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CARREIRA EBTT [22], TAE [03]

3. E STUDOS DO LAZER NO B RASIL – NOTAS INTRODUTÓRIAS

3.2. Concepções e outros significados

3.2.1. Sobre lúdico

Huizinga (1971) escreve que “a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana” e que “é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois, nesse caso, limitar-se-ia à humanidade”. Sustenta ainda que “a existência do jogo não está ligada a qualquer grau de civilização, ou a qualquer concepção do universo” e que

todo o ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar, se quiser, a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo (HUIZINGA, 1971, p.30).

Para o autor, é no jogo, particularmente, que se colocam as perspectivas e as manifestações do lúdico, cujas características estão relacionadas ao fato de que ele, o jogo,

é uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com o qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a afirmação de certos grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes (HUIZINGA, 1971, p.16).

Obviamente, não são apenas essas referências que vão dar conta de apreender a totalidade da obra de Huizinga em questão, mas fornecem alguns elementos para entender por qual caminho o autor trilha sua concepção em relação ao homem como homem que brinca, como homem que confere às suas ações uma significação constituída no sentido lúdico conferido ao jogo, e isso implica algo mais do que o simples jogar, já que há por trás dessa ação um complexo de relações sociais que não se pode ignorar. Marinho e Pimentel (2010, p.12) indicarão que, para Caillois (1990) e Huizinga (1971), “é provável que elementos culturais e instituições sociais tenham recebido forte impulso lúdico quando da sua geração” e que “a dinâmica lúdica é estéril por essência”. Nas suas considerações, nos darão as pistas para o que Caillois

99 Huizinga (1971), cuja primeira edição é de 1938, é a obra de referência nos estudos do lazer no Brasil quando se trata das questões relacionadas ao lúdico, e Callois (1990), publicado pela primeira vez em 1958, estabelece um diálogo com Huizinga em termos de que este estabelece não um estudo específico dos jogos, mas sobre o trato com a manifestação lúdica no âmbito da cultura, que se traduziria no jogo.

irá indicar acerca do aspecto significativo de que essa esterilidade essencial está relacionada à

gratuidade fundamental do jogo [...], precisamente a característica que mais o desacredita. É também ela que possibilita que nos entreguemos ao jogo com indiferença, assim como o mantém isolado das actividades fecundas [...]. Nestas condições, parece tanto mais significativo que historiadores eminentes, após aprofundados inquéritos, e psicólogos escrupulosos, após repetidas e sistemáticas observações, tenham pretendido fazer do espírito de jogo uma das molas principais do desenvolvimento das mais altas manifestações culturais em cada sociedade e da educação moral e do progresso intelectual dos indivíduos (CAILLOIS, 1990, p, 9-10). É possível. Mas essa análise, ainda que pertinente, carece de mais densidade quando consideradas algumas características inerentes a certa subversão da ordem societária do capital. Encontramos o jogo em Huizinga (1971) nas características indicadas acima, como uma atividade livre, não séria, desligada de todo e qualquer interesse material, na qual não se pode obter qualquer lucro, indícios do que pode ser o lúdico como elemento da cultura e que se manifesta nos vários âmbitos da vida humana: na filosofia, na arte, na ciência, no direito, no trabalho. Para além da análise do lúdico a partir do jogo, na qual podemos encontrar, como parte do espírito lúdico, o gosto pelo risco, pelo improviso, além do trato com as regras de convivência, aspectos que se estenderiam às várias esferas da vida humana, não há um aprofundamento pertinente do autor em relação às condições socioeconômicas nas quais se daria esse jogo. Mesmo porque ficaria difícil apontar uma atividade, prática ou manifestação cultural na formação social em que vivemos que fosse livre, desinteressada (no sentido lato de não ser alvo de um determinado interesse), desligada de quaisquer objetivos materiais e na qual as regras não fossem resultado de embates nos quais predominaria o controle, não raro, de quem tem maior poderio econômico e/ou político.

É nessa direção que Eco (1989, p.274-277) vai tecer sua crítica a Huizinga, ao escrever que este desenvolve uma teoria do comportamento lúdico, e não do jogo, e que, “depois de ter-nos dito que a cultura nada mais é do que a ordem de um jogo”, seria preciso “dizer-nos qual é o jogo, e como funciona”, mas que não é nisso que Huizinga está interessado. O foco deste é “o fato de que o jogo é jogado”, há o hábito de jogar, e, assim, ele não dá atenção à possibilidade de investigar “o jogo que nos joga”.

Nesse movimento, ao se deter nas dinâmicas do jogo que conduziria o jogador, entende-se que determinaria e/ou conformaria a realidade vivida e

materializada nas relações sociais dos embates entre capital e trabalho. Haveria, porém, ainda a possibilidade de identificar as visões críticas, criativas, transgressoras relacionadas ao componente lúdico próprio do ser humano. Nessa direção, importa considerar que o lúdico independe do lazer, sendo algo inerente ao ser humano e que, portanto, manifesta-se nos vários âmbitos de sua vida. Sendo assim, fica mais adequado analisar as considerações de Pinto (1995, p.20) quando a autora aponta o lazer como o espaço privilegiado do lúdico, na qual se concretiza uma “experiência cultural movida pelos desejos de quem joga e é coroada pelo prazer”. Em Pinto (1998), a autora retoma suas considerações, indicando que a vivência lúdica, como essência genuína do lazer,

é, culturalmente, concebida como brinquedo, jogo, brincadeira ou festa. Revela a emergência do corpo [de] viver o prazer da alegria construída pelo sentir, amar, vibrar, conviver e relacionar em liberdade. Concretiza-se em interações conscientes dos limites e das possibilidades [...] lógicas e eficazes, ao mesmo tempo que simples e inovadoras, descontraídas e compartilhadas pelos jogadores no tempo, no lugar e com os objetos/materiais disponíveis (PINTO, 1998, p.19).

É uma perspectiva que revela uma subjetividade que vai além da simples vivência do lazer (ou de outro âmbito da vida), indicando que os limites e as possibilidades dessa vivência estão no horizonte e que, portanto, se tem consciência do que significa a materialização das atividades e das práticas que se deseja e/ou se assume viver e experimentar. Mas é possível ir além e considerar o que nos indica Silva, M. (2001), que, ao se debruçar “sobre os usos do tempo na infância e a exploração do trabalho infantil”, constata que “não há tempo efetivamente livre para a elaboração da cultura lúdica, pois há ausência de um dos conteúdos ontológicos fundamental para a construção do ser social: a liberdade”. O autor nos revela a dificuldade em acreditar na existência de liberdade “enquanto os sujeitos-crianças estiverem indelevelmente marcados pelo reino da coisa e da mercadoria”, situação que podemos supor também em relação à realidade dos adolescentes e dos adultos trabalhadores. “Talvez seja justamente pelo caráter de liberdade e subversão da ordem”, continua o autor, “em contraposição à lógica da produtividade, que o lúdico seja subsumido da noção de infância na Modernidade”, e não só na infância como parcela da existência humana.

O lúdico indica pistas para a definição de papéis sociais e é cultura humana subjetiva, que se contrapõe à racionalidade produtiva. Por isso, é fundamental compreender o significado social, cultural e político-pedagógico do tempo do lúdico na infância, tempo este que apesar de estar exposto à exploração, não se submete totalmente [à] lógica da racionalidade produtiva e do lucro capitalista. A criança que

muitos afirmam não produzir nada brincando, produz subversivamente a revelia do sistema dominante: prazer, alegria, relaxamento, vida, ética, estética, cultura e história. Ela, ao brincar, torna-se criador e criatura, sujeito e objeto das relações sociais, ao passo que trabalhando em condições desumanas, não passa de um mero joguete, um brinquedo, uma mercadoria nas mãos dos capitalistas (SILVA, M., 2001, p.17).

Em Silva, M. (2012, 229-233), o autor volta a tratar da questão, ampliando, de certa forma, suas considerações na problematização e na abordagem que realiza. Escreve que “refletir sobre o tempo do lúdico implica, em contrapartida, pensar as contradições que se travam entre conformismo, transgressão e resistência política”. Nesse movimento, não se pode abrir mão da realidade, de como e por que as pessoas experimentam o real, o que leva à consideração de que, com base nisso, a vida social comporta a produção do lúdico, numa construção cuja base é estruturada a partir de “pares dialéticos”, entre outros: “quantidade e qualidade, objetividade e subjetividade, repetição e criatividade, monotonia e motivação, conformismo e resistência, consenso e conflito, [...] teoria e prática, alegria e tristeza, prazer e desprazer [...]” (SILVA, M., 2012, 229-230). O autor ainda afirma que, “subjacente ao que se convenciona chamar no capitalismo de tempo do ‘lúdico’ ou tempo de ‘lazer’, está o tempo da produção, intimamente ligado ao tempo mercantil e de circulação da troca, que forja o conceito de tempo de giro do capital” (SILVA, M., 2012, p.230). Isso nos leva a questionar se o lazer será sempre lúdico ou tempo do lúdico por excelência, sobre o que Silva, M. (2012, p.232) escreve: “o lúdico não é sempre festa, prazer, alegria, relaxamento, criatividade e liberdade, considerando que estes aspectos nunca são vividos plenamente na sociedade capitalista”. Pode-se dizer que esses são aspectos que estariam relacionados, intimamente, ao lazer e que este não seria algo que se poderia viver plenamente nesse mesmo contexto.

As considerações de Pinto (1998) e Silva, M (2001), por sua vez, não permitem o desvio do que indica Eco (1989) em termos de que o lúdico materializar- se-ia como construção social no jogo, no jogo que nos joga. A provável idealização de um devir, de uma situação na qual o lúdico ocuparia um lugar significativo nas ações e no imaginário dos sujeitos que jogam e/ou constroem sua própria realidade não resiste à constatação de que essa mesma realidade, uma vez materializada, não teria sido constituída sem os conflitos e as contradições das relações sociais perpassadas por uma racionalidade não só produtiva e atravessada pelo valor da mercadoria e do dinheiro, mas também eivada no arcabouço político-ideológico que

lhe dá sustentação. Em outras palavras, o prazer e a alegria do lúdico na construção da realidade vibram na mesma medida da tensão e das lutas para alargar limites e possibilidades de produzir a própria existência diante da formação social dominante, capitalista por excelência.