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A SUPLÊNCIA DA VOZ: UM NOVO MODO DA PRESENÇA 

A um pintor o mestre zen aconselhou que se convertesse no bambu que desejava pintar. A arte deveria, no limite das suas forças, apagar a diferença, saltar o intervalo que

separa o corpo da natureza. É precisamente o que faz a mão: adere à superfície da matéria ou penetra-a para modificá-la, para suprir a distância entre o que a natureza é e o que o homem quer que ela seja. As mãos obedecem a um impulso constante no sujeito de converter o objeto à sua própria e dinâmica substância. As mãos submetem, o quanto podem, o mundo aos fins do homem. E elas podem fazê-lo facilmente, maneirosamente, porque são contíguas às coisas: sólido no sólido, pele contra pele, matéria junto a matéria.

A voz, não. Age quase sempre à distância ou na ausência do objeto. O seu ser, que não se vê, não move diretamente a coisa, substitui-a, evoca-a, faz que ela dance com outras coisas, leva-a rápido da esfera da imagem para a do conceito e a traz de volta, no ritmo e na melodia, ao estado de pura sensação.

Os naturalistas que prestaram o ouvido ao pio e ao canto dos pássaros já sabem o que essas vozes querem dizer: o desejo da companheira ausente ou o medo do perigo iminente. O som do pássaro é expressão da "falta que ama" ou é o alarma dado ao amigo para que, ouvindo, fuja e se salve das garras do predador.

A voz abre caminho para que se dê uma nova presença dos seres: a re-presentação do mundo sob as espécies de significados que o espírito descola do objeto. A voz produz, no lugar da coisa, um fantasma sonoro, a palavra. "O ser da linguagem” — diz Jacques Lacan — "é o não-ser do objeto" 10. No coração da frase esse espectro pode fazer as vezes até de um ser que não existe: é a mentira, demoníaco poder da voz. "Como os ratos

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fazem às nozes, a língua esvazia as palavras", diz a metáfora ardida de um filósofo do signo, Antonino Pagliaro 11.

Os fonemas, peões desse intérmino jogo de suplências, não poderiam ser menos flexíveis do que os móveis dedos da mão. Se é a mesma destra que mata e salva, é o mesmo som que integra um signo de luz e um signo de treva, um signo de agrura e um signo de júbilo. As conotações não transparecem em cada som isolado, mas precisam ser

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Cf. J. Lacan, Écrits, Paris, Seuil, 1966.

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reativadas pela pronúncia e pela entoação, que fazem o papel de gestos vocais. "O homem que fala pode modular a matéria fonética quanto quiser e puder a fim de deitar mão, pictoricamente, no caráter sensível da coisa." 12 O fato de a prosódia ser trabalhada subjetivamente não quer dizer que ela seja caprichosa ou falsa. Quer dizer, apenas, que o nexo entre o som do signo e o objeto não é auto-evidente, direto, mas deve contar: a) com os limites do código lingüístico que, naturalmente, não dispõe de um som para cada experiência; b) com a mediação interpretante que o sujeito executa ao refazer em si, e de cada vez, aquele arcano acorde potencial que abraçaria signos e coisas.

Que essa consonância profunda tenha marcado a fala humana mais primitiva, é a hipótese fascinante que suporta, desde o Crátilo platônico, as teorias poéticas da origem da linguagem. E, apesar das fortes reservas, era o que pensava um lingüista atentíssimo ao som do signo, Edward Sapir: "Pode ser que, originalmente, os gritos primitivos e outros tipos de símbolos que a humanidade desenvolveu tenham tido uma dada conexão com certas emoções, atitudes ou noções." No mundo moderno, porém, a língua seria composta de símbolos secundários. Nessa altura, Sapir é drástico: "Mas nenhuma conexão se pode hoje estabelecer entre palavras, ou combinações de palavras, e aquilo a que elas se referem." 13

O mais provável é que a multiplicação dos signos, comum a tantas culturas, tenha feito crescer sobre aquele primitivo

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tronco motivado uma profusa ramagem secundária e terciária na qual outros procedimentos, que não os da imitação pelo som, acabaram sendo os responsáveis pela aparência das palavras.

Por isso, as listas de vocábulos com a vogal /u/ tônica devem ser relativizadas. Se a vogal escura guarda uma relação unívoca e natural com imagens e sensações igualmente escuras, como explicar que o signo da fonte de toda claridade a tenha no seu centro: luz? E, com luz, lume, plenilúnio, azul, rútilo, fúlgido… Se a vogal escura tem relação direta com

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Cf. K. Bühler, op. cit., p. 309.

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impressões de sujeira física e moral, como explicar a tônica do adjetivo por excelência de limpeza: puro? Se a vogal /u/ conotasse tristeza e mau humor, por que júbilo? E triunfo? E

aleluia? Se conotasse doença e morte, por que saúde e robusto? Se mudez, por que musa e música?

Bruno Snell lembra que uma palavra central em todas as culturas, "mãe", apresenta, dentro da mesma família indo-européia, formas que divergem precisamente no seu ponto forte, a vogal tônica: mater (latim), méter (grego clássico), mítir (grego. moderno), mother (inglês), mutter (alemão) 14.

O argumento contrário à motivação simples poderia ganhar ainda um tento se partisse das idéias gerais de escuridão, fechamento, doença e morte, e verificasse o alto número de palavras que, pertencendo a esses campos semânticos, nem por isso contêm em seu corpo a vogal /u/. Os contra-exemplos são fáceis de achar. E Sócrates, o irônico, buscava induzir o relutante Crátilo a ver que com as mesmas letras se compõem signos de coisas boas e signos de coisas más… (Crátilo, 437 c).

A anatomia da mão, como a dos órgãos da fala, traz em si apenas possibilidades. Ao longo da História, os encontros do corpo humano com outros seres foram dando uma extrema ductilidade aos chamados "sentidos" do organismo (a visão, o tacto, o paladar…) e, ao mesmo tempo, foram potenciando as funções do sistema nervoso central que respondem pela expressividade e pelo ponto de vista da sinalização, e definem o modo pelo qual o sujeito se põe em face das pessoas, das coisas e dos eventos. O sentido é o outro nome desse modo.

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Tome-se um caso extremo, mas não raro, de homonímia: a palavra luto, substantivo, nomeia o sentimento e o trajo motivados pela morte de uma pessoa querida; e a palavra luto, primeira pessoa do presente do verbo lutar, significa "eu combato". O que dá à minha percepção (tirando o contexto) a experiência de que se trata de signos de significados diversos embora de igual forma fonológica? A rigor, nada, se eu sou ouvinte;

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mas, se sou eu que a pronuncio (e sempre excluído o contexto), a ênfase, a entoação e o

tempo de prolação da sílaba tônica podem demarcar a diferença; a vogal /u/, assim como

o polegar que mata ou salva, pode abaixar-se na tristeza murcha dos sons opacos (se o luto é morte), ou vibrar elétrica pela energia que dispensa toda vogal tônica seguida de consoante explosiva (se o luto é lutar). A substância do som parece a mesma, mas não é, na medida em que foi assumida e trabalhada diversamente pela vontade-de-significar. A subjetividade do corpo, que vive a significação, é responsável pelo nexo entre som e sentido.

O que desnorteia os que buscam uma relação constante e congruente entre tal som e tal sentido é a maleabilidade infinita com que o homem trabalha a matéria fonética. E até do silêncio, que parece puro vazio, ausência de som, o espírito arranca um mar de significados.

Suprir a ausência de pessoas, coisas e ações, chamando-as, exprimindo o

sentimento que elas provocam, articulando um ponto de vista sobre elas — esta, a direção fundamental da nossa linguagem.

Segundo o paleontólogo André Leroi-Gourhan 15, o ato de suprir só se tornou viável depois que o primata, já posto em posição ereta, pôde usar as mãos para a preensão e o preparo dos alimentos, reservando à cabeça, e, em especial, à boca, a tarefa de dizer o que o gesto, sozinho, não era capaz de comunicar eficazmente. O homo sapiens aparece quando se distinguem e se completam no seu corpo o homo faber (mãos, instrumentos) e o homo loquens (aparelho fonador). Em termos de cérebro, a situação é esta: a 4ª área do córtex frontal ao longo do sulco de Rolando controla tanto os movimentos dos membros (mãos,

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pés) quanto os da face, incluídos os da laringe, responsáveis pela produção da voz. O

gesto, o olhar e a palavra são contíguos na central elétrica da significação que é o cérebro.

A proximidade cortical assegura um amplo denominador comum às várias funções

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simbólicas do corpo, mas não cancela as diferenças específicas. A mão pode, mais que o olhar, unir-se à matéria das coisas (de onde, a antiga tese da maior espiritualidade dos olhos em relação à pele); o olhar, por sua vez, é mais direto e imediato, na intuição do mundo, que o código da língua. O espaço interno vivido no qual se forma a voz mantém sempre alguma sensação de distância entre o sujeito e o objeto da enunciação. A palavra aparece como um "dentro de nós" em oposição a um mundo fora de nós. E à medida que a consciência se torna mais aguda, mais presente a si própria, a linguagem tende a ser menos mimética, mais modalizada, mais intelectual. O dentro vai trabalhando o fora.

O poder de refletir supõe um afastamento, uma retração, uma abstração da mente em face dos objetos sensíveis; não por acaso, certos discursos lógico-matemáticos chegam ao extremo de separar o símbolo dos objetos designados, cavando um fundo fosso entre signo e referente. Esse risco, que provavelmente só uma nova e sofrida praxis poderá esconjurar, não é fruto de arbítrio, não é capricho da razão. Ao contrário, a diferença deita raízes no chão do código lingüístico. A distância que medeia entre a palavra e a coisa é, de fato, constitutiva do signo, está inscrita desde sempre na língua, que é filha da falta e do desejo, e não da plenitude e da unidade, amantes do êxtase e do silêncio.

A linguagem traz em si o estigma da separação. É preciso, às vezes, resignar-se a mais essa pena. Pensando assim, já não me impaciento, como outrora, quando ouvia dos críticos estruturalistas em coro hinos e hosanas à metalinguagem. Tudo tem a sua hora: falar sobre a fala, poetar sobre a poesia, medusar-se no signo, são tendências fortes do espírito moderno que, no limite, como ensinou Hegel, bloqueariam o discurso representativo e emotivo. Na verdade, não o fazem de todo por mais que o tentem. A dialética que pulsa na vida da poesia não é diferente da dialética social: como esta, não supera sem conservar.

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No seu momento sintético e resolutivo, o trabalho mitopoético também nega a negação. Se a metalinguagem apaga, por um átimo, o conteúdo vivido do signo, o processo total do poema apaga a mão que apagou; e deixa emergirem, filtradas mas potenciadas na sua essência, a figura do mundo e a música dos sentimentos.