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"[…] a mim também me agrada que o quanto possível os nomes sejam

semelhantes às coisas; mas temo que na verdade, segundo a expressão de Hermógenes, seja forçado puxar assim pela semelhança, e que seja necessário lançar mão deste grosseiro recurso, a convenção, para a justeza dos nomes. Pois talvez do mais belo modo possível falaria quem falasse com todas ou com a maior parte de palavras semelhantes, isto é, apropriadas, e do mais feio em caso contrário.”

(Platão, Crâtilo, 435 c, trad. de José Cavalcante de Souza)

A linguagem humana é pensamento-som, conforme a expressão feliz de Saussure. Mas nem o pensamento nem o som se comunicam por si mesmos: aparecem, para o homem em sociedade, já reunidos em articulações que se chamam signos.

A rigor, dentro da teoria de Saussure, nada há de verbal aquém da síntese pensamento-som, nem além dela. O som em si e o pensamento em si transcendem a língua. No entanto, a experiência de cada um nos diz que a poesia vive em estado de fronteira. Como a Matemática. No poema, força-se o signo para o reino do som. No teorema, o signo é repuxado para as convenções do intelecto.

O signo, enquanto junção de certos pensamentos a certos sons, é um fenômeno histórico e social. O que, na linguagem de Saussure, quer dizer: "arbitrário". O signo pode manter-se

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igual a si mesmo por longo tempo, mas pode também mudar, ficar irreconhecível, ceder seu lugar a outro, enfim morrer. Ele não é uma espécie fixa do mundo vegetal, como a samambaia, que se reproduz idêntica em nosso planeta há trezentos milhões de anos. O seu valor apura-se exato em um contexto. E as conotações que o penetram são, quase sempre, ideológicas.

Pode-se perguntar, porém, se a substância da expressão (como Hjelmslev batizou a matéria da palavra) não traz ainda em si marcas, vestígios ou ressoos de uma relação mais profunda entre o corpo do homem que fala e o mundo de que fala.

Qualquer hipótese que se inspire na motivação da palavra deverá levar em conta essa intimidade da produção dos sons com a matéria sensível do corpo que os emite.

A voz é vibração de um corpo situado no espaço e no tempo. É de supor que tenha ocorrido, em algum momento, uma relação vivida (difícil de precisar em termos de consciência, hoje) entre os movimentos do aparelho vocal e as experiências a que se vem expondo o organismo há milhares e milhares de anos.

Não se pode, sem forçar argumentos, negar a intenção imitativa, quase gestual, dos nomes de ruídos, as onomatopéias, nem o caráter expressivo das interjeições, nem, ainda, o

poder sinestésico de certas palavras que, pela sua qualidade sonora, carregam efeitos de

maciez ou estridência, de clareza ou negrume, de visgo ou sequidão: fofo, retinir, clarim,

guincho, roufenho, ronronar, regougo, ribombo, ruflar, ululo, paul, miasma, lesma, lasca, rascante… A

expressividade impõe-se principalmente na leitura poética, em que os efeitos sensoriais são valorizados pela repetição dos fonemas ou seu contraste. E a Estilística não tem feito outra coisa senão multiplicar exemplos de "harmonia imitativa", "eufonia", "imitação sonora", "pintura sonora", "simbolismo fonético" ou, mais recentemente, na esteira de Peirce, "iconicidade", termo talvez menos justo, pois implica a idéia de uma estrutura visual inerente à palavra, tese que ainda está por demonstrar.

Mas já foi observado também que as onomatopéias formam um conjunto exíguo de palavras em qualquer língua: são, na metáfora de Max Müller, "os brinquedos, não os instrumentos da

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linguagem" 1. A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais, da representação e da expressão, funções que, no estágio atual das línguas

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A citação está em As Onomatopéias e o Problema da Origem da Linguagem, de Rodrigo de Sá Nogueira. Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 61.

conhecidas, foram assumidas largamente por palavras não onomatopaicas.

O código dos fonemas disponíveis em qualquer língua é reduzidíssimo se comparado com o sem-número de mensagens que o homem pode articular. Logo, ainda que na origem tenha ocorrido um paralelo estreito entre som e sentido, esse pareamento não pôde manter-se na íntegra, em vista da multiplicação espantosa de signos que a vida social foi criando para suprir novas necessidades de representação, expressão e conceptualização.

A economia dos elementos mínimos (no caso, fonemas) é a razão de ser de qualquer código. Desde que se arme uma sintaxe, isto é, uma combinatória feita de seqüências, começa a prevalecer o sistema social da comunicação sobre o som em si, organicamente motivado. Já não é o som em si que significa, mas o signo complexo, a frase, o discurso. Esta, sempre, a lição de Saussure.

Continua, porém, de pé a pergunta, a inquieta busca que a leitura poética sugere a cada passo: os movimentos, de que os fonemas resultam, não são, acaso, vibrações de um corpo em situação, ex-pressões de um organismo que responde, com a palavra, a pressões que o afetam desde dentro? Esta pergunta, secundária para a Lingüística saussuriana, remete à incancelável presença do corpo na produção do signo poético.

Para respondê-la, o velho conceito de imitação não basta. É preciso sobrepor à simples mimese a reação expressiva, a resposta peculiar de um organismo humanizado que já se diferenciou da natureza e vive em tensão com ela. A linguagem tornou-se possível graças ao intervalo que medeia entre o homem e a natureza, entre o homem e o outro homem: ela se constituiu à medida que procurou franquear o intervalo sem poder abolir, antes sustendo, a diferença.

Na fonte de todo o processo da fala temos uma presença energética: uma vontade- de-significar que produz as miríades de

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ações verbais e não-verbais a que chamamos fenômenos de expressão e de comunicação. Essa força intencional de base, própria de todos os atos psíquicos, é capaz de fazer

presentes objetos distantes ou imaginários. E é capaz de trazer a consciência a si mesma. Mas como se dá tal ato de presença? Mediante signos.

O signo é um segmento de matéria que foi assumido pelo homem para dar ato de presença a qualquer objeto ou momento da existência. No caso da fala, o signo é formado por uma substância, o som: ondas de ar que ressoam nas cavidades bucal e nasal. A onda sonora é articulada no processo de fonação: encontra aí obstáculos como o palato, a língua, os dentes, os lábios. Em termos de uma antiga antropologia: o Espírito (a vontade-de-significar, a intencionalidade) vale-se do espírito (o sopro ardente do organismo) para fazer dele o mediador na teia de relações entre o sujeito e o mundo. O processo pelo qual o espírito-sopro é trabalhado pelo Espírito chama-se significação; a sua figura principal chama-se signo.

O signo vem marcado, em toda a sua laboriosa gestação, pelo escavamento do corpo. O acento, que os Latinos chamavam anima vocis, coração da palavra e matéria- prima do ritmo, é produzido por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdominais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, plenamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, o tubo anelado e viloso da traquéia, as dobras retesadas da laringe (as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras dos dentes ou brandas dos lábios.

O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percurso, feito de aberturas e aperturas, dá ao som final um proto-sentido, orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua busca de significar. O signo é a forma da expressão de que o som do corpo foi potência, estado virtual.