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O pintor agachado se levantou tranquilamente com as mãos ensopadas pelo líquido vermelho, parecia ter derramado toda a tinta sobre o carpete, uma forma estranha de exercer o adorável talento. Ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven, como se regesse para a volumosa e enérgica orquestra que com tanto afinco executava cada importante figura musical expressa na admirada partitura, o artista não usava pincéis, sua arte era feita com as próprias mãos, os dedos davam a liberdade para que sua imaginação fosse expressa.

A pintura abstrata não fazia sentido a quem contemplasse.

Porém, para o focado pintor, era mais que uma perfeita obra, ali eternizava a história de alguém.

Antes de tudo...

Jake Summers era um homem absurdamente sedutor, ao ponto de causar ciúmes em muitos amigos e êxtase em tantos admiradores. Seu porte atlético e seus olhos vorazes juntavam-se à forma desleixada de pentear os fios castanhos, parecia não se importar com a aparência, porém a pele invejavelmente lisa e bronzeada derrubava por terra tal hipótese.

Mas não era apenas um rostinho atraente.

Destacava-se como o mais talentoso TI da região, bastante requisitado por empresas poderosas, o trabalho independente lhe garantia a vida de conforto muito cobiçada.

Tinha um defeito.

Como tantos outros de seu naipe.

Não dispensava as oportunidades para uma noite de lascívia e quando se atraía por alguém não sossegava enquanto não o experimentasse.

Na atual empresa para a qual prestava serviços não foi diferente, seus olhos se voltaram à gerente, viu-se perdidamente desejoso por ela, precisava possuí-la, necessitava satisfazer seus anseios, encontrar a parte que lhe faltava.

Jessica Taylor era uma mulher confiante que com coragem assumiu um dos daqueles que a tinham por rival. O olhar cativante esbanjava beleza rara, as íris que mais pareciam um par de esmeraldas colocadas como ornamentos na face sutil chamavam ainda mais atenção.

Contudo, nos últimos dias, vinha sentindo-se cansada pela correria do trabalho, pelo peso das muitas responsabilidades e dos diversos problemas que recaíam sobre

por Amilton Júnior suas costas. Sentia falta de ter um tempo para se divertir, esvaziar a mente, tempo que parecia impossível de recuperar.

— Está atrasada! — seu superior a importunou no escritório —. Eu falei! Falei que seria um erro dar a vaga de gerente a uma... — pressionou fortemente os lábios.

— A uma mulher? — Jessica concluiu —. Agora entendo qual estratégia tem utilizado, como fui ingênua! — sorriu indignada —. É só mais um machista frustrado, não aceita que mulheres ocupem cargos de liderança e me sobrecarregou na intenção de provar seus argumentos! — encolerizou-se —. Pois então terá que encontrar alguém com o mesmo talento e empenho, reconheço meu valor e garanto que não será fácil me substituir! — saiu da presença do homem de mente tão ultrapassada sem poupar força ao bater da porta, se por um lado sentiu alívio em saber que se livrava do lugar que já não lhe garantia prazeres, por outro temia não conseguir novas oportunidades. Preocupar-se-ia com isso depois, queria relaxar.

O que ninguém sabia era que dos olhos atentos de Jake nada escapou.

Quando fora a última vez que se sentou num banco como aquele rodeado por flores e crianças que não se cansavam de agredir suas gargantas? Ele não sabia dizer, mas repetia a si mesmo que um dia apenas não o mataria, o perfume das rosas não o intoxicaria e os gritos infantis não sangrariam seus ouvidos, porém algo excepcional com certeza teria início.

Fingindo ler o livro que falava sobre representatividade feminina, Jake lançava olhares discretos ao banco que dele se distanciava no comprimento de outros três.

Observava aquela que em silêncio tinha os pensamentos cercados pela música que somente ela conseguia ouvir. Parecia refletir. Parecia desejar por alívio. O alívio que ele daria.

Era o momento certo.

Desejava-a. Era seu novo desafio. Sua nova motivação.

A passos tranquilos, como sempre se comportava, o belo rapaz aproximou-se da moça atraente, sentou-se ao seu lado sem nem ao menos ter sido convidado, não achou que fosse algum problema.

Curiosa, Jessica abriu os olhos, encarou o intrometido como se quisesse indagá-lo, mas se calou ao assistir o brilho do sorriso alinhado, perdeu-se por alguns instantes, há muito tempo não se encontrava com alguém que não fizesse parte do mundo profissional que a afogava.

— Aposto que esteja meditando sobre como chegou até aqui, como foi difícil e o quanto ainda sonha com futuras conquistas, mas se me permite dizer, mulheres como você alcançam qualquer sonho — a voz arrastada soou sensual aos ouvidos sensíveis, as palavras soaram surpreendentes —. É o que diz aqui — exibiu a capa do livro —.

Acredita nisso?

Jessica abriu o próprio sorriso, surpreendeu-se por encontrar alguém interessado em assuntos tidos como feministas, ainda mais por ser alguém como o homem desconhecido.

— Acredito que somos muito mais do que pensa ou determina a sociedade, mas não é tão fácil demonstrar, somos subestimadas... — reclamou, alcançou liberdade o bastante para reclamar algo que a incomodava.

— Problemas no trabalho?

por Amilton Júnior

— Esse é o pior lugar para se lutar contra machistas...

— E acha que desistir é o caminho?

— Desistir? — estranhou o questionamento que definia sua decisão, tinha mesmo desistido, mas como o rapaz insuportavelmente bonito descobrira?

— A esse horário, mulheres vestidas como você estão enfurnadas no escritório assinando papéis e preenchendo planilhas, não perdem tempo em parques — insistia no jeito arrastado de discursar e no modo embriagante de proferir palavras entre o sorriso galanteador, controlava-se para não ceder aos impulsos de revelar à morena sensual a forma como a queria, não por enquanto —. A menos que tenha percebido que a vida é muito mais do que dias a fio atrás de uma mesa e que merece ser vivida plenamente — levantou-se estendendo a mão —. Por que não aproveitar esse pensamento e recomeçar?

Parecia bom demais para ser real.

Jessica decidiu desfrutar do sonho antes que fosse desperta.

Entregou-se à mão ofertada.

Talvez se arrependeria de ter encarado a realidade como uma boa fantasia.

Odiava aquele lugar, detestava aglomerações, o som de pessoas falando inesgotavelmente como se os assuntos nunca chegassem ao fim, não entendia como aquilo era possível, sempre procurou objetividade nas palavras exceto quando precisava conquistar alguém como a companheira, aí se transformava num poeta que ansioso por ser escutado recita seus versos nas praças.

Caminharam pelo parque. presa, permitiria que ela partisse, ao menos por agora, tinha paciência.

— Muito... — seduzida pelo bom papo, conquistada pela inegável boa presença, a mulher cedia aos encantos do predador como uma ovelha inocente confia no lobo

—. Às vezes tudo de que precisamos é que alguém nos entenda e encoraje a seguirmos nossos planos...

— Quer dizer que quer ser entendida? — trouxe a desejada morena para perto de si, exalou o perfume amadeirado com maior intensidade, Jessica pôde sentir o calor que dele emanava, Jake teve a certeza de que fazia mais uma vítima —. Sempre haverá alguém que nos entenda... — beijou-a fortemente, acariciava suas costas sedento por algo mais, provocou na mulher cegada por aparências um desejo inconsequente. Afastou-se ofegante. Contemplou surpresa no olhar esverdeado —.

Posso estar disposto a entendê-la — partiu deixando e sentindo vontades.

As semanas se passaram, os encontros foram frequentes e os sentimentos se mostravam cheios de intensidade, um desejava ao outro, mas apenas um confiava no outro.

Marcaram um jantar.

Na casa de Jake.

por Amilton Júnior O especialista em assuntos de informática organizou o ambiente como assistira em filmes românticos que tantas vezes fora obrigado a assistir com suas parceiras, o curioso era que nenhuma delas permanecia ao seu lado, mas isso ele explicava facilmente: não as amava como era amado, apenas ansiava por satisfazer seus desejos carnais.

Não amava Jessica.

Como nunca amaria ninguém.

A campainha tocou.

Ajeitando os fios espalhados sobre a testa, aprumando a camisa social que vestia, sentindo o próprio hálito e certificando-se de que estava agradável, o anfitrião abriu a porta, contemplou a morena coberta pelo vestido marsala que destacava suas curvas, modelava seu corpo e guiava os olhos vorazes a um ponto específico. A sedução envolvia aquele casal.

— Você está linda... — elogiou com a voz quase ofuscada, seus pensamentos lascivos o enlouqueciam —. Mais que todos os dias... — tocou a mão quente, trouxe sua convidada para dentro.

— É muito gentil... — apercebida, encantou-se pela perfeita arrumação, pelas velas que iluminavam a mesa, pelo aroma sensual que envolvia a casa e pelo perfume ardente que do rapaz era sentido —. Não precisava de tudo isso.

— Ainda é pouco... — Jake curvou-se para beijar o rosto de Jessica, inalou o doce perfume, segurou-a pela cintura e não conteve o impulso de farejar seu pescoço.

Fechando os olhos, suspirando como se as forças lhe faltassem, a morena pressionou as costas do homem sedutor, senti-lo era uma sensação estonteante, algo que não conseguiria explicar por palavras simples e usuais.

Finalmente dominava sua presa, tinha-a em suas mãos, vulnerável a qualquer violento ataque. Abriu o zíper do vestido apertado, despiu-a exibindo todo seu anseio por aquele momento de puro prazer. Era o que a mulher também queria. Não hesitou em desabotoar a camisa colada ao corpo másculo arrebentando seus botões, seu corpo estremeceu ao tocar a pele tão bem cuidada.

Jogaram-se no sofá.

O clima esquentava furiosamente.

Em algum momento Jessica pareceu distante, como se não respondesse às investidas românticas daquele que sedento por ela a beijava calorosamente, talvez refletisse sobre o quão insano era se entregar a quem conhecera em tão poucas semanas, tinha medo de sofrer.

Summers percebeu.

Precisou conquistar completamente aquela que jamais deixaria sua vida.

— Eu te amo... — sussurrou firme, fez a morena se render ao momento de intensa luxúria, quando dois corpos se complementam e se rendem ao deleite.

O jantar ficaria para depois.

O que começou na sala terminou no quarto.

Exausto, Jake se virou para o lado, não queria nenhum contato com a parceira, nenhum vínculo, já alcançara o que queria e o que parecia um desejo incontrolável se transformou em desinteresse.

por Amilton Júnior Mas ela jamais suspeitaria que não representava mais do que um objeto àquele que lhe lançava palavras tão belas. Aproximou-se do namorado. Abraçou-o com carinho.

No meio da madrugada, os olhos vorazes se abriram.

Jake se levantou, entrou no ateliê cheio de quadros, cada um com um nome escrito no rodapé, todos com gravuras vermelhas e abstratas, procurou por uma tela em branco, levou-a até à sala, sentou-se com o tronco nu e encarou-a com se pensasse na próxima arte que desenvolveria, na vida que daria ao plano inanimado.

Da estante, escolheu seu disco preferido intitulado como 9ª Sinfonia de Beethoven.

Permitiu que o toca-discos, no meio da madrugada, fizesse soar a conhecida melodia pela casa.

— Também é pintor? — Jessica, que deveria ter fugido, ou melhor, que jamais deveria ter cruzado o caminho de alguém como Jake Summers, adentrou a sala e encontrou o homem pensativo —. O que mais não sei sobre você?

— Há muitas coisas que não sabemos sobre muitas pessoas, isso pode ser um problema dependendo do ponto de vista.

— Gostaria de saber mais... — sentou-se no sofá, estava apaixonada demais para ver a verdade, o amor cega fatalmente.

— Tudo bem, terá o direito de me fazer uma única pergunta e então responderá a minha — desviou a atenção do quadro para a morena, não a via mais com paixão, encarava-a como um analista disposto a desvendar os mistérios mais obscuros de quem se permite a isso.

— Qual o seu maior dilema? Parece tão confiante, tão seguro, mas qual é o desafio que enfrenta todos os dias?

— Uau! — forçou o sorriso sedutor, o que fora dirigido a tantas outras, o que arruinou a história de várias —. Não sei quem eu sou — respondeu seriamente —. É como se esse corpo não me pertencesse, é como se a vida não me importasse, então procuro nas pessoas a minha essência, o que chamam de outra metade, aquilo que me completaria e me daria uma identidade, diria quem sou...

— Encontrou isso comigo?

— Tinha direito a somente uma pergunta — falou calmo, respeitando as regras do jogo —. Quanto a você, quero saber qual é o seu maior medo, quero que me conte o que mais teme, quero ser aquele que a salvará de todos os males e talvez isso responda ao seu questionamento.

Sentiu-se amada.

Tinha certeza, era a outra metade de Summers.

— Tenho medo de que coisas boas como a que aconteceu hoje um dia terminem e fiquem apenas na lembrança, tenho medo de ter que dar adeus e não receber a mesma importância que dou àqueles que entram em minha vida, tenho medo de ser esquecida...

— E se eu prometer que a eternizarei? — ajeitou a tela disposta a receber seus traços.

— Não era apenas uma pergunta? — sorriu esperta.

por Amilton Júnior

— Não quer ser eternizada? — caminhou até a namorada, passos serenos —.

Não quer ser lembrada para sempre? — encarou-a direto nos olhos, seu sorriso não era mais sedutor, era perverso, era fatal —. Posso garantir isso a você — segurou com força as mãos que por seu corpo passearam —. Aceita? — a música encaminhava-se ao ápice.

— O que quer dizer? — confundiu-se.

— Quero dizer que não, mais uma vez não encontrei a minha outra metade — tirou do vão do sofá o canivete afiado, reluzente, nem a luz fraca impedia seu brilho de ser refletido. A orquestra se agitou —. Infelizmente... — cortou, em um movimento ligeiro, a garganta de sua vítima. Instrumentos de corda tiniam seu sonido, instrumentos de sopro pareciam receber todo o fôlego de seus tocadores.

Assustada, levando as mãos ao pescoço, desesperando-se pelo sangue que jorrava às suas mãos, Jessica estalou os olhos, tentava gritar, pedir ajuda, tudo que conseguia era contemplar os olhos obscuros estampados na face sombria.

Engasgou.

Passou a tossir compulsivamente.

As pernas fraquejaram.

Já não sentia o próprio corpo.

As vistas se escureceram.

E a morte a tragou.

Jake apreciou cada minuto da trágica cena, algo acostumado a assistir, algo que por muito tempo ainda assistiria.

O pintor agachado se levantou tranquilamente com as mãos ensopadas pelo líquido vermelho, parecia ter derramado toda a tinta sobre o carpete, uma forma estranha de exercer o adorável talento. Ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven, como se regesse para a volumosa e enérgica orquestra que com tanto afinco executava cada importante figura musical expressa na admirada partitura, o artista não usava pincéis, sua arte era feita com as próprias mãos, os dedos davam a liberdade para que sua imaginação fosse expressa.

Deu um passo para trás.

Sujou novamente as mãos com o sangue que inundava o carpete.

No rodapé escreveu o nome de Jessica.

— Está eternizada! — a música acabou.

por Amilton Júnior

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No documento 1 Palavras & Sentimentos – 2ª Edição (páginas 56-62)

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