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Ana Maria de Almeida Camargo

Universidade de São Paulo | amcamar@usp.br

A busca de critérios para distinguir, em meio à totalidade dos documentos acumulados por pessoas ou instituições, aqueles cujos valores são considerados permanentes, isto é, aqueles que não serão em tempo algum destruídos, continua a ser alvo de acaloradas discussões entre os profissionais da área arquivística. Muito já se escreveu sobre o tema, e não é nossa intenção reproduzir aqui o histórico das diferentes posições assumidas a esse respeito pelos autores. A ideia é, na verdade, verificar até que ponto a tarefa de avaliar documentos de arquivo permite a abordagem interdisciplinar que se costuma esperar quando tais documentos convivem com outros, de origem diversa, em ambientes heterogêneos. E talvez seja esta, justamente, a expectativa de um seminário que, em nome do caldo comum da informação, procura reiterar a existência de laços fraternos entre parentes que não se veem, nem se admitem como iguais.

Convém estabelecer, de partida, o que entendemos por ambiente heterogêneo. Não seria apenas aquele em que coabitam diferentes linguagens, suportes e formatos, como poderia parecer à primeira vista. O impacto do advento de novas tecnologias sempre provoca, em um primeiro momento, o divórcio entre o velho e o novo, como se não houvesse elementos que os aproximassem. Os documentos sonoros e audiovisuais promoveram, em seu tempo, a descontinuidade que ainda se observa quando os vemos, nas instituições de custódia, tratados como se desfrutassem de total autonomia em relação aos demais documentos com que se relacionam. Estranhamento maior ainda o que veio dos chamados documentos digitais, com suas fórmulas e seus conteúdos codificados em valores numéricos discretos. Parecia – e ainda parece – que estamos diante de uma nova realidade, a demandar conceitos, procedimentos e profissionais inteiramente distintos. Mas por ambiente heterogêneo é preciso entender também o espaço típico dos centros de memória, que abrigam documentos de natureza variada: os documentos de arquivo, isto é, aqueles que resultam do processo rotineiro de viabilização de determinadas ações e que, quando preservados, permitem evocá-las; os documentos que se ‘fabricam’ quando os arquivos não respondem de modo direto e imediato a determinadas necessidades; e aqueles que, obtidos de fontes externas variadas, constituem subsídio contínuo para o funcionamento da instituição.

Se tais ambientes sugerem o trabalho colaborativo de profissionais de especialidades diversas, colocando no mesmo plano dados, informações e arrazoados que possam concorrer para

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a produção de conhecimentos úteis à instituição, há algo que resiste ao ideal de platitude a que aspiram as chamadas ciências da informação: o valor probatório dos documentos de arquivo. Em torno desse atributo singular, que constitui a espinha dorsal da ciência arquivística, faremos algumas considerações a propósito da avaliação.

As definições de arquivo não chegam a tocar no âmago da questão: falam em conjuntos de documentos que, acumulados ao longo do exercício de funções, são conservados para que possam subsidiar ações futuras e lhes servir de referência. O caráter essencialmente pragmático que determina sua produção, seja no caso de pessoas, seja no de instituições (públicas e privadas), concentra nos documentos, independentemente do grau de formalidade que ostentam, uma força probatória sui generis, que recai sobre as atividades de que se originaram. Em outras palavras, os documentos de arquivo, além de representá-las, equivalem às atividades para as quais serviram de veículo, o que desloca para o contexto – e não para o conteúdo – seu valor probatório. Cada documento, afinal, como já havia assinalado Jenkinson, corresponde à lógica do produtor e é alheio e impermeável às questões que lhe são colocadas a posteriori.

As consequências desse postulado são fundamentais para que possamos entender a avaliação como um procedimento cuja missão é garantir, na fase permanente, a representatividade do organismo produtor. Isso significa que os documentos, uma vez cumpridos os prazos de vigência que os mantêm à disposição dos interessados, devem ser selecionados para refletir os diferentes contextos que justificaram, ao longo do tempo, sua produção. Um colegiado multidisciplinar com ares de tribunal não resolve o problema. A aceitação tácita de axiomas amplamente difundidos, como o de se poupar de descarte as atividades-fim, também não. O mesmo se pode dizer das patéticas tentativas de atribuir valor histórico a determinados documentos. Se o valor probatório dos documentos de arquivo incide sobre algo que está fora deles, isto é, sobre seu contexto imediato de produção; se concordamos com a ideia de que a função do arquivista é mantê- los sempre ligados a tais contextos, de modo a garantir sua autenticidade; se assumimos que a condição para realizar uma avaliação nesses moldes supõe o conhecimento retrospectivo e pormenorizado da entidade produtora, a fim de cumprir os quesitos de representatividade e proporcionalidade exigidos pelo arquivo permanente – podemos afastar de nossa área um sem- número de opiniões e assertivas equivocadas.

Considerar que os documentos de arquivo são eivados de subjetividade é uma delas. Na visão de determinados autores, os arquivos reproduziriam, como verdadeiras extensões, o pensamento dos dirigentes das entidades produtoras, sempre ávidos por esconder aquilo que poderia macular sua imagem no futuro. O processo de avaliação, por sua vez, nada mais seria do que o acréscimo de outras subjetividades, como a do arquivista, por exemplo. É verdade que há

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maus profissionais encarregados de organizar arquivos, assim como há maus historiadores a utilizá-los como fonte, sem jamais ultrapassar seu conteúdo manifesto. O fato é que nenhum documento impõe a maneira como deve ser abordado. E nenhum documento assume as qualidades do organismo que o produziu, como se os arquivos pudessem ser repressivos, sensíveis ou literários: os arquivos, afinal, não falam.

A parcialidade atribuída aos arquivos que exercem a custódia de documentos originários de organismos estatais levou à construção de outra modalidade de avaliação, que substitui as atividades imediatamente responsáveis pela produção de documentos por contextos mais amplos, alargando-os até chegar à sociedade como um todo ou ao universo das hipotéticas demandas que poderiam suscitar. A maneira de operacionalizar esse tipo de representatividade nunca ficou clara nos textos aliciantes de seus defensores, mais preocupados em mimetizar as crises que, de tempos em tempos, afloram na retórica dos pesquisadores de outras áreas.

Como outros temas, a avaliação – intrinsecamente associada à natureza peculiar dos arquivos e ao tipo de prova que engendram – apresenta-se como pretexto e oportunidade para rever os elementos que sustentam a teoria arquivística e lhe dão autonomia disciplinar. Estas reflexões são apenas um começo.

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COLEÇÕES ESPECIAIS EM BIBLIOTECAS UNIVERSITÁRIAS: DESAFIOS PARA A

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