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Sobre os géneros da literatura popular: nota introdutória

manuais escolares e nas planificações dos professores

P ROCESSOS DE O PERACIONALIZAÇÃO :

2.2.2. Os géneros da Literatura popular e os processos de operacionalização

2.2.2.1. Sobre os géneros da literatura popular: nota introdutória

Atentando no item referente aos processos de operacionalização, podemos constatar que o contacto preconizado com a literatura popular contempla uma grande diversidade de géneros.

Sobre a especificidade desses géneros nos debruçaremos, brevemente, agora.

Falar de géneros quando nos referimos à literatura popular de tradição oral é um tópico controverso. Como previne Pascal Boyer, “a maior parte das categorias fundamentais da análise literária perde a sua pertinência quando se aborda a literatura oral”25 (Boyer, 2001: 540)

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Tradução nossa da passagem seguinte: “la plupart des catégories fondamentales de l’analyse littéraire perdent leur pertinence lorsqu’on aborde la littérature orale” (Pascal, 2001:539-544). Como a própria citação indicia, não é apenas o conceito de “género” que se constitui como objecto de questionamento por parte deste estudioso.

O autor interroga-se, aliás, sobre o próprio uso do termo «literatura» quando aplicado a produções que justamente não são fixadas nem transmitidas com a ajuda de letras ou outros signos escritos: “les objets qu’on regroupe sous l’expression de «littérature orale» - cette «littérature» allant des mythes d’origine aux aventures épiques ou à la poésie lyrique, mais incluant aussi les proverbes, les énigmes, les formules gnomiques ou magiques – ont–ils des propriétés communes, et celles-ci peuvent-elles être conçues comme leur «littérarité»?”. (ibidem:539-540)

Considerando categorias fundamentais da análise literária, o autor questiona se estamos a tratar, no caso da Literatura popular, com produções comparáveis às identificadas na literatura das culturas escritas, já que seria necessário rever o próprio conceito de obra (realidade relativamente limitada e estável) que não se ajusta às versões constantemente modificadas de uma recitação para outra.

Também a categoria autor não pode ser aplicada, tal qual, neste domínio, já que os seus “intérpretes” simultaneamente transmitem e recriam e, sem nunca se apresentarem como “criadores”, não podem, no entanto, ser considerados como simples agentes de transmissão. Com efeito, como parecem provar os estudos de Milman Parry e Albert Lord , apresentados pelo autor que continuamos a citar, a divisão entre “composição” e “recitação” não faz sentido quando se analisam os mecanismos da criação na literatura oral. A conclusão semelhante parece chegar o etnógrafo Jack Goody, no seu estudo sobre duas versões de um mesmo mito (o mito fundador dos LoDagaa), recolhido com vinte anos de intervalo: a composição, na literatura oral, perpetuamente alia continuidade e mudanças efectivas.

Estas e outras pesquisas acentuam, portanto, a originalidade do processo de composição oral, diferente da criação literária escrita (ibidem: 540).

A essa originalidade se referia já Jackobson, no seu artigo “Le folklore, forme spécifique de création”, publicado em 1988. Invocando a distinção saussureana Langue/Parole, acentuava a diferença existente entre a criação da poesia oral (facto de langue) e a criação literária (facto de parole) pois, como sublinhava, ao contrário da criação de uma obra literária cuja hora de nascimento «passa por ser o instante em que o autor a regista no papel () O nascimento da obra oral, como facto folclórico, só acontece no momento em que a comunidade a aceita. (Jakobson, 1988:64)

Por isso, também para Jakobson, “o papel de um intérprete de obras folclóricas não se assemelha nem ao do leitor, nem ao do recitador de obras literárias, nem ainda ao do autor dessas obras. () Para o autor de

Também Dan Ben-Amos, aponta a dificuldade em classificar as criações populares da tradição oral26 sentida por muitos dos estudiosos que, no passado, se dedicaram a este domínio (Dan Ben-Amos, 1974:265-266; 275). É, aliás, ainda hoje, uma dificuldade reconhecida pela generalidade dos especialistas de literatura popular27.

Entre nós, Guerreiro (1978), Pinto Correia (Correia, 1992, 1993), Alexandre Parafita (Parafita, 1999, 2001), são alguns dos investigadores que, tentando traçar um inventário dos diferentes géneros da literatura popular de tradição oral, anotam o carácter “algo artificial” ou “pouco satisfatório” dessa tentativa de delimitação (Parafita, 2001:18)28 e reconhecem que “ apesar dos importantes trabalhos publicados nos últimos anos, () ainda nos encontramos longe de ter conseguido uma satisfatória teoria de âmbito geral sobre o texto dessa «literatura oral»” (Correia, 1992:117).

Decorre esta dificuldade, na opinião de Dan Ben-Amos (1974:265-266)29, de se querer teorizar, descontextualizando, aquilo que no seio de uma comunidade específica é entendido como experiência, como vivido.

uma obra literária () esta não é dada a priori, mas submetida a uma realização individual.”; ao contrário, o “poeta folclórico ” é submetido à censura preventiva da comunidade que sanciona a sua criação. (ibidem:62) O estudo relativamente tardio da literatura oral advém, aliás, como Zumthor nos explica, de um forte preconceito dos literatos que os impedia de admitir, ainda na década de 60 do século passado, que “obras- primas” da literatura pudessem ter tido, inicialmente, “apenas” uma existência oral. Percebe-se, talvez assim, o facto de a literatura oral ter ficado entregue ao folclore, à etnografia, não sendo, até muito tarde, objecto de estudo da literatura. A esse propósito, diz-nos Zumthor que «le terme littérature marquait comme une borne la limite du recevable. Un no man’s land isolait celui-ci de ce que, sous le nom de «folklore», on abandonnait à d’autres disciplines». (Zumthor, 1987:8)

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A literatura popular que surge sob a forma de textos impressos (literatura de cordel, almanaques, etc.) não é por nós considerada. A essa literatura não é, aliás, feita qualquer referência nos programas e manuais escolares.

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A essa dificuldade aludem estudiosos como Catherine Velay-Vallantin (1992), Nicole Belmont (1999), Bernardette Bricout (2001), Marc Soriano (2001), entre outros.

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Alexandre Parafita, no primeiro volume da sua Antologia de Contos Populares, referindo a necessidade de uma “delimitação do campo de análise constituído pela literatura popular de tradição oral”, reconhece a “dificuldade em adoptar uma delimitação totalmente satisfatória”, facto que, segundo o autor, se encontra, aliás, suficientemente demonstrado pela existência de um “número razoável de propostas de diversos investigadores” (Parafita, 2001:18).

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Referindo-se ao imenso trabalho desenvolvido pelos folcloristas, o autor comenta, também em jeito de auto-crítica: “ () nous avons employé notre zèle à nous donner une méthodologie scientifique, mais en perdant de vue la réalité culturelle et en consacrant tous nos efforts à formuler des systèmes théoriques d’analyse. Nous nous proposions d’élaborer des concepts logiques susceptibles d’être appliqués aussi bien à une culture qu’à une autre, et de forger des outils destinés à servir de base au discours spécialisé en lui fournissant des termes de référence et d’analyse bien définis. Mais, au cours de ces travaux, nous avons transformé les genres traditionnels, en faisant de ces catégories culturelles de communication, des concepts scientifiques. Notre approche, au lieu de les considérer dans leur dépendance à l’égard d’une expression et d’une perception culturelles, les supposait entités autonomes, assemblages de qualités propres, inhérentes et exclusives, comme s’il ne s’agissait pas de divisions relatives opérées dans une tradition orale formant une totalité, mais de formes pures. Autrement dit, les systèmes que nous étudions obéissent à une taxinomie elle- même enracinée dans la tradition populaire; ils se réalisent dans la culture et varient selon les systèmes

Seguramente, a própria multiplicidade de pontos de vista que até ao momento vimos terem sido elaborados a propósito da literatura popular (cf. Capítulo I) torna difícil uma conciliação de propostas teóricas e, para acrescentar dificuldade à tentativa de uma proposta unificada, concorre também, muito provavelmente, o facto de a literatura popular apresentar géneros apenas relativamente estabilizados, dado que estes, nas performances das suas transmissões, vão reencontrando outras formas composicionais e não só variações temáticas30.

Para Ben-Amos (1974:275), estas produções populares orais deixam caracterizar-se por um conjunto de relações entre os seus traços formais, os seus registos temáticos e os seus usos sociais. Os diferentes géneros resultariam, assim, das diferentes combinatórias desses traços (não implicando, contudo, a obrigatoriedade da sua presença em simultâneo).

Para este autor, a dicotomia prosa/ verso é o “primeiro traço distintivo e o mais geral” de uma categorização da tradição oral, já que, como explica, a “existência ou ausência de uma infra-estrutura métrica da mensagem é a qualidade que se reconhece, em primeiro lugar, em toda a manifestação da comunicação” (ibidem:278). Na sua opinião, contar em prosa é, em diversas culturas, associar uma mensagem ao discurso de tipo quotidiano. Ao contrário, as narrativas em verso podem ter um vasto campo de significação “desde as sanções religiosas até ao simples jogo, passando pelo poder mágico”, segundo as circunstâncias da manifestação folclórica. Todas estas formas de expressão poética têm em comum, no entanto, “o desvio pretendido relativamente ao discurso de tipo quotidiano”, com ele estabelecendo a “distância relativamente ao profano, ao realismo, ao verdadeiro” (ibidem:279), estabelecendo-se aqui o

cognitifs propres au conteur; or nous avons voulu en faire des modèles hors-culture de littérature populaire, capables de servir pour l’analyse, se présentant sous une forme unifiée et ayant une valeur objective. Ce fut un échec, nous l’avouons maintenant; mais on aurait presque pu le prévoir. ”(Dan Ben-Amos, 1974 : 265-266)

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A esse propósito, Dan Ben-Amos sublinha a não obrigatória correspondência entre os temas e os géneros, o que faz com que, no interior da tradição de uma mesma cultura, o mesmo tema possa aparecer, simultaneamente, em prosa e em poesia.

Pela mesma razão, a existência de coincidências temáticas não deve ser vista como o indício de um parentesco directo entre géneros. O autor comprova esta última afirmação, dando como exemplo o caso de “O Rei e o Abade”, correntemente uma forma de narrativa em prosa, classificada por Antii Aarne et Stith Thompson como conto romanesco, e que, no entanto, aparece na tradição judaica, como uma facécia e, no folclore inglês, como uma balada. Segundo o autor, seria abusivo pensar, atendendo à semelhança temática, que um destes géneros se desenvolveu a partir de outro (ibidem: 267-268).

conceito de “verdade”, não pela sua correspondência a um mundo suposto real, mas essencialmente pela forma da recepção e transmissão do que se conta.

Há, no entanto, como o autor reconhece, sociedades que não consideram a forma de recitação de uma história como traço distintivo de cada género e se concentram noutras características das suas narrativas.

A dicotomia verdade/ficção, bem como a função social que as produções orais podem assumir, constituem algumas dessas características.

É recuperando a hipótese de Dan Ben-Amos31 que Simonsen caracteriza os principais géneros narrativos populares, existentes na Europa, com base em características como verdade/ficção, prosa/poesia, protagonista e função social.

Na proposta que apresenta, o conto aparece caracterizado como uma narração, em prosa, de acontecimentos que têm por protagonistas seres sobrenaturais ou humanos ou ainda animais, e que são apresentados como fictícios, tendo por função o divertimento; ao contrário, no mito, ligado a um ritual, os acontecimentos narrados, envolvendo como protagonistas divindades ou heróis, são considerados verídicos pelos membros de uma comunidade. A gesta ou saga, narrativa em verso de acontecimentos considerados verídicos, tem por intervenientes os membros de um clã ou de uma raça. A lenda, por seu turno, apresentando um leque muito heterogéneo de protagonistas, é uma narrativa em prosa, de acontecimentos tidos como verdadeiros e situados num tempo e num local precisos. (Simonsen, 1984:14-15).

Parece não haver, no entanto, até ao presente, um único género que tenha recebido a sua definição completa (Dan Ben-Amos, 1974:265).

Entre nós, Pinto Correia (Correia, 1992:128; 1993:69) apresenta como “hipótese de estudo” uma proposta de classificação dos géneros da Literatura popular portuguesa (que entende como ainda “muito elementar, talvez mesmo simplista em certos aspectos”), atendendo a dois critérios: “à própria natureza da componente discursiva” e à “funcionalidade desses mesmos géneros ou discursos” (Correia, 1993:69)

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Para este autor, poder-se-ia considerar um género como uma forma de arte verbal que consistiria numa combinatória específica de traços, “podendo formular-se as relações entre os diversos elementos de um dado sistema folclórico sob forma de um paradigma” (ibidem:281). Esta perspectiva estruturalista só pode, no entanto, ser tomada como hipótese de trabalho, uma vez que, como afirma, “ Faltam-nos, pura e simplesmente, muitos factos que são exigidos para decifrar um dado sistema de arte verbal, visto que até agora, os folcloristas procuravam soluções para outros tipos de problemas” (ibidem: 280).

Relativamente ao primeiro critério, propõe uma divisão das produções populares segundo a natureza lírica, narrativo-dramática e meramente dramática das composições32.

É dentro de cada um destes “macroconjuntos” que o autor inclui, posteriormente, os principais géneros, atendendo à sua funcionalidade. (ibidem: 65-69

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Assim, integra dentro das composições líricas, quase sempre em verso, as práticas de carácter utilitário e de carácter lúdico.

Nas composições de carácter utilitário inclui as práticas “meramente utilitárias”, de que são exemplo os pregões, mas também as práticas de “intenção mágica e religiosa” (isto é, rezas e orações paralelas; ensalmos, benzeduras e exorcismos; cantigas de embalar), e as “práticas de sabedoria”, incluindo nesse âmbito os provérbios, as sentenças, as máximas, os ditos, etc.

Nas composições de carácter lúdico considera as rimas infantis (de que são exemplo as lengalengas33 e os trava-línguas), as cantigas (cantigas paralelísticas, quadras soltas e outras formas) e as adivinhas (ibidem:67)

O segundo conjunto, de natureza narrativo-dramática, é constituído por “pequenos episódios narrativos”, regra geral em prosa e sempre completados pelo diálogo.

Nele, o autor considera, como primeiro subconjunto, as composições explicativo-exemplares, relatos aceites ou como “reais” ou como “verosímeis”, muito mais marcados pelo “fantástico” do que pelo “maravilhoso”. Nesse grupo, engloba os mitos34, as lendas - definidas como narrativas mais ou menos extensas acerca de vultos históricos ou acerca de lugares muito concretos - e as fábulas e os apólogos, os quais, segundo Pinto Correia, se tornam textos “credíveis” (apesar da inverosimilhança dos protagonistas que são, como sabemos, animais ou objectos), pela exemplaridade das situações que apresentam.

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Segundo Pinto Correia, o primeiro grande conjunto “diz respeito ao sentimento, ao afecto, à confessionalidade ou mesmo a práticas que têm a ver com crenças e superstições”, o segundo, contempla composições, em verso ou em prosa, que assentam na narração e no diálogo, integrando o terceiro, as manifestações de género dramático, isto é, “desde os grandes “autos” aos pequenos diálogos”. O autor considera ainda as vertentes religiosa e profana de cada um destes três conjuntos. (ibidem:65)

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O autor define as lengalengas como “composições poéticas que se estruturam fundamentalmente numa sintaxe de encadeamento sobretudo copulativo e, de modo secundário, relativo (“Amanhã é domingo / pé de cachimbo/ (...) o sino é de prata / que deu na barata, etc.”); (ibidem: 66).

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Pinto-Correia refere entre os mitos que ainda persistem, entre nós, os já identificados por Garrett: o mito do “sebastianismo ” e o mito das “mouras encantadas” (Correia, 1993:67).

Um segundo subconjunto é constituído por composições registadoras- elementares. Trata-se, na definição do autor, de um “conjunto de textos que registam casos vários da experiência humana (...), dotados de significação elementar, isto é, de conteúdo simples na sua estruturação e na própria representação do mundo, mas composto de elementos de grande densidade semântica”. (ibidem: 67-68). Nele, o autor inclui os romances, os contos e as anedotas.

Os romances, de que a Nau Catrineta e a Bela Infanta são exemplo consagrado nos programas e manuais, aparecem definidos como “pequenas histórias em verso () nas quais predomina o realismo dos agentes e das situações”, com recurso pouco frequente ao maravilhoso.

Os contos, que o autor frisa serem “quase sempre válidos para toda a comunidade, adultos ou jovens”, são apresentados como histórias em prosa, muitas delas universais, “nas quais a categoria prevalecente é o “maravilhoso”, apesar de terem, como ponto de partida, o aproveitamento de elementos da “representação do mundo”. Pinto Correia distingue contos que dizem respeito à tradição universal (como a Gata Borralheira, A Bela e o Monstro ou O Capuchinho Vermelho) e contos da tradição nacional de que são exemplo, entre muitos outros, As três cidras do Amor ou Os dez Anõezinhos da Tia Verde-Água.

Num último conjunto, o autor integra as composições críticas / humorísticas sobretudo representadas pelas anedotas.

Dentro do macroconjunto de natureza dramática, considera as composições exemplares, aí incluindo tragédias, dramas, comédias e autos, as composições críticas, de que são exemplo os entremezes, as farsas e as cegadas e, finalmente, as composições registadoras do quotidiano”, que integram representações como as loas.

Mesmo sendo provisória, esta proposta permite-nos compreender as dificuldades de uma tipologia, pela diversidade das produções e pela riqueza de matizes da literatura popular.

Esta pluralidade de produções e de matizes, bem como a diferentes questões que foram ditando (e fazendo divergir) as pesquisas sobre esta

literatura, estão na origem de diversas conceptualizações quanto aos “géneros” da literatura popular que aqui apenas apontamos.

Importa referir, no entanto, que, independentemente destas dificuldades de classificação, grande parte dos géneros da literatura popular acima mencionados são contemplados pelas propostas curriculares que a seguir abordaremos.

2.2.2.2. Os processos de operacionalização e a progressão prevista