então, a lei de regulamentação das férias, que, “por pressão dos industriais até o ano de 1930, ainda não havia sido aplicada na indústria”, sob a justificativa, dentre outras, dos perigos que o alcoolismo e a ociosidade trariam, como se o trabalhador precisasse que sua vida fosse orientada pelos patrões. Já vigia a jornada de trabalho de oito horas diárias, de segunda a sábado, com o propósito de, “além das necessárias horas de sono para reposição de energias”, garantir aos trabalhadores “um tempo suficiente para que pudessem fazer algo que os distraísse”, tal como indicado por Gomes (2003b, p.241).

Apoiando-se em Sussekind, Marinho e Góes (1952), a autora ainda indica que, ao se aprofundar a discussão do assunto internacionalmente, uma das iniciativas, a partir do “Congresso Internacional de Lazeres Operários, realizado em Liege no ano de 1930”, foi a criação de uma Comissão Permanente junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), “encarregada de coordenar os empreendimentos concretizados em diferentes países, de maneira que todas as formas de educação popular e uma ‘judiciosa, higiênica e saudável’ utilização das horas de lazer pudessem ser asseguradas aos trabalhadores”. Nada diferente da visão funcionalista e articulada ao controle da vida do trabalhador para além das horas que ele permanecesse na produção, em seu tempo de trabalho produtivo.

Na visão da OIT, recreação “saudável e útil” nas horas de lazer era,

indiscutivelmente, preferível ao vício e ao ócio do trabalhador. Aqui vigora, uma

vez mais, o significado de lazer como licere,110 englobando as horas de “não trabalho” destinadas à vivência de manifestações culturais consideradas lícitas e permitidas (GOMES, 2003b, p.244, grifos meus).

Além disso, reforçava a ideologia de criminalização do ócio e de que o tempo sobrante, fora da produção, teria que ser colocado numa perspectiva de acordo com a qual se pudesse ter controle sobre não só das ações do trabalhador como de suas ideias e dos seus modos de viver e se relacionar em função delas. Não foi por acaso a cooptação dos sindicatos para a proposta, o que se deu de forma sutil, uma vez que, segundo indica a autora, ao se constatar “a preocupação em ter o sindicato como aliado”, como “imprescindível para o alcance dos propósitos do SRO”, buscou-se o apoio sindical com os indicativos de que não se pretendia interferir nas suas respectivas formas e modos de se organizar e mobilizar a classe trabalhadora. Se,

por um lado, a organização da recreação operária proporcionava diversão, alegria e satisfação aos trabalhadores, o que poderia ser considerado de grande valia por todos os envolvidos [...], a participação do sindicato, junto ao SRO, deveria ser encaminhada para garantir o alcance desses princípios. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o operário e sua família estivessem felizes e entretidos, poderiam esquecer e aceitar as suas reais condições de trabalho e de vida (GOMES, 2003b, p.256).

Ainda que se considerasse uma alternativa interessante para os sindicatos, particularmente no que diz respeito a atrair os trabalhadores para a mobilização política pela via da diversão supostamente oferecida pelas iniciativas centradas na SRO, não havia como negar que o temor pelo uso “perigoso” do tempo pelo trabalhador, das horas adicionais resultantes da então regulamentação da jornada de trabalho em 48 horas semanais. Havia o receio de que esse uso fosse voltado para o alcoolismo, a prostituição, a delinquência, para os “jogos de azar e todo tipo de ação que poderia provocar a degradação física, moral e social”. Diante disso, “as oportunidades [talvez como uma concessão do poder público, e da burguesia como classe dominante por trás dele] de recreação organizada deveriam ter ‘alto nível cultural’” e ainda serem de fácil entendimento para que todos pudessem ter acesso, “tamanha a sua importância em orientar o ‘adequado, racional e inteligente uso do lazer’” (GOMES, 2003b, p.257).

110 A autora se refere ao significado daquilo que é permitido, que é lícito, que se confere a licere e que, se espera, não esteja atrelado à necessidade de, ainda assim, se pedir permissão.

Toda essa articulação na criação da SRO, e na determinação das funções e das ações que passaria a executar, era difundida internacionalmente como “‘movimento pela recreação’ [...] preocupado com a racional utilização do lazer dos trabalhadores operários, [tendo integrado] diversas propostas de recreação organizada em vários países, fossem eles socialistas ou capitalistas”, como indica Gomes (2003b, p.245).

Percebe-se que a referência a uma ideologia ou outra, como motivo de incluir todos no mesmo barco, só indica que a preocupação com “o que” não foi seguida da preocupação com “o como” e denota ainda que o controle sobre o tempo de trabalho não satisfazia, obviamente, os detentores do poder sobre os modos de produção. Era preciso controlar os sujeitos produtores de sua riqueza também no seu tempo fora do trabalho, de forma a preservar sua integridade como parte preciosa do maquinário de

produção, que, ainda que dotado de vontade própria, a teria, supremo desejo, apenas

para resolver os problemas relacionados aos processos produtivos e produtores. O pensamento era – e parece permanecer assim – de que o trabalhador era coisa, incluída a sua família, peça a serviço do capital que precisa de manutenção como qualquer outro componente da maquinaria. Teria de abrir mão do lazer em benefício do trabalho, mas não no sentido de apropriação pelo trabalhador daquilo que ele produz, do que poderia usufruir, e, sim, na direção de se controlar a totalidade de suas ações, gestos, comportamentos, hábitos.

Importante lembrar que isso aconteceu com o fordismo na sociedade estadunidense, cuja influência nos processos de constituição da recreação no Brasil foi significativa. O fordismo é analisado por Gramsci (2001) como forma de racionalizar a produção, mas também como resultado da intenção de neutralizar a perda de lucro do capital, ressaltando o autor que, mesmo

que uma tentativa progressista seja iniciada por uma ou por outra força social não é algo sem consequências fundamentais: as forças subalternas, que teriam de ser “manipuladas” e racionalizadas de acordo com as novas metas, necessariamente resistem (GRAMSCI, 2001, p.241).

Ainda que alguns setores dominantes também resistissem em algum momento, por conta de preservar a própria riqueza ou de simples resistência ao novo que se impunha, “na América, a racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo” (GRAMSCI, 2001, p.248). De certa forma, é disso que se trata quando se indica que

o trabalhador tornou-se “parte preciosa do maquinário de produção”, do que se pode dizer que seria materializado a favor do capital, levando-se em conta, nas palavras e na concepção de Gramsci (2001, p.247-248), que “a hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”. Isso, no contexto do que se discute aqui, traduzir-se-ia em algumas das posições daqueles que, ingênua, alienada ou conscientemente, colocaram em prática as iniciativas que são explicitadas a partir das análises de Gomes (2003b).

Mantendo-se com o olhar voltado para o estudo da autora, Gomes (2003b,