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manuais escolares e nas planificações dos professores

1. Sobre o discurso regulador

“É preciso reconhecer grandes planos no que poderíamos denominar a apropriação social dos discursos. A educação, por mais que seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, porém, na sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pelas distâncias, pelas oposições e lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (Foucault, 1997: 33-34).

Analisamos neste capítulo programas e manuais, instâncias discursivas que regulam - sem que totalmente as predeterminem - as práticas de ensino/aprendizagem em sala de aula. Uma previsão global dessas práticas, configuradas em planificações anuais, é igualmente abordada neste capítulo, dado estas terem, nesses programas e manuais, uma fonte de referenciação privilegiada. Tentamos assim percorrer, neste momento, uma cadeia de discursos prévios aos discursos de sala de aula, recuperando nessas instâncias a incidência e modo de inscrição da temática focalizada no nosso estudo: a literatura popular de transmissão oral.

Da importância prescritiva dos programas de uma disciplina nos dão conta vários autores. Entre eles, Castro e Sousa salientam o seu papel “duplamente regulador” da prática pedagógica, já que se constituem como referência obrigatória quer para a organização da prática docente, quer para a elaboração de manuais e outros materiais de apoio a essa mesma prática (Castro e Sousa, 1992:18).

Também sobre a “centralidade” dos manuais escolares1 no dispositivo

1

Adoptamos aqui o conceito de “manual escolar”, no sentido restrito apontado por A. Chopin: assim, os manuais “ são definidos pela intenção explícita (título, prefácio, nível, público) ou manifesta (apresentação, estrutura interna) do autor ou do editor”, como obras que se destinam ao ensino (In Castro e Sousa, 1998).

pedagógico, há larga referência em estudos actualmente publicados2. Essa centralidade, assumida no processo de constituição e transmissão do discurso pedagógico, pode ser estabelecida, segundo Castro e Sousa, de vários ângulos: a nível das planificações elaboradas pelos professores, frequentemente apoiadas em manuais escolares; a nível das próprias práticas pedagógicas que “com grande frequência, têm como referência, mais ou menos próxima, algum tipo de manual escolar”, e a nível das aprendizagens realizadas pelos alunos que são ”em larga medida geradas, construídas ou reforçadas por referência aos mesmos manuais” (Castro e Sousa 1998:44)

Enunciado o papel regulador dos programas oficiais, parece-nos relevante salientar, ainda que brevemente, alguns dos aspectos actuais das suas condições de produção.

Constituindo-se como discursos normativos de referência para as acções pedagógicas, os programas concretizam orientações gerais de política educativa a qual atende aos domínios científicos de referência no âmbito dos diversos programas que integram o currículo.

Da ampla totalidade do domínio científico, campo da produção de discursos especializados3 se seleccionam os textos, reposicionados num novo campo discursivo e refocalizados segundo uma outra lógica que lhes impõem outros objectivos e outra sequência, com a finalidade específica de atender ao processo de transmissão e aquisição de conhecimentos.

Porque na elaboração dos programas se atende a discursos que, em parte, provêm dos campos do conhecimento a que esses programas se referem, eles são frequentemente lidos como a condensação de um conhecimento científico, como discursos supostamente neutros relativamente a orientações políticas específicas, sendo vistos como políticas de Estado.

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Entre outros, Alain Chopin “Les Manuels Scolaires – de la Production aux Modes de Consommation” bem como de Fred Finley et M. Cecília Pocovi “Textbook Contribution to Science Curriculum Reform”, publicados em Castro, R.V., Rodrigues, A., Silva, J.L. e Sousa, M. L. (org.), 1999.

3

Este constitui, segundo Bernstein (1996), o “contexto primário” do sistema educativo. Lembremos, no entanto, com Foucault, que os próprios discursos da ciência se produzem no interior de uma disciplina e que cada disciplina historicamente estabelece o que pode ser considerado verdadeiro ou falso numa determinada época, repelindo “para o outro lado das suas margens, toda uma teratologia do saber. ” Por isso, “o exterior de uma ciência é mais e ao mesmo tempo menos povoado do que se crê: há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem sem cessar crenças sem memórias” (Foucault, 1997: 26).

Hoje, no entanto, a “europeização do currículo “ parece tornar-se pouco a pouco, segundo Pacheco, uma realidade, “num processo gradual de convergência de políticas alicerçadas em textos fundacionais4 que impõem conteúdos nos ensinos básico e secundário e ciclos de formação no ensino superior.”

Nesse contexto actual de políticas globalizadas, as reformas curriculares dos ensinos básico e secundário, no nosso país, inserem-se, portanto, numa “regulação conceptual, a montante, ao nível dos mecanismos transnacionais e supranacionais, e, numa regulação normativa, a jusante, no plano da intervenção do Estado” (Pacheco, J.A5).

Acreditemos, com Habermas que “a identidade europeia não pode significar, senão a unidade na pluralidade nacional”6

Esta poderá ser uma explicação para o facto de a literatura popular, que integrou, com configurações e finalidades diversas, os programas de LP, desde o tempo da República, continuar a integrar o currículo actual.

Não é intenção deste trabalho uma análise dos actuais programas curriculares na área do ensino de língua materna, muito menos um estudo histórico, comparando o discurso oficial para este ensino ao longo do tempo7. Para o estudo dos programas e manuais a que nos propomos, elegemos como foco específico de observação a reconfiguração de um “objecto” – o conto popular - em si mesmo já fruto de uma “configuração” primeira, que vimos surgir com as recolhas e estudos dos primeiros folcloristas, como apresentado no capítulo anterior.

A apropriação escolar do conto popular, que denominamos de apropriação de “segunda ordem”, faz-se ao longo da série de discursos acima referidos, que vão dos programas de ensino até ao discurso proferido em sala de aula. É, pois, sobre os modos desta apropriação “segunda” que aqui nos debruçamos.

4

Cf. Relatório “Objectivos futuros concretos dos sistemas de educação e formação”, aprovado no Conselho Europeu de Estocolmo, em 2001

5

Cf. página Web, indicada na nota seguinte.

6

Citado em Pacheco, J.A, “ A ressignificação do currículo em contextos de globalização” Texto disponível no site: http://www.grupolusofona.pt/pls/portal/docs/PAGE/OPECE/PRODUCOESCIENTIFICAS/ PAPERS/ COMUNICAÇÕES – Windows Internet Explorer. Acesso em Agosto de 2008

7

Para uma síntese das mudanças ocorridas nos curricula em Portugal ver João Barroso, Organização e regulação dos ensinos básico e secundário, em Portugal: sentidos de uma evolução.

Um percurso sobre a história dos programas de LP, pode ser encontrado no documento “Programa de Língua Portuguesa / Português: uma visão diacrónica” ME- DGIDC, Dezembro de 2008.