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CAPÍTULO 3. SOFTWARE LIVRE NA ECONOMIA DO CONHECIMENTO: APONTAMENTOS JURÍDICO-ECONÔMICOS RELEVANTES

3.1. Surgimento e evolução do software livre

Concomitante ao processo de evolução e consolidação da indústria de software baseada na venda de licenças de uso, citado no capítulo 2, surgiu e evoluiu um movimento questionando as restrições de acesso e liberdade ao desenvolvimento e modificação do software, o que se denominou movimento de software livre.

Gutierrez e Alexandre (2004, p. 53) apontam que a história do software livre está vinculada, de alguma forma, “ao sistema operacional Unix, que teve as raízes de seu desenvolvimento na década de 1960”, como resultado de um trabalho conjunto entre a Bell Laboratories da AT&T, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) e a General Eletric (GE).

Na década de 1960, nos primórdios da computação, o software era incorporado ao hardware, sendo cada programa utilizado somente para um único computador, o que ocasionava a impossibilidade de comunicação entre computadores, como vimos no capítulo 2. O sistema operacional Unix surge neste contexto como um software capaz de funcionar em qualquer computador. Segundo Silveira (2004), o sistema Unix era muito robusto e, logo em suas versões iniciais, foi possível sua popularização.

O Unix, no início, era distribuído livremente e com o código-fonte aberto, principalmente para as universidades. Ao relatar que muitas universidades solicitaram

cópias do Unix à AT&T, Bacic (2003, p. 11) informa que, naquela época, ela tinha uma posição monopolista na área de telecomunicações, de forma que não podia atuar na área de computação. Em virtude disso, o Unix foi fornecido pela AT&T “sem empecilhos para aquisição do programa para as universidades, que puderam contar com o código- fonte completo para estudar e melhorar o programa.”

Até a década de 1970, a abertura de código-fonte dos programas de computadores era uma regra e prática usual na área de computação e a exceção era o código fechado. Encontros científicos em torno do Unix foram organizados e o compartilhamento do código-fonte possibilitou que o sistema fosse melhorado, fazendo surgir, inclusive, outros sistemas operacionais baseados no Unix.

Em meados dos anos 1980, o sistema Unix já era amplamente utilizado e sua instalação de uma máquina para outra era simples, sendo ainda distribuído com o código-fonte aberto. Esta prática, porém, mudou principalmente a partir de 1984, quando o governo norte-americano decidiu dividir a AT&T em várias empresas independentes, a qual passou a atuar no setor computacional e decidiu exercer o controle do sistema operacional Unix, por intermédio de uma licença de uso55, fechando o seu código-fonte. (BACIC, 2003).

Concomitantemente a este fato, os programadores das empresas desenvolvedoras de software passaram a ter que assinar termos de compromisso, que os proibiam de divulgar os segredos da programação dos sistemas. Um destes programadores era Richard Stallman , que trabalhava no Laboratório de Inteligência Artificial do MIT. Ele participou, por vários anos, do desenvolvimento do sistema operacional de um computador utilizado em seu laboratório. Quando essa máquina foi substituída por outra mais moderna, mas com sistema operacional proprietário, ele defrontou-se com restrições ao seu trabalho de desenvolvedor, pois não tinha acesso ao código-fonte e não podia compartilhar o seu conhecimento com terceiros. (GUTIERREZ E ALEXANDRE, 2004).

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Como o Unix foi disponibilizado para muitas universidades, entre as quais a da Califórnia, em Berkeley, esta passou a desenvolver e distribuir sua própria versão. Concomitantemente, a AT&T vendia versões comerciais do mesmo sistema operacional sem o código-fonte, o que ensejou um conflito inevitável entre ambas. (GUTIERREZ e ALEXANDRE, 2004).

Stallman afirmou que não podia, com a consciência limpa, assinar um contrato de não-divulgação de informações ou um contrato de licença de software. Para ele, o desenvolvimento se dá de forma evolucionária, podendo o programador, a partir de um programa pré-existente, modificá-lo, adicionar melhorias ou criar um novo sem que seja necessário iniciar do zero.

Como reação à impossibilidade de compartilhamento do conhecimento e de acesso ao código-fonte, Stallman decidiu desenvolver o projeto denominado GNU56. Ele buscava restabelecer a vivência em comunidade de cooperação e de liberdade de acesso ao conhecimento. Silveira (2004) relata que a idéia de desenvolver um sistema operacional livre foi ganhando adeptos, o que culminou na criação, em 1984, da Fundação do Software Livre57, para desenvolver e manter o sistema operacional GNU, fomentar o desenvolvimento de software livre e disseminar a idéia de liberdade.

O projeto GNU começou (...) com o objetivo de desenvolver um sistema operacional Unix-like totalmente livre. ‘Livre’ se refere à liberdade, não ao preço; significa que você está livre para executar, distribuir, estudar, mudar, melhorar o software. O coração do projeto GNU é uma idéia: que software deve ser livre, e que a liberdade do usuário vale a pena ser defendida. (...) o software mostra que a idéia funciona na prática. Algumas destas pessoas acabam concordando com a idéia, e então escrevem mais programas livres. Então, o

software carrega a idéia, dissemina a idéia e cresce a idéia. (STALLMAN,

1996, p. 1) (grifos nossos).

Concernente aos ideais de inspiração do movimento de software livre, Stallman (2001, p. 1) diz que são os de liberdade, comunidade e cooperação voluntária, sendo que o movimento:

Estabelece um contraste com o software proprietário mais comum, que mantém os usuários indefesos e divididos: o funcionamento interno é secreto, e você está proibido de compartilhar o programa com seu vizinho. Um software poderoso e confiável e uma tecnologia avançada são subprodutos úteis da liberdade, mas a liberdade de ter uma comunidade é tão importante quanto.

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Silveira (2004, p. 16) esclarece que este nome é o “de um conhecido animal africano e também o acrônimo recursivo de GNU IS NOT UNIX, ou seja, o projeto GNU teria como objetivo produzir um sistema operacional livre que pudesse fazer o mesmo que o sistema Unix”.

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Entrando um pouco mais em detalhes, o termo software livre se refere a quatro tipos de liberdades específicas do usuário que constituem os seus pilares: (i) a liberdade de executar o software para qualquer fim; (ii) a liberdade de estudar o software para entender seu funcionamento e adaptá-lo como se desejar; (iii) a liberdade de distribuir e compartilhar o software; e (iv) a liberdade de melhorar o software e redistribuir estas modificações publicamente, para que todos possam se beneficiar.

O movimento em favor do software livre também emerge como manifesto de contestação ao exercício absoluto dos direitos de propriedade intelectual e também pela necessária revisão dos conceitos desta instituição, que não correspondem à realidade criada pelas novas tecnologias, conforme citamos no capítulo 1.

O crescimento da comunicação em rede consolidou a proposta de desenvolvimento compartilhado de software livre, pois hackers e geeks58 trocavam mensagens contendo pedaços de programas e linhas de código.

Linus Torvalds59 teve papel decisivo no processo de criação do projeto GNU. Em 1991, desenvolveu o kernel60 para um sistema operacional do tipo Unix. O software passou a chamar Linux, junção de seu nome, Linus, com o sistema operacional Unix. Gutierrez e Alexandre (2004, p. 55) explicam que “qualquer referência ao sistema operacional significa uma referência ao sistema GNU/Linux, que, de acordo com a Free Software Foundation, possui cerca de 10 milhões de usuários ao redor do mundo.”

Esclarecendo a relação entre o GNU e o kernel do Linux, Stallman (1996) diz que o Linux não foi escrito, inicialmente, para o GNU, mas foi feita uma combinação útil que disponibilizou todos os principais componentes de um sistema operacional compatível com o Unix e, com o trabalho de várias pessoas, este sistema ficou funcional, fazendo surgir um sistema GNU variante baseado no kernel do Linux. O autor explica que não se deve aceitar a idéia de comunidades separadas – uma do GNU e outra do Linux –,

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Segundo a Cartilha de Software Livre (2005, p. 13), os hackers são pessoas apaixonadas por programação “com princípios éticos, defensores da cooperação e da disseminação do conhecimento através da liberdade de informação. São caracterizados como pessoas de elevado conhecimento técnico (...) os hackers, ao contrário dos crackers e dos defacers, não são criminosos digitais (...) Os hackers também são chamados de geeks”.

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Matemático finlandês, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Helsinki, na Finlândia. 60

mas, ao contrário, deve-se disseminar a idéia de que sistemas Linux são variantes do GNU, e recomenda o uso dos termos GNU/Linux.

Em 1998, em detrimento do conceito de software livre, surge o de open source (fonte aberta), o qual busca conciliar as liberdades de uso, modificação e cópia com interesses das empresas. Este conceito foi adotado pela dissidência do movimento do software livre, sob o comando de Eric Raymond61, ex-integrante da Fundação de Software Livre, que originou a Open Source Initiative.

Em 2000, foi fundada a Open Source Development Labs, com a missão de disponibilizar modernos recursos e profissionais especializados, da área de computação, para teste e desenvolvimento do Linux, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento do kernel para possibilitar o seu uso corporativo. Grandes empresas participaram de sua fundação, tais como IBM, HP. CA, Intel e NEC, e atualmente, como informam Gutierrez e Alexandre (2004, p. 56), “o número de membros famosos atinge algumas dezenas, destacando-se Alcatel, AMD, Cisco, Ericsson, Fujitsu, Hitachi, Mitsubishi, Nokia, Novell, Sun, NTT, Toshiba e Unilever, além de grandes distribuições Linux como a Red Hat.”

Aqui, cabe uma distinção conceitual do software livre e do software de código aberto. O primeiro preconiza não apenas o acesso ao código-fonte, mas, e principalmente, as liberdades elencadas anteriormente – estudar, adaptar, melhorar e redistribuir os aperfeiçoamentos do software –, as quais podem ser exercidas de forma cumulativa ou não, a critério do usuário. Por seu turno, o software de código aberto dispõe que o código-fonte pode ser lido pelo usuário, mas pode não possibilitar as liberdades estabelecidas no software livre. Softex (2005, p. 11) esclarece estes conceitos, informando que “as idéias de software livre estão mais vinculadas às questões de garantia e perpetuação das liberdades citadas, as de código aberto estão mais ligadas a questões práticas de produção e negócio, como a agilização do

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Em 2001, Eric Raymond escreveu o livro “A Catedral e o Bazar”, sobre modelos para desenvolvimento de software, sendo, de certa forma, uma crítica a Stallman, que usa modelo hierárquico para desenvolver o GNU. Na seção 3.4, detalhamos esses dois modelos – catedral e bazar – e mostramos algumas polêmicas imanentes ao tema.

desenvolvimento do software através de comunidades abertas.” Neste trabalho, usamos os termos software livre e código aberto indistintamente.

Todo software livre é protegido por uma licença. A seção seguinte relata as especificidades do licenciamento de software livre.

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