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UMA SÓ TOTALIDADE: FORMAS CONTRÁRIAS DE DIZÊ‐LA 

No documento Alfredo Bosi - O Ser e o Tempo Da Poesia rev (páginas 136-141)

A ideologia não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a visão para certos

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ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, idéias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença. O papel mais saliente da ideologia é o de cristalizar

as divisões da sociedade, fazendo-as passar por naturais; depois, encobrir, pela escola e pela

propaganda, o caráter opressivo das barreiras; por último, justificá-las sob nomes vinculantes como Progresso, Ordem, Nação, Desenvolvimento, Segurança, Planificação e até mesmo (por que não?) Revolução. A ideologia procura compor a imagem de uma pseudototalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas ("cada coisa em seu lugar", "cada macaco no seu galho"), mas que não admite nunca as

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contradições reais. A ideologia dominante não consegue ser, a rigor, nem empírica nem dialética. Não consegue ser empírica porque as leis do mercado e da burocracia desprezam a face do ser vivo singular. A ratio abstrata transformou o corpo e a cabeça de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria-prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e consumida. Pela força mesma dessa abstração, que o capitalismo incha e reproduz a cada momento, a ideologia tampouco suporta o momento da negação com que o pensamento dialético exige que a "má positividade" seja superada.

Sob o peso desse aparelho mental não totalizante, mas totalitário, vergam opressos quase todos os gestos da vida social, da conversa cotidiana aos discursos dos ministros, das letras de música para jovens às legendas berrantes dos cartazes, do livro didático ao editorial da folha servida junto ao café da vítima confusa e mal-amanhecida.

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, "esta coleção de objetos de não amor" (Drummond). Resiste ao contínuo "harmonioso" pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.

Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura,

o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um ou outro pseudovalor formal vigente — e, daí, obliquamente ideológico — venha a cruzar o seu jogo verbal.)

A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e a acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. Em termos quantitativos, nunca foram tão acachapantes o capital, a indústria do veneno e do supérfluo, a burocracia, o exército, a propaganda, os mil engenhos da concorrência e da persuasão. A ferida dói como nunca. Os seus lábios estão sempre abertos. Não os fechará quem feche os olhos.

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Dos caminhos de resistência mais trilhados (poesia-metalinguagem, poesia-mito, poesia-

biografia, poesia-sâtira, poesia-utopia), o primeiro é o que traz, embora involuntariamente,

marcas mais profundas de certos modos de pensar correntes que rodeiam cada atividade humana de um cinturão de defesa e autocontrole.

A poesia vista como uma técnica autônoma da linguagem, posta à parte das outras técnicas, e bastando-se a si mesma: eis uma teoria que estende à prática simbólica o princípio fundamental da divisão do trabalho e o exalta em nome da maior eficiência do produtor.

O "poético" — deslocado e posto em código até adquirir a consistência de uma retórica de formas ou de conteúdos — já aconteceu no Arcadismo e no Parnasianismo, estilos de versejar rentes ao ascenso burguês. A Arcádia está para a Ilustração assim como o Parnaso está para o Positivismo. Arcádia e Parnaso: os nomes dizem lugares, espaços altos, sólidos e reclusos onde legitimamente se exerça o ofício do verso. Lavor que se aprende pelo compulsar diurno e noturno dos clássicos, modelos acabados da única dicção bela. Et in Arcádia ego…, Gradus ad Parnassum, Nulla dies sine linea, Otium cum

dignitate… Quanta alienação, quanta doce credulidade nessas divisas! Mas ainda aqui

os ofícios e as profissões liberais. É o não que o velho status eclesiástico diz ao avanço do mercado burguês. O poeta-literato crê isolar-se da tecnocracia do dinheiro opondo-lhe, altivo, a técnica do fonema e do grafema. E, como o concitava Bilac, lutará até à morte, de lança em riste (mas "longe do estéril turbilhão da rua"), "em prol do Estilo".

Antônio Gramsci anotava no seu diário de cárcere quando subia na Itália a maré do caligrafismo:

Quando uma obra de poesia ou um ciclo de obras poéticas se formou, é impossível prosseguir aquele ciclo com o estudo e com a imitação e com as variações à volta daquelas obras; por esta via obtém-se apenas a chamada escola poética, o servum pecus dos epígonos. A poesia não gera poesia; não há aqui partenogênese; requer-se a intervenção do elemento masculino, de tudo quanto é real, passional, prático, moral. Os mais altos críticos da poesia aconselham-nos, neste caso, a não recorrer a receitas literárias, mas, como dizem, a "refazer o homem". Uma vez refeito

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o homem, refrescado o espírito, uma vez surgida uma nova vida de afetos, surgirá então, se surgir, uma nova poesia 5.

A "maneira", o "estilismo", o "caligrafismo" são variantes industriosas da letra que sai da letra para compor novas letras.

A era do produto em série para o consumo de massa veio, nesta altura da história da reprodução cultural, simplificar o processo. A maneira e o estilismo acadêmico resultavam de aplicações pessoais ao texto de certas tendências do gosto poético dominante. A escolha do tema, o tom, o modo de compor, as palavras-chave, a natureza das metáforas, as cadências do fraseado, tudo constituía objeto de um saber literário artesanal que encontrava nas retóricas o seu código normativo. Com o advento da automação, a metalinguagem tomou formas ainda mais categóricas do que as sugestões difusas da retórica pré-industrial. Quem lê o Manifesto Técnico do Futurismo, escrito por Marinetti em 1912, topa com verdadeiras "ordens de serviço" técnico-gramaticais: empregar o verbo só no infinito, abolir o adjetivo, abolir o advérbio, só admitir

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A. Gramsci, Obras Escolhidas, Lisboa, Estampa, 1974, vol. II, pp. 219-220, A citação final é de Benedetto Croce, Cultura e vita morale, 1922, p. 241.

substantivos compostos ("homem-torpedo", "porta-torneira"…), suprimir os termos de comparação ("como", "qual", "semelhante a"), abolir a pontuação, empregar os sinais da Matemática (+ - X: = < >) e as convenções da partitura…

Trata-se de um caso extremo de entrega à concepção tecnicista da linguagem poética que tem seduzido mais de um intelectual em nosso tempo. Querendo libertar o escritor, o futurista dava-lhe novas fórmulas que acabariam compondo a nova retórica do texto. A estrutura que subjaz à poética da metalinguagem é o mito capitalista e burocrático da produção pela produção, do papel que gera papel, da letra que gera letra, da rapidez (time is money), da eficácia pela eficácia (o que interessa é o efeito imediato); em Marinetti, da violência pela violência: guerra sola igiene del mondo.

Toda vez que por "metalinguagem" entendo o domínio antecipado e vinculante de um código, estou diante de um estágio

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avançado de reificação do fazer poético: é a ideologia acadêmica que, já na fase tecnicista, põe a nu o seu know-how.

No entanto, posso entender por "metalinguagem" não a ostensão positiva e eufórica do código; não a norma, a regra abstrata do jogo, mas exatamente o contrário: o momento vivo da consciência que me aponta os resíduos mortos de toda retórica, antiga ou moderna; e com a paródia ou com a pura e irônica citação, me alerta para que eu não caia na ratoeira da frase feita ou do trocadilho compulsivo. Aqui, a consciência trava mais uma luta e cumpre mais um ato de resistência a essa forma insinuante de ideologia que se chama "gosto".

A lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade, é discreta, não obstrui ditatorialmente o espaço das imagens e dos afetos. Antes, combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela dá à palavra um novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos. Valéry, Montale, Drummond e João Cabral de Melo Neto são mestres nesse discurso de recusa e invenção.

No documento Alfredo Bosi - O Ser e o Tempo Da Poesia rev (páginas 136-141)