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Tenha Misericórdia!

No documento 1 Palavras & Sentimentos – 2ª Edição (páginas 43-47)

De cabeça baixa, olhos estáticos, pensamentos distantes, caminhava pelo prédio que cheirava a castigo, que soava maldade, que abrigava gemidos de dor, gritos de ordem, ouviu em seus ouvidos um doce pedido, o que machucava sua alma, desmantelava seu coração.

“Tenha misericórdia, pai...”

Roberto era um metalúrgico muito exigente em seus relacionamentos, cumpria acordos, zelava pela confiança das pessoas e prezava por manter as boas aparências diante da sociedade. Era um homem rígido, um tanto machista, de sua forma confusa amava a esposa, quem recebia seu amor de forma nítida era Paco, o filho com o qual muito se divertia, do qual esperava se orgulhar grandemente, naquele que colocava expectativas para que se tornasse um grande e honrado homem.

Além de metalúrgico, era um brilhante carpinteiro, bastante requisitado em sua região, possuía clientes em lugares longínquos, sua fama corria pelos móveis que produzia, não deixava de ensinar ao filho a atividade que aprendera de seu pai que aprendera com o avô que fez questão de suplicar para que a tradição jamais se acabasse.

Paco crescia como qualquer criança, cheio de energia para aventuras, disposição para descobertas e com uma sensibilidade incrível para ajudar o pai nos detalhes que embelezavam as cadeiras, ornamentavam as estantes e deixavam irrecusáveis os bancos de balanço. O talento corria em sua veia de uma forma muito mais sofisticada.

Tornou-se um adolescente adorável, querido entre os amigos, estimado pela vizinhança e admirado pelos parentes, sempre disposto a ajudar, a estender a mão inclusive aos que o pai considerava indecentes e por esse motivo ouvia sermões cujo significado não conseguia encontrar, em seu coração acreditava que todas as pessoas eram dignas de amor.

Amadureceu.

Por volta dos dezessete anos fez uma descoberta que mexeu com o seu ser, que atraiu pensamentos turbulentos e criou inúmeras dúvidas, incertezas e fez nascer um medo que jamais imaginou sentir: medo do próprio pai.

Quanto mais o tempo passava mais se sentia sufocado e angustiado por guardar um segredo que se tornava insuportável de manter, por guardar um segredo que transformaria o modo de muitos o enxergarem, que em alguns despertaria repulsa, em outros espanto, tinha a noção de que poucos o apoiariam em sua essência, naquilo que ele era, mas precisava negar.

Nunca foi de esconder a verdade.

Nunca foi de viver escondido dos pais algo que quisesse.

Sempre confiou neles para qualquer desabafo.

Confiaria mais uma vez.

Sentados ao redor da mesa, curiosos pelo que Paco tinha a declarar, imaginando até mesmo que o filho conquistara alguma bolsa pelo ótimo desempenho escolar, seus

por Amilton Júnior pais balançavam as pernas, sorriam ansiosos, se incomodavam pelo tamanho suspense criado.

— E então? — Roberto questionou —. O que é de tão importante para nos reunir dessa forma?

— Primeiro quero que saibam que meu amor por vocês é maior que qualquer desejo, supera qualquer outro sonho e por isso preciso ser transparente, verdadeiro, preciso confiar a vocês cada passo que pretendo dar, cada conquista que venha a ter, sempre moraram, moram e morarão no meu peito — os olhos esverdeados não puderam conter as discretas lágrimas que atravessaram o sutil sorriso.

— Também te amamos, meu querido, sempre poderá contar com o nosso apoio nos caminhos que deve seguir — Eunice, a sensível mãe, acariciou as mãos do filho, ofertou seu olhar de compreensão, acima de tudo queria vê-lo feliz.

Roberto, no entanto, percebendo o teor sentimental daquela conversa, preferiu o silêncio, preferiu avaliar com cuidado tudo o que ouvia, criava hipóteses, não eram as melhores.

— Tem sido muito difícil tomar a decisão de revelar a vocês o que está aqui dentro, o que todos os dias me pressiona a contar a verdade, a desabafar meus intentos, tem sido cansativo guardar um segredo que não aguentaria ocultar por muito tempo, esconder algo que faz parte de quem eu sou, do que represento, do que quero viver.

— Aonde quer chegar? — a grave voz do pai soou imperativa.

Paco gaguejou.

O pranto travou sua garganta.

Os lábios estremeceram e o coração balançou.

As mãos foram recolhidas.

Os ombros encolhidos.

O rosto abaixado.

— Paco... — Eunice já sabia, ninguém precisou lhe contar, sempre soube a verdade oculta, não se deixou dominar por muitos conceitos que julgava inúteis, abrir-se-ia ao filho, seria a mãe que ele precisaria.

O jovem garoto ergueu a face. agarrada, sem conseguir ordenar os furiosos pensamentos que subiam à sua mente e aceleravam o coração, Roberto dirigiu o olhar severo ao filho, esqueceu-se do quanto o amava, das alegrias que conquistara, dos elogios e parabenizações que recebia por ser o pai de um jovem tão querido e admirado, encarava-o como se fosse um abominável inimigo.

— É a sua escolha?

— Eu não escolhi... Apenas sinto... — respondeu em lamento.

— Não pode estar falando a verdade, precisa ser muito imbecil para dizer uma coisa dessas olhando para a minha cara, quem colocou isso na sua cabeça? — não aceitaria, se recusaria ao que tinha por humilhação, demonstraria toda a repulsa que

por Amilton Júnior era capaz de sentir —. Quem foi que o encheu de dúvidas perversas? — segurou o braço do filho, pressionava-o com determinada força, queria mais que tudo estar passando por um pesadelo, queria despertar e perceber que tudo não passava de um sonho maldito.

— Não são dúvidas, é a verdade que está dentro de mim, ninguém precisou me manipular ou seduzir, descobri por mim mesmo! — não acreditava que pudesse ser tratado como um criminoso apenas por ser diferente da maioria, mesmo com todo o amor que compartilhava agora era visto como um terrível meliante.

Um tapa.

Na face.

Paco caiu da cadeira.

Eunice se levantou na intenção de conter o esposo.

— Roberto, precisa se acalmar, precisa entender que nossos filhos seguem caminhos opostos aos nossos, não são como nós, possuem os próprios meios para serem felizes e se sentirem realizados.

— Não... Meu filho não me garantirá tal desgosto! — a voz soava firme e fria, impiedosa.

— Que desgosto, meu esposo? Todos o amam, chegam a dizer que o desejavam ter como filho, vai deixar que uma ignorância ultrapassada seja maior que todo o orgulho que ele nos dá?! — tentou convencer, mas foi empurrada.

— Sabe o que penso de pessoas como você, não sabe? Para mim são como vermes capazes de nos garantir as piores doenças, as mais humilhantes vergonhas, são dignos de serem extirpados! — levantou o filho pelo colarinho, fixou os olhos ardentes contra os assustados, intimidava-o grandemente —. Vou lhe dar a última oportunidade para que volte atrás e me prometa manter essa loucura bem escondida!

Paco permaneceu em reflexão, não seria capaz de se esconder atrás de uma vida que não lhe pertencia, não poderia viver episódios que a sociedade esperava, seria infeliz, faria outras pessoas infelizes, não conseguiria negar quem era.

— Somos diferentes, nenhum de nós é completamente igual e as pessoas precisam entender que nem todos trilharão pelo mesmo caminho, não teremos os mesmos pensamentos, sempre divergiremos em algum ponto... Não posso prometer o que não serei capaz de fazer.

— E eu não passarei pelo que não posso suportar — jogou o filho contra o chão, subiu em seu corpo, passou a distribuir socos ferozes —. É isso o que merecem! — gritava em meio ao choro de raiva —. Custa controlar seus desejos doentios? Custa não se transformar em um animal desprezível? — mantinha-se nas agressões —.

Prefiro ter um filho morto a servir de zombaria!

Sentindo o coração arder, vendo o filho se debater sem conseguir liberdade, recebendo hematomas pelo corpo, tendo o resto deformado por feridas desumanas, cuspindo sangue e quase engasgando com ele, Eunice avançou contra as costas do esposo, mas foi assustadoramente lançada para trás pelo homem descontrolado, bateu a cabeça contra a parede, caiu desmaiada.

Paco não aguentava mais.

Sua alma ardia em indignação.

— Tenha misericórdia, pai... — foi a última súplica.

— Vá para o inferno!

por Amilton Júnior Os portões se abriram.

O homem cabisbaixo cumprira toda a pena.

Não era mais castigado pelos homens por um assassinato frio e sem justificativas.

Mas sua consciência era oprimida por enorme culpa: não soubera amar quem acreditava no seu amor, não pôde aceitar quem compartilhava do seu sangue, antes se vestiu de arrogância e destruiu o próprio filho, o único que em todos os momentos estaria ao seu lado, em nome de preconceitos e da preocupação com o que os outros falariam, outros que nunca mais o procuraram, que esqueceram sua existência.

Não suportava aquela culpa.

Esperou anos por aquilo.

Subiu no edifício abandonado.

Jogou-se da altura de mais de cem metros.

“— Tenha misericórdia, pai...”

por Amilton Júnior

No documento 1 Palavras & Sentimentos – 2ª Edição (páginas 43-47)

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