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R ELAÇÕES DE SOCIABILIDADE

3.1. Sociabilidade, amigos e família

Se o capital social é um efeito decorrente da participação dos agentes sociais em redes de sociabilidade, ou seja configuração relacionais onde as interacções não buscam explicitamente mais do que a manutenção das próprias relações, importa reconstruir esses importantes contextos de participação social das famílias e indivíduos. Exactamente porque são esses os contextos relacionais de onde podem emergir as relações de solidariedade, dádiva e apoio que concretizam o capital social real.

As relações de sociabilidade tornaram-se objecto de questionamento sociológico através do trabalho de Simmel (1997 [1911], sobre a Geselligkeit, ou sociabilidade, definidas como a forma por excelência da existência social, liberta de todo o conteúdo que não o seu valor em si (Bidart 1988). Esta temática teve algum seguimento, nomeadamente através dos estudos sobre os meios urbanos e seus protagonistas, levados a cabo pela escola de Chicago (por exemplo: Park, Burgess & McKenzie 1925; Wirth 1938; Hughes 1958). A maioria das investigações, quer da escola de Chicago, quer de outras orientações teóricas, centrou-se na análise das relações de vizinhança (Davis, B. B. Gardner & M. R. Gardner 1941; Caplow & Forman 1950; Gans 1967), de amizade (Paine 1969 & 1970; Allan 1979) e familiares (Dotson 1951; Bott 1971 [1957]; Young & Willmott 1987 1957 ; Babchuk 1965).

Simmel (1997 [1911] & 1955 [1908 & 1922]), ao pensar a sociabilidade quase como uma forma lúdica de associação livre,126 tende-a a pensar como um contexto de igualdade livre de interferências materiais, desigualdades sociais e poupado às fricções relacionais da vida quotidiana, já que não adjectivado ou qualificado segundo outros interesses que não os de estar junto (sem fim ulterior). A sociabilidade seria, assim, enquanto forma de interacção justa e baseada na equivalência entre elementos nela participantes, “a relation which is, so to speak, nothing but relationship, in which even that which is otherwise a pure form of interactions is its own self-sufficient content” (Simmel 1997 [1911]: 127).

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Isto dentro de uma visão da sociedade como uma “web of interactions (...) among individuals”, que “come to represent patterned associations, the forms of which constitute the subject matter of sociology” (Perdue 1986). O cerne analítico de Simmel era preponderantemente o desenvolvimento da identidade individual nas sociedades modernas (de forte individualização, devido, basicamente à não coincidência entre círculos sociais de pertença dos indivíduos, mas antes à marcada descoincidência e múltiplas intersecções entre esses círculos).

Esta visão algo purificada e idílica da sociabilidade e de todas as formas conviviais a

ela associadas, provavelmente já com antiga origem intelectual, 127 deu azo a

conceptualizações que acentuaram o carácter expressivo do fenómeno da “atracção social” (Ellwood 2008), em detrimento de qualquer instrumentalidade que nela pudesse estar presente, particularmente face a lógicas societais de desigualdade e dominação como as do capitalismo. Em grande parte, toda a crítica de Sennett quanto à erosão da vida pública e comunitária nas sociedades contemporâneas (Sennett 1992 [1977), partindo de uma análise anterior sobre como o desenvolvimento capitalista tinha fechado os indivíduos na família nuclear (Sennett 1984 [1970]), inscreve-se nesta linha de pensamento. Tal como todos os discursos que exageraram a hipótese da privatização familiar, na senda de Durkheim (1975 [1892]), Parsons (1971) ou Ariès (2000 [1973]). Em última análise deparamo-nos amiúde com discursos ou „dos bons velhos tempos‟, que apenas vêm no presente a erosão „da humanidade da humanidade‟ e o decaimento numa qualquer „era do vazio‟ individualista e fútil (como Lipovetsky 1988),128 ou com discursos senso-comunais que pretendem fazer ora da família uma pura realidade natural que fundaria a ordem social, ora da amizade uma pura realidade individual não-social (contrariando qualquer entendimento da amicalidade enquanto instituição social culturalmente moldada – Suttles 1970; Héran 1988; Bell & S. Coleman 1999).

Toda a temática da amizade é particularmente importante nesta discussão sobre a sociabilidade, já que recorrentemente as sociabilidades familiares são retiradas da análise (Degenne 1983) – quer porque caracterizadas por forte obrigatoriedade prescritiva em comparação com a amizade (Komter & Vollebergh 1997 & 2002), quer porque a família, em muitos discursos, tende apenas a ser vista como o lugar por excelência da desigualdade de género129 e da dominação masculina.130

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Veja-se como Brillat-Savarin (1834 [1825]) pensava, a partir da comensalidade, a convivialidade (palavra, de resto, originalmente relativa a banquetes ou festins), enquanto prazer de viver em conjunto, de procura de equilíbrio comunicacional e troca sinceramente amical. Ou como, mais perto de nós, Ivan Illich (1975 [1973]), no âmbito da sua crítica à modernização e ao impacto corruptor das instituições sobre o ser humano, a pensou enquanto capacidade em desenvolver relações harmoniosas entre os membros de um grupo.

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Quer se pense ou não tal processo como favorecer das lógicas de dominação capitalista, como tende a fazer Sennett.

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Muitas vezes vista como „funcional‟ para o funcionamento do capitalismo, em linha com o pensamento de Engels (1976 [1884]).

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Em relação à amicalidade, a tendência para lhe reforçar o carácter expressivo, individual e igualitário, procura quer afastá-la das relações de tipo comercial onde a instrumentalidade predominaria (Allan 1989), quer das relações assimétricas de tipo clientelar (Paine 1969 & 1970). Contudo, como o estudo de qualquer modalidade de interacção vem demonstrar, todas as relações sociais são sempre atravessadas por lógicas sociais múltiplas. Não só o instrumental e o expressivo podem misturar-se num jogo complexo de ocultamentos, como todas as formas de convivialidade ocorrem em quadros de sociabilidade socialmente estruturados (Forsé 1981) em locais de co-presença (Lopes 2007), bem como diferentes redes de amicalidade (e outras) levam a diferentes oportunidades estruturais (F. R. Santos 1994), de tal modo que “what is necessary in order to understand the generation of different forms of sociability is a rather wider view of class” (Allan 1989: 131), ou seja, dos processos de diferenciação e desigualdades sociais.

No importante trabalho sobre a amizade de Claire Bidart (1988, 1991 & 1997), verificamos como esta, constituindo-se a partir dos quadros da vida corrente (círculos sociais como os contextos locais, organizacionais, locais de emprego, as redes sociais, etc.) e possuindo temporalidades próprias de uma história relacional com começo e fim, é fortemente marcada pela homofilia social, que traduz a inscrição social das amizades (ver também Héran 1987c). Homofilia etária (a mais marcada),131 de género132 e de classe (particularmente nos extremos da estrutura social). Não quer isto dizer que possamos reduzir as lógicas da amizade a estritas causalidades sociais, mas que estas não deixam de estar fortemente presentes mesmo na mais idiossincrática das eleições amicais. Igualmente, quanto maior a ligação entre amigos (circunstância, de resto, onde a homofilia tende a acentuar-se), também porque mais longa e profunda a história dessa intimidade, mais o outro “apparaît alors relativement dégagé des repères conférés par l'ordre social (...), plus proche de sa dimension de personne” (Bidart 1997: 376). Ou seja, mais os eventuais determinantes sociais (ou mesmo psico-sociais) da relação se transmutam, o que não é uma mera máscara ilusória, em pura relação aparentemente não determinada.

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Embora a propensão para a escolha de amigos da mesma idade não seja igual em todas as idades da vida. Quando mais se envelhece, maior a tendência para diversificar as idades dos amigos. Igualmente, o estatuto conjugal, parental ou posição no curso de vida familiar se tendem a provocar efeitos homofílicos nas amizades. É de notar, no entanto, que existem autores que, pelo contrário, acentuam o carácter heterofílico das redes de amizade (Estanque & Mendes 1997: 212).

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Mais marcada nos homens que nas mulheres, já que estas, estando mais implicadas nas relações de parentesco, apresentam uma panóplia de interlocutores mais diversificada (também em termos etários).

Tal como, no respeitante às relações familiares, onde a comunalidade material que assegura a continuidade grupal se transmuta em apego interpessoal, também a amizade transforma o material em simbólico. É claro que nesta última com menor carácter prescritivo, logo mais revisível ou mesmo reversível. De toda a maneira, estamos a falar de relações onde o instrumental e o expressivo se mesclam profundamente, mas que tendem a ser sustentadas por puras narrativas expressivas (Lima 1993) que, por ocultarem a materialidade que também está na sua origem, mais espaço lhe dão para ser eficiente. Não é, no entanto, uma realidade mais real que a outra. Ambas o são. Ainda que possamos, como a fazemos quando analisamos o capital social, indagar dos impactos preponderantemente instrumentais desses efeitos.

Da mesma maneira não podemos ignorar as redes de sociabilidade familiares no total da sociabilidade, já que, mesmo que relativamente concentradas em número parco de parentes, demonstram ser particularmente activas (Crenner 1998), ao ponto de vários autores falarem de um círculo familiar persistente (Bonvalet et al. 1993).133 Igualmente as relações de vizinhança participam da sociabilidade (Héran 1986, 1987a & 1987b), ainda que vários autores tenham sublinhado a sua distinção em relação quer à amizade quer à família (Cantor 1979), marcando, nomeadamente, como, quando se trata de dar apoio, os parentes mais próximo têm prioridade, seguidos por outros parentes, amigos e só depois os vizinhos (Sahlins 1972).

Se o capital social, na sua multiplicidade real e conceptual (mas não alargado a processos mais vasto, e analiticamente mais societais, de coesão, confiança ou associativismo), ainda que devendo ser umbilicalmente conectado com lógicas de apoio (enquanto sua concretização), assenta em relações de sociabilidade que não procuram expressamente mais do que o estabelecimento e manutenção da própria relação, mas que mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, serão das mais eficientes na manutenção duradoura de interesses materiais (não percebidos como tal). Os contextos de sociabilidade serão, podemos pressupor teoricamente e verificar empiricamente, aqueles onde se realizaram as lógicas de apoio, nomeadamente, dada a conceptualização que defendemos do capital social real, porque estas respeitam a recursos obtidos através de uma rede de relações duráveis segundo uma lógica preponderante de gratuitidade, e não de troca clientelar, mercantilizada e contabilística (mesmo que em modalidade e espécies não directamente económicas).

Certo é, como já discutimos, que não se pretende que as relações de sociabilidade, ou mesmo as de apoio e dádiva, sejam reduzidas instrumentalmente ao seu carácter de capital

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Ver também Bonvalet & Leliévre (1995), Bonvalet, Maison & Le Bras (1996), Bonvalet & Maison (1997, 1999, 2001 & 2002), Bonvalet, Gotman & Grafmeyer (1999), Bonvalet (2003).

social mobilizável (como bem critica Bidart [1997]) e, portanto, desde logo apenas entendidas como recurso utilizável na divisão social do trabalho com impacto na posição social dos agentes. Produzirem, as relações de sociabilidade e de apoio, capital social é uma das suas dimensões ou instância – não a sua totalidade. Esta dimensão de capital social das relações de sociabilidade e de apoio, aliás, não estará necessariamente subjectivamente presente aquando dos eventos de convivialidade ou de ajuda que as consubstanciam, exactamente porque levadas a cabo numa lógica preponderante de gratuidade decorrente de laços sociais familiares e amicais (ou semelhantes).

Se ser capital social é uma das dimensões dos apoios e das sociabilidades, então não apenas os primeiros, mas também as segundas devem ser reconstruídos e analisadas na sua articulação com os processos de diferenciação classista. Mesmo que os seus efeitos não se esgotam nessa diferenciação. Neste sentido procurámos reconstruir as relações de sociabilidade dos elementos dos agregados domésticos inquiridos (o casal e seus filhos) com elementos exteriores a esses agregados nucleares através das relações de convívio numa série diversificada de áreas possíveis de sociabilidade. Esta reconstrução analítica dos convívios e dos seus protagonistas permite-nos não só saber dos contextos relacionais de onde emergem as lógicas de apoio (aferindo o ajuste entre sociabilidade e solidariedade), como também perceber os diferentes contextos relacionais de diferentes protagonistas conviviais, além de nos dar a conhecer parte relevante dos processos de participação e integração social externa das famílias.