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Tecnociência e Sociedade: da Auto-regulação à Co-produção*

No documento vol4 10 (páginas 82-90)

Maria Auxiliadora Oliveira

“O menor vírus da aids nos faz passar do sexo ao inconsciente, à África, às culturas das células, ao DNA, a São Francisco; mas os analistas, pensadores, os jornalistas e todos os que tomam decisões irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em pe- quenos compartimentos específicos, onde encontraremos ape- nas ciência, apenas economia, apenas representações sociais, apenas generalidades, apenas piedade, apenas sexo”. (Bruno Latour, 1994:8)

A Teoria do Ator-rede e a proliferação dos híbridos

Nesta tese, partimos do pressuposto de que o conhecemos so- bre a aids e seus tratamentos são produtos híbridos, – “ao mesmo tempo, reais como a natureza , narrados como o discur- so, coletivos como a sociedade (LATOUR, 1994:89) ” –, que fo- ram gerados pela complexa dinâmica de interação estabelecida entre uma diversidade de elementos heterogêneos mobilizados e processados em redes sociotécnicas (LAW, 1992). BIJKER (1987), analisando a construção mútua da tecnologia e da sociedade holandesa, identificou três diferentes abordagens teóricas, que permitem a compreensão deste processo como resultado da interconexão íntima de elementos técnicos, sociais e políticos, cuja interação conforma e produz conjuntos so-

ciotécnicos. A primeira, a abordagem sistêmica, analisa a tec-

nologia como um sistema heterogêneo, o qual, no curso do seu desenvolvimento, adquire um momento tecnológico que, com um certo grau de autonomia, o orienta para uma determinada direção, A segunda, referenciada na construção social da

tecnologia (social shaping technology), leva em considera- ção as interações ocorridas dentro e entre os grupos sociais

relevantes, apreendendo-as por meio do conceito de “tech- nological frame”, ou seja, um espaço de interpenetração

(dobradiça) entre a construção social da tecnologia e a mol- dagem tecnológica da sociedade. E a terceira, denominada de teoria do ator-rede, analisa e descreve conjuntos sociotécnicos, como redes heterogêneas de atores humanos e não-humanos ou redes sociotécnicas. Estas redes são assim designadas, jus- tamente por enfaixarem uma grande diversidade de entidades

denominadas de atores-rede, representantes e porta-vozes de outras redes, que são tratados usualmente por estudiosos da ciência de forma dicotômica, ou seja, como pertencentes ou à dimensão social (sociedade) ou à técnico-científica (natureza) (CALLON, 1989; LATOUR, 1997).

Segundo VINCK (1992), o conceito de rede apareceu nos anos 70 e, desde então, vem sendo bastante utilizado com dife- rentes sentidos nos estudos sobre a prática científica. Esse autor (Idem) identifica três significados no curso da evolução desse conceito. a) O primeiro designa um conjunto de indiví- duos ligados uns aos outros pelos fluxos de informações que eles trocam. Neste caso, a rede é formada por um conjunto de pontos representados por cientistas. As ligações entre eles existem tanto por contato direto quanto indireto, como ocor- re nas citações. Contudo, a compreensão da natureza dessas relações não é valorizada. O mapeamento dessas redes é fei- to por meio de análises de citações ou por levantamento de dados obtidos em documentos com cartas, relatórios, ou em entrevistas com os próprios cientistas. Com os dados obtidos, são construídos indicadores de densidade e de centralidade das relações e dos atores. Essa abordagem tem grande uti- lidade para o acampamento das transformações de grupos de cientistas, pois ela torna possível a identificação dos seus períodos de emergência, expansão, fusão, cisão, florescimento e dissolução. Esse conceito de rede é o mesmo utilizado pela sociologia das redes sociais e engloba apenas as relações en- tre cientistas, permitindo, por isso, o recorte das comunidades científicas, especialidades e disciplinas.

b) O segundo sentido, reconhece a heterogeneidade dos ele- mentos do conjunto incorporando cientistas e não-cientistas nas redes. Trata-se do que VINCK (Idem: 89) denomina de con- cepção estendida de redes sociais. Nela as estruturas sociais são vistas como conjuntos de laços entre os nós, nos quais são con- centrados recursos raros. Dessa forma, os atores estabelecem relações com o objetivo de garantir o acesso aos recursos uns dos outros. Nesta caso, a interação é reconhecida como um pro- cesso constitutivo da rede, cuja construção se faz por intermédio das operações de tradução, no curso das quais os nós, assim como a natureza e a forma das relações são ‘entre-definidas’. Esses estudos focalizam suas análises concretas entre os atores bem como nos conteúdos de suas trocas.

c) O terceiro sentido é construído a partir do princípio de si- metria generalizada1, quando a noção de redes sofreu uma

* Texto extraído de Tecnociência, ativismo e política do tratamento da AIDS. Dissertação (Doutorado em Ciências em Engenharia de Produção) – Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001, p.12-32.

1 O princípio da simetria generalizada foi formulado por CALLON (1986), após análise dos trabalhos empíricos sobre controvérsias científicas realizados

com base no Princípio da Simetria, proposto por DAVID BLOOR (1976). Este pesquisador – vinculado ao Programa Forte da Sociologia da Ciência, que foi estruturado pela denominada Escola de Edimburgo, na Escócia, tendo como base quatro conceitos fundamentais: causalidade, simetria, imparcialidade e reflexividade – defendia o fim do tratamento desigual presente nas abordagens sociológicas anteriores em suas tentativas de explicar os sucessos e fracassos, ganhadores e perdedores, ciência e não-ciência, conhecimento e crença, interior e exterior etc. Para CALLON (1986), esta abordagem ao negar a determinação da natureza e da lógica na produção dos consensos científicos, reduziu as produções neste campo a simples construções sociais, produzindo outra assimetria, representada pelo privilégio da sociedade sobre a natureza. Isto porque, para compreender a tecnociência, estes sociólogos apelavam apenas para elementos sociais, como atores, interesses, classes sociais, profissões etc., aos quais, segundo CALLON (Idem), não era dado o mesmo tratamento relativista por eles proposto para a analisar as ciências da natureza. CALLON & LATOUR (1991) apontam nesta abordagem três grandes dificuldades que eles classificaram como estilística, teórica e metodológica porque:... (Continua na próxima página).

nova e radical transformação. Ao tratar nos mesmos termos humanos e não-humanos, o conceito de rede passa a desig- nar todo um conjunto de elementos heterogêneos interligados por relações de tradução, no curso das quais eles se ‘entre- definem’. São as redes sociotécnicas ou atores-rede (VINCK, 1992). Nesta perspectiva, o objeto da análise dos estudiosos das práticas científicas e tecnológicas passou a ser essas redes e suas transformações. Assim, podem ser estudados desde o desenvolvimento de uma técnica até processos de formulação, implementação e avaliação de políticas científicas; ou a evolu- ção e estabilização de um dado enunciado; ou o processo de gestação e de estabilização de um artefato tecnológico. Vale ressaltar que o conceito de ator-rede permite operar desloca- mentos de simples análises locais para questões macrossociais ou econômicas sem ter que fazer distinções a priori entre o que é cognitivo ou social, material ou imaterial, humano ou não-humano, conteúdo ou contexto (LATOUR, 1997).

Assim, o conceito de redes sociotécnicas designa um conjunto de atores-rede – como cientistas, médicos, ativistas, técnicos, empresários, políticos, equipamentos, competência, créditos, artigos científicos, manuais, relatórios, técnicas laboratoriais, instituições, microorganismos etc. –, que são interligados por operações de tradução, no curso dos quais seus papéis são definidos (CALLON, 1986; VINCK, 1992). Para LAW (1992), esta concepção radicaliza em relação às abordagens anterio- res, porque pressupõe a existência de redes multidimensionais interconectadas, compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, instalações físicas, enfim, por toda uma ampla diversidade de materiais, cujas interações configuram, ordenam e reordenam redes de elementos heterogêneos. Segundo este autor (Idem) ao tomar formas materiais, já que aparece nos textos, nas conferências ou sob forma de competências incorporadas a cientistas e a equipamentos (LATOUR & WOOLGAR, 1979; CALLON, 1989), a produção do conhecimento tecnocientífico pode ser compre- endida como um processo de engenharia heterogênea, onde pedaços e peças do social e do técnico se articulam e, por meio de processos de conversão e tradução, geram outros produtos

híbridos e estendidos. Híbridos, porque a sua produção

envolve necessariamente a participação de uma grande di- versidade de elementos heterogêneos; e estendidos, porque as relações e interações estabelecidas entre eles ultrapassam, obrigatoriamente, os limites restritos dos espaços de produção do conhecimento tecnocientífico. LATOUR (1994;9) em sua análise sobre a proliferação destes híbridos na sociedade moderna afirmou: “Nosso meio de transporte é a noção de

tradução ou de rede. Mas flexível que a noção de sistema,

mais histórica que a de estrutura, mais empírica de que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias con- fusas (grifo nosso)”.

CALLON & LATOUR (1991) denominam de operações de tra- dução ao processo que permite a interligação dos elementos heterogêneos mobilizados na produção do conhecimento tec- nocientífico, os quais podem ser não-mensuráveis ou não-equi- valentes. São as operações de tradução, que permitem estabe- lecer as equivalências sociedade e natureza. Segundo CALLON (1986), o processo de tradução engloba quatro operações principais: a problematização, a persuasão (l’interessement), o enredamento e a mobilização de aliados.

A problematização parte de uma formulação simples, que inclui elementos do mundo natural e social, definindo desta forma um sistema de alianças e associações entre entidades, cujos interesses e identidades são negociados e construídos no curso do próprio processo. Indica, portanto, deslocamentos e desvios, que devem ser produzidos e aceitos, além das alian- ças que devem ser estabelecidas. Nesta etapa são definidas as identidades de alguns dos atores, que podem se tornar pontos de passagem obrigatória para outros na rede de alianças que se estabelece entre eles.

A persuasão se refere ao conjunto de ações por intermédio das quais uma entidade tenta impor e estabilizar a identidade dos outros atores. Nesta perspectiva, persuadir outros atores significa construir estratégias e mecanismos, que possam in- termediar as relações entre eles e todas as demais entidades. Os mecanismos de persuasão geralmente criam um balanço de poder favorável ao proponente da operação, de modo a in- terromper todas as associações potencialmente competitivas. A mobilização de aliados, como descreve CALLON (Idem), se refere à representatividade de que fala em nome de quem. Esta operação identifica porta-vozes e, como a própria palavra mobilização indica, torna móveis identidades, possibilitando o alinhamento de entidades com interesses diversos. Nesse movimento, pode acontecer a pontualização (LAW, 1992) ou Black boxing (LATOUR, 1989) de um determinado porta-voz, que é reduzido a condição de um ponto na rede. Isso ocorre sempre que existe forte coesão e solidez na rede de aliados que ele representa.

Cabe ressaltar que a noção de interesse utilizada na teoria do ator-rede não corresponde a uma análise naturalista da ação social, na qual os interesses dos atores podem ser iden- tificados e explicados previamente à ação. Ao contrário, ela pressupõe que tanto os interesses quanto a identidade dos atores são produzidos no curso de um determinado proces- so de negociação. Nesse sentido, CALLON & LATOUR (1991) valorizam a noção de negociação e das outras noções dela decorrentes: a de transformação e de compromisso. Para estes autores, negociar conhecimento implica quase sempre modi- ficar seu conteúdo, uma vez que cada protagonista em cena

1 Continuação: (I) as análises propostas para os atores são de base exclusivamente sociológica, não sendo por isso valorizados seus argumentos técnicos,

suas discussões e, até mesmo, suas interpretações tanto no que se refere aos fatos da natureza quanto àqueles relacionados à sociedade; (2) não é aplicada às ciências sociais a mesma abordagem relativista, proposta para a analisar as ciências naturais; (3) nega à ‘natureza’ qualquer posição de privilégio, pois, além de cassar a voz dos cientistas observados, simplesmente eliminou o papel dos não-humanos na produção do conhecimento.

incorpora os argumentos do adversário aos seus enunciados, principalmente quando não pode refutá-los a partir de seus próprios referenciais. Neste processo de interação são fabri- cados os compromissos, que afetam não apenas o conteúdo dos conhecimentos, mas também as identidades dos atores e porta-vozes envolvidos nas negociações.

A dinâmica de base dessa abordagem é dada pela mobilidade dos atores-rede, que a cada nova tradução podem se modi- ficar, transformar e até mesmo se contradizer ou trair (LAW, 1995). Nessa perspectiva, a noção de ação é substituída pela de tradução, de tal forma que não existam consentimentos ou desacordo, mas sim alinhamentos e dispersões. Esta é a dinâmica que torna o significado e o poder de um determi- nado ator dependente da cadeia de tradução, na qual está localizado (CALLON, 1995).

Em resumo, esta abordagem tem como regras básicas: primei- ro, a extensão às ciências sociais do agnosticismo do observa- dor; segundo, a ampliação do princípio da simetria formulado por BLOOR (1976), para um princípio de simetria genera-

lizada; e terceiro, a utilização da livre associação; (CALLON,

1986. LATOUR, 1989). Sua operacionalização só é possível, como reafirmou CALLON (1995), se o mesmo vocabulário uti- lizado para tratar os aspectos sociais também for aplicado aos aspectos técnicos, sendo este procedimento estendido para lidar com atores humanos e não-humanos. Isto é viabilizado por meio da utilização do que ele denominou de repertório da tradução, cujo processo geral, como relatado anteriormente, permite o estabelecimento de equivalências para as relações entre os mundos social e técnico. A teoria do ator-rede, cuja base é o modelo da tradução estendida, considera falsas as dicotomias entre natureza e sociedade, local e global, macro e microanálise (LA TOUR, 1997). Sua proposta é descrever e analisar a dinâmica das redes sociotécnicas, percebendo seus diferentes comprimentos, graus de irreversibilidade, diversida- de e interconectibilidade (CALLON, 1995, VINCK, 1992). Desta forma, tomando como referência a Teoria do Ator-rede, a trama da produção, consumo e regulação do conhecimen- to tecnocientífico sobre a aids e seus tratamentos pode ser compreendida como “arte de tecer fios e de enredar aliados (TEIXEIRA, 1994)”, situação esta que pode ser evidenciada na afirmação de EPSTEIN (1996:2), e seu estudo sobre tecnociên- cia, aids e ativismo nos EUA:

“Desde o início dos anos 80, o conhecimento sobre a aids, nos Estados Unidos, emergiu de relações de conflito e cooperação, no interior de uma arena ampla, irrigada e delimitada por um perímetro difuso e poroso, onde um eclético conjunto de ato- res vem buscando se afirmar e avaliar qual é o conhecimento confiável sobre a aids “.

Dentre os diversos atores envolvidos nestas disputas, este autor (Idem) identificou: (1) pesquisadores e profissionais da área da saúde, vinculados a diferentes correntes de pensamen- to científico, político e ideológico; (2) educadores e cientistas sociais; (3) políticos e técnicos da saúde pública; (4) ativistas;

(5) pessoas vivendo com aids e seus representantes organiza- dos; (6) agências governamentais e seus comitês assessores, consultivos e deliberativos; (7) indústria farmacêutica e de bio- tecnologia; (8) escritores e jornalistas; (9) os meios de comu- nicação de massa e a imprensa alternativa. A estes podemos ainda acrescentar outros, como: (10) teorias concorrentes; (11) a questão da homossexualidade; (12) o discurso preconceitu- oso; (13) o estágio do desenvolvimento tecnocientífico; (14) a descoberta do vírus HIV como agente etiológico da aids; (15) os desdobramentos deste fato científico para a tecnociência e para a sociedade organizada; (16) a emergência do ativis- mo do tratamento; (17) e o poder de quem tem autoridade e legitimidade, ou seja, credibilidade para falar em nome da tecnociência e da sociedade. Nesta perspectiva, buscaremos ao longo desta tese analisar a dinâmica de configuração das redes sociotécnicas, que deram sustentação e condições de possibilidade para a trajetória identificada em relação à pro- dução e regulação do conhecimento tecnocientífico sobre a causa e o tratamento da aids.

A escolha deste processo como objeto privilegiado deste estu- do se deu, como referido anteriormente, pela riqueza de pos- sibilidades de análise, propiciada pela complexidade envolvida no fazer tecnociência em um ambiente de crise, desencade- ada pelo o surgimento e expansão de uma epidemia, o que acarretou em profundas mudanças políticas, tecnocientíficas e culturais em âmbito mundial. Nesse sentido, segundo O’NEIL (1990:334), a aids instaurou "um pânico potencialmente global com duas frentes: uma crise de legitimação no nível da cultura unissexual global; e uma crise de oportunidade no aparato terapêutico a serviço da população e na ordem médi- ca internacional". De fato, como reforça ALTMAN (1995:19), a epidemia da aids desencadeou uma grave crise social parti- cularmente para o “sistema mundial de doenças, por não ser suscetível de ser administrada pelo aparato médico-governa- mental existente (...)”. WQJ.

Nesta perspectiva, considerando os processos de interação, que ocorreram entre os inúmeros atores mobilizados pelas redes de produção do conhecimento científico sobre a aids e seus tratamentos nos EUA, EPSTEIN (1996:3) identificou que um dos importantes elementos desta trama é o poder, que permeia as disputas por credibilidade, caracterizadas por alianças e confrontos, que ocorreram: (1) entre os cientistas das diferentes disciplinas e instituições; (2) entre estes e a in- dústria farmacêutica; (3) entre esta e as agências de regulação de medicamentos; (4) e entre os diferentes grupos de ativistas, que interagiram entre si, com os meios de comunicação de massas e com todos os demais atores citados, “alterando a condução e a resolução de tais embates”.

Cabe ainda assinalar que a análise realizada por este autor (Idem) demonstrou a existência de um fluxo de poder, eviden- ciado principalmente nas disputas por credibilidade, mas que circulava e permeava todos os espaços, incluindo as fendas e as rachaduras do sistema social. Estas disputas acarreta- ram resistências onipresentes em cada um dos momentos,

dentro e fora dos espaços mais visíveis, manifestando-se no conhecimento, nas práticas, nos significados e nos enunciados tecnoburocráticos e tecnocientíficos. Assim, o fato de a Aids ser uma epidemia altamente politizada acarretou disputas de poder e a construção do que EPSTEIN (1996:3) descreveu como: “uma multiplicação das vias de estabelecimento de cre- dibilidade e uma diversificação das pessoas credenciadas, para além daquelas altamente credenciadas”.

Isto implica assumir a disputa por credibilidade como um dos importantes aspectos da produção do conhecimento tecno- científico sobre a aids e seus tratamentos. Estas disputas, como demonstrou EPSTEIN (1995), ocorreram em arenas mul- tilaterais de interação2, que envolveram a participação de uma

ampla diversidade de atores, incluindo porta-vozes de grupos sociais até então considerados estranhos a este espaço. Den- tre estes ressaltam os ativistas, que, a despeito de serem consi- derados não-especialistas, buscaram interferir na definição da agenda das pesquisas biomédicas, assim como nos processos de desenvolvimento, avaliação e regulação das mesmas. É por este motivo que concordamos com este autor (1996), quando chama a atenção para a dificuldade de se analisar tecnociên- cia, sociedade e aids por meio de recortes verticais, visto que esta interação envolve uma multiplicidade de operações, que ocorrem em várias direções e dimensões, expressadas simulta- neamente: (1) nos debates próprios da esfera epistemológica; (2) nas outras disputas entre os cientistas e instituições de pesquisa; (3) bem como nas discussões, que ocorrem no âm- bito mais amplo da sociedade, onde costumam ser enfocadas, não exclusivamente, porém de forma prioritária, questões re- lativas à missão social da tecnociência.

Um dos objetivos desta tese é exatamente focalizar a dinâmi- ca deste complexo processo técnico e político da produção do conhecimento científico sobre a aids em um contexto de crise de credibilidade da tecnociência, especialmente nos âmbitos da tecnomedicina e da pesquisa biomédica. Esta dinâmica en- volve a mobilização, processamento, negociação e produção de elementos heterogêneos e de efeitos, que emergem das interações das redes sociotécnicas, que dão sustentação, nos diferentes espaços e momentos, à referida produção.

Assim, considerando a credibilidade científica como um dos pi- lares de sustentação da estrutura cognitiva e moral da tecno- ciência, apresentaremos a seguir algumas concepções teóricas e flutuações históricas acerca da natureza e do processo de construção deste tipo de autoridade, conquistada e exercida pelos cientistas na sociedade moderna. Afinal de contas, o que é credibilidade científica? Como ela foi construída e como está sendo questionada na sociedade contemporânea?

Credibilidade científica: estrutura cognitiva e moral da ciência

Alguns estudiosos das relações entre ciência, tecnologia e so- ciedade enfatizam a importância da credibilidade, enquanto estrutura de sustentação da ordem cognitiva e moral da tecno- ciência, que orienta as relações de confiança da prática cien- tífica (BOURDIEU, 1983; KUHN, 1962; LATOUR & WOOLGAR, 1979; SHAPIN, 1994; WILLIAMS & LAW, 1990).

BOURDIEU (1983:122) associa a credibilidade científica a um processo de conquista do monopólio da autoridade, por meio da construção da competência técnica. Esse monopólio é o resultado de um processo de luta concorrencial, que se desen- volve no âmbito de um espaço autônomo definido por esse

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