• Nenhum resultado encontrado

Carel, na sua Teoria dos Blocos Semânticos, toma a língua em blocos, e, diferente de Ducrot, nega, veementemente, as hipóteses externas, mas, como ele, traz também uma proposta de análise descritiva das hipóteses internas da língua, o que pressupõe a atribuição de uma significação precisa à palavra. Carel (2011) sustenta que “A Teoria dos Blocos Semânticos é

uma abordagem predicativa da argumentação, […]”55

(p. 77, tradução nossa), o que vai ao encontro da proposta de Ducrot, que também constrói a sua teoria a partir de predicados argumentativos.

Porém, para a TBS, o predicado é o argumento mais importante e, como já observamos, pode ser buscado fora da frase. Já o sujeito passa à condição de um instrumento anedótico.

55 La théorie des Blocs Sémantiques est d'abord une approche prédicative de l'argumentation, […]

(CAREL, 2011, p. 77).

Temos:

E “Pierre diante uma situação de perigo donc ele não faz.”56 Isso mostra que Pierre é prudente.

Temos, então:

1. Prudente ⊃ DANGER DC NEG FAIRE (perigoso DC neg. fazer) = ligação em DC → normativa

2. Predicado → PRUDENTE

Percebe-se que Carel, a partir da Teoria da Argumentação na Língua (TAL) e da Teoria Argumentativa da Polifonia (TAP), de Ducrot, mas, sob importante influência da matemática, adapta uma certa lógica dos números a uma lógica dos predicados, usando, para tal, a estrutura da língua, objeto de sua teoria. Porém, ela se intitula estruturalista. Esta autora agrupa entre predicados, os nomes, os adjetivos e os verbos e sustenta que a significação de um predicado da língua (nome, adjetivo, verbo), “[...] é constituída, e unicamente constituída,

de aspectos argumentativos.” (CAREL, 2011, p. 103). Logo, segundo a sua teoria, todo

predicado da língua será reduzido a um predicado argumentativo.57 Isso não significa, para ela, que alguns fenômenos não possam receber, também, uma análise enunciativa. Temos: argumento estrutural (frase) e argumento contextual (enunciado).

Porém, para sustentar a predicação argumentativa, Carel não dispensa as noções, por exemplo, de locutor e enunciador, nem de interlocutor. As noções de locutor e enunciador, Carel as traz de Ducrot, principalmente, a partir da Teoria da Argumentação Polifônica (1990). Ela define locutor L como um ser teórico que coloca em cena, no texto, a frase e também os personagens, ou enunciadores. Para Carel (2011), o locutor, ao produzir atos e enunciações, realiza os atos por duas vozes distintas: ao se assimilar a tal ou tal enunciador ou pelo fato mesmo de fazer falar os enunciadores. “O enunciador de um pressuposto não é

56

E Pierre s'est trouvé devant une chose dangereuse à faire donc il a renoncé (CAREL, 2011, p. 78).

57

ninguém além de ON58, uma voz coletiva no interior da qual o locutor é armazenado” (2011, p. 324). Ela ainda não concorda com a distinção que faz Ducrot entre sujeito falante e locutor L e observa que as atitudes do locutor são puramente discursivas e indicam o papel que terá o conteúdo no discurso. “Eu admito que todo enunciado tem um autor, responsável pela introdução de vários conteúdos. Este autor será chamado de locutor e será distinto do sujeito falante, que é o fabricante real do enunciado.59” (CAREL, 2011, p. 291, tradução nossa). Esta autora reforça o seu posicionamento, incluindo uma crítica à proposta de Bakhtin sobre a apresentação de conteúdos, quando diz:

[...] eu distingo (mais radicalmente que Ducrot) o locutor que “fala”, e o “eu” de que falamos. Minha hipótese, reduzida ao nível do texto, seria bastante diversa do que propõe Bakhtin na análise dos romances de Dostoievski. Proponho que um enunciado tem por finalidade a apresentação de conteúdos.60 (CAREL, 2011, p. 300, tradução nossa).

Sua proposta evidencia, logo, que as crenças do locutor não dependem da voz com a qual fala. Apesar de desprezar qualquer possibilidade de pensar os tópicos argumentativos ou os discursos contextualizados, Carel não nega a referência a partir do mundo. Simplesmente, não seria essa a direção da sua proposta, não porque as outras formas de referir não sejam importantes, mas porque a semântica, como as outras linhas, tem uma área de atuação restrita. Como esta autora trabalha com as hipóteses internas, isto é, com a palavra, o referente da palavra passa a ser a própria palavra e, mais do que isso, conforme propõe o entrelaçamento argumentativo, essas palavras são ainda semanticamente dependentes.

Temos:

E “A criança fez barulho, logo, a professora a puniu.” (p. 46) = fazer barulho DC punir → normativa

58 “On” é a

voz da opinião pública. Logo mais traremos exemplos, objetivando visualizar melhor a proposta de Carel.

59 J’admettrai que tout énoncé se donne un auteur, responsable de l’introduction des divers contenus. Cet

auteur sera appelé locuteur et sera distingué du sujet parlant, qui est le fabricant réel de l’énoncé. 60

[...] je distingue (plus radicalement que Ducrot) le locuteur qui “parle”, et le "je" dont on parle. Mon hypothèse, qui, ramenée au niveau des textes, serait tout à fait contraire à ce que Bakhtine dit des romans de Dostoievski, est qu'un énoncé n'a jamais pour fin la seule présentation de contenus. (CAREL, p. 300).

Aqui, Carel sustenta que é impossível separar argumento de conclusão, porque, no interior da argumentação, as expressões “fazer barulho” e “punir” têm interdependência semântica.

Para compreender melhor o sentido de interdependência, no exemplo “Pierre é rico e logo ele é feliz.”, Carel (2011) observa que uma interdependência semântica é instaurada pela conjunção “logo” (donc) entre os constituintes sintáticos “rico” e “feliz”, o que instaura, também, uma relação argumentativa (p. 42). “Muitas vezes, observou-se que o significado de tal ou tal palavra depende de seu contexto de aparição, e mais precisamente de outras palavras da sua situação de ocorrência.”61 (op. cit., p. 44, tradução nossa).

No exemplo acima, “Pierre s'est trouvé devant une chose dangereuse à faire, donc il a

renoncé.”, Carel propõe como predicado a palavra “prudente”, que é preciso buscar fora da estrutura. Dizer que Pierre foi prudente é igualmente dizer que ele deixou de fazer algo, tendo em vista o fato de ser perigoso. Logo, a significação de prudente contém o encadeamento DANGER DC NEG FAIRE. É nesse sentido que o predicado argumentativo de “Perigoso, logo Pierre renunciou é comparável com ser prudente”.

Para distinguirmos o funcionamento das ligações em DC, normativas, e em PT, transgressivas, recorremos ao exemplo abaixo.

Temos:

Pierre devant une chose dangereuse DC renoncera à la faire

Pierre devant une chose dangereuse PT se précipitera pour la faire (CAREL, p. 29)

Temos, então:

Danger DC (renoncer à faire) → ligação normativa Danger PT (ne renoncer pas) → ligação transgressiva

61

On a en effet souvent noté que le sens de tel ou tel mot dépend de son contexte d'apparition, et plus précisément des autres mots de son énoncé d'occurrence. (CAREL, p. 44).

Temos, acima, duas interdependências do argumento à conclusão, sendo que a primeira mostra que um encadeamento em DC é sempre normativo, isto é, obedece ao sentido lógico da língua. Já em PT é sempre transgressivo, porque está fora do sentido lógico da língua, mas não deixa de ser compreendido semanticamente. Logo, as duas expressões estão entrelaçadas no interior da argumentação e são semanticamente interdependentes.

Vejamos:

No contexto dos predicados argumentativos, a palavra prudente, pode ter, então, pelo menos cinco significados: DANGER DC PRÉCAUTION; PRUDENT DC SÉCURITÉ; PRUDENT PT NEG SÉCURITÉ; RESPONSABLE DC PRUDENT e NEG RESPONSABLE PT PRUDENT.

Aqui, chamamos atenção, conforme temos observado, para a relevância da teoria de Carel para propostas de ensino-aprendizagem relativas à análise textual. Pensamos, nos diversos sentidos que podem perpassar os textos, principalmente, na condição de objetos científicos.

Para demonstrar um pouco mais o sentido da teoria de Carel, propomos mais um exemplo:

“Rico, Pierre [DC] tinha muitos amigos.” (2011, p. 82)

Como bem já observamos, Carel sustenta que o predicado é o argumento mais importante e o sujeito passa à condição de um instrumento anedótico. Sendo assim, ela diz que a palavra

“rico” intervém argumentativamente no enunciado, o que sustenta que, como já defende

Ducrot, algumas palavras têm/podem ter mais força argumentativa que outras. Interessante esse ponto de vista, pois, no nosso entender, ele implica que a gramática normativa não mais daria conta de garantir essa relação sujeito-predicado, no sentido de que o predicado, na GN, seria menos importante que o sujeito. Inclusive, neste caso, o sujeito poderia, por exemplo, vir marcado apenas por um pronome pessoal “ele”.

Todas essas incursões, conforme já observamos, a TBS propõe que sejam feitas buscando recursos na própria estrutura da língua. Porém, quando, por exemplo, os alunos de Carel fizeram, em Seminário, a análise do poema Les chats, de Baudelaire, e decidiram que o

pesquisadores, da EHESS, que trabalham com a professora Marion Carel, que pesquisa a estrutura da frase. Logo, para eles, nessa linha de pesquisa, as palavras, com os seus múltiplos sentidos, já estão inscritas na língua. É ali que as buscam, enquanto sujeitos devidamente contextualizados academicamente. Isso significa que em outra situação, outro espaço, outros estudantes poderiam buscar outro termo, tendo em vista a contextualização do conhecimento. Logo, tendo em vista ainda a analogia que fizemos entre predicação e topos, poderia a pesquisa de Carel ter um viés pragmático?

A resposta de Carel será, talvez, sempre não. Mas, também, não é essa a discussão que queremos destacar aqui. O que nos interessa é reforçar a pertinência da TAL e da TAP, de Ducrot, bem como da TBS de Carel, para as propostas de construção do conhecimento acadêmico, a partir de combinações argumentativas nas relações metalinguísticas, que é o que fazem esses autores, conforme bem observa Ducrot. Também não é nossa proposta apontar se uma teoria pode ser mais útil que a outra, mas mostrar as possibilidades de uso delas para análise e compreensão do texto científico, pensando, principalmente, a partir dos aspectos referenciais, que são uma das maiores marcas dessas duas teorias, e condição fundamental

para que o texto fique “pronto”.

9.2.1 Considerações

Segundo já esclarecemos, a TBS nasce da TAL e da TAP, de Ducrot, sendo que essas teorias trabalham, sob paradigmas similares, a passagem (Ducrot) ou interdependência semântica (Carel) de segmentos. Sente-se que o objetivo de Carel, a partir da proposta de Ducrot, é avançar sobre a estrutura da língua. Para tanto, ela se centra principalmente na predicação, quando sustenta, por exemplo, que o sujeito pode passar à condição de um recurso anedótico.

Para melhor compreendermos a TAL, a TAP e a TBS, bem como algumas semelhanças e diferenças pontuais que as unem e separam, segue abaixo, o Quadro 1, que visualiza importantes aspectos que discutimos acima, e que perpassam essas linhas teóricas. Como bem lembramos, aqui, tentamos fazer as nossas descrições, distinguindo as teorias de Ducrot da de Carel.

Quadro 1 – Comparação: linhas teóricas de Ducrot e de Carel

Ducrot - TAL e TAP Carel – TBS

01 combinações argumentativas 01 combinações argumentativas 02 trabalha encadeamentos na frase 02 trabalha entrelaçamentos na frase 03 interdependência semântica 03 interdependência semântica

04 DONC 04 DC / PT

05 Sequências argumentativas / contenus 05 Blocos semânticos 06 locutor e alocutário 06 Locutor = ser teórico 07 Enunciado é o retrato da enunciação 07 enunciado = frase

08 situação discursiva – passagem pelo topos 08 predicados argumentativos 09 multiplicidade de valores semânticos 09 Parafrases

10 encadeamentos argumentativos 10 entrelaçamentos semânticos

11 argumento – conector – conclusão 11 predicação – passagem do argumento à conclusão

12 sujeito no mundo – frase/enunciado 12 sujeito grammatical 13 pragmática integrada 13 semântica argumentativa 14 encadeamentos: argumento conclusão 14 entrelaçamentos = paráfrases 15 argumentação na língua 15 Estruturalista

16 Metalinguagem 16 Metalinguagem

17 Mundo 17 mundo (não)

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Depois de apresentarmos um esqueleto do pensamento de Ducrot e Carel, cumpre lembrar que pretendemos utilizar importante parte das descrições propostas por eles, para trabalharmos, logo mais, as análises, a partir do nosso corpus, 107 Resenhas Acadêmicas Temáticas, frutos da nossa pesquisa de campo.

Tendo em vista as propostas de Ducrot e Carel, de trabalhar as combinações argumentativas sob o viés da interdependência semântica, passamos agora a uma nova etapa desta pesquisa, quando tentamos apontar e discutir a interdependência entre modalizadores e operadores argumentativos ou instrumentos de conexão textual.