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2. FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS: SUBSÍDIOS PARA A

2.3 Os saberes docentes e a formação do professor de ciência

2.3.2 Os trabalhos de Maurice Tardif

A primeira produção desse autor publicada no Brasil ocorreu em 1991, conjuntamente com Lessard e Lahaye, por meio de um artigo na Revista Teoria &

Educação, de Porto Alegre. Ele expõe pela primeira vez, os elementos e etapas de um

programa de pesquisa sociológica sobre os saberes dos professores em relação à sua profissão e sua condição social. Também propõe uma primeira tipologia de saberes baseada na sua origem social e nos modos de integração à carreira. Fornece, ainda, elementos conceituais para a compreensão da desvalorização da docência enquanto profissão e destaca o papel da experiência na construção do saber.

Em 2002, foi lançado o livro Saberes docentes e formação profissional, que reúne oito ensaios de Tardif publicados desde 1991. Esses ensaios representam diferentes momentos e etapas de um itinerário de pesquisa e de reflexão do autor.

Em 2005, Tardif e Lessard publicaram o livro O trabalho docente: elementos

obra que tem como objeto de investigação o trabalho docente no cotidiano escolar com a intenção de descrever, analisar e compreender tal como é desenvolvido pelos professores. O estudo se fundamenta em entrevistas realizadas com professores, diretores de escolas, funcionários, orientadores pedagógicos etc. e observações nas classes e no ambiente das escolas em diferentes momentos do ano escolar.

Analisando as obras publicadas é possível compreender as concepções que o autor expressa sobre os saberes docentes, a tipologia que propõe para sua classificação e a riqueza de sua contribuição para a área.

Para Tardif ( 2002), a relação dos docentes com os saberes não se reduz a função de transmissão aos alunos de um conhecimento já construído, mas a sua prática integra diferentes saberes, com os quais o professor mantém diferentes relações. A perspectiva do autor situa o saber do professor entre o individual e o social, entre o autor e o sistema. Para tanto, se baseia em seis fios condutores. O primeiro diz respeito ao saber e trabalho, no sentido de que o saber do professor deve ser compreendido em íntima relação com o trabalho na escola e na sala de aula.

Tardif (2002) acredita que “o saber do professor traz em si as marcas de seu trabalho, que ele não é somente utilizado como meio de trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho” (p.17). Assim, são as relações mediadas pelo trabalho diário, na escola e na sala de aula, que fornecem princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas.

O segundo fio condutor é a diversidade ou pluralismo do saber, pois entende que o saber dos professores é plural, compósito, heterogêneo, envolvendo, no exercício da ação docente, conhecimentos bastante variados e, normalmente, de natureza diferente.

Essa característica plural do saber dos professores assinala para o autor, a sua característica social. O saber docente é formado por conhecimentos que provém da família do professor, da escola em que estudou quando ainda criança, da formação inicial, da instituição de ensino superior, dos cursos de formação continuada, etc; ou seja, os professores usam saberes produzidos por diferentes grupos sociais incorporados ao seu trabalho.

O terceiro fio condutor se refere à temporalidade do saber. O saber dos professores é temporal, uma vez que o saber é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional. Tardif (2002) referencia vários trabalhos de pesquisa realizados na área de ensino que colocam em evidência a importância das experiências familiares e escolares anteriores à formação inicial no desenvolvimento do

saber ensinar e acrescenta que a ideia de temporalidade se aplica diretamente à sua carreira, compreendida como “um processo temporal marcado pela construção do saber profissional” (p.20).

O quarto fio, denominado como a experiência de trabalho enquanto fundamento do saber, focaliza os saberes oriundos da experiência do trabalho cotidiano como alicerce da prática e da competência profissionais. Os professores tendem a hierarquizar os seus saberes profissionais em função de sua utilidade no ensino, de forma que os saberes oriundos da experiência, na prática docente, constituem o alicerce da prática e da competência profissionais, sendo a experiência a condição para aquisição e produção de seus saberes.

Outro dos fios condutores de Tardif expressa a ideia de trabalho interativo, um trabalho em que o trabalhador se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente por meio da interação humana. A partir dessa ideia, o autor procura compreender as características da interação humana que marcam os saberes dos professores com seus alunos em sala de aula. Assim, o saber docente está ligado a questão de poderes e regras, valores e ética.

O sexto e último fio, saberes e formação profissional, é decorrente dos anteriores, e expressa a necessidade de repensar a formação para o magistério, considerando os saberes dos professores e as realidades específicas de seu trabalho cotidiano. Para Tardif (2002), “o conhecimento do trabalho dos professores e o fato de levar e consideração os seus saberes cotidianos permite renovar nossa concepção não só a respeito da formação deles, mas também de suas identidades, contribuições e diferentes papéis profissionais” (p. 23).

Fica claro que as questões relativas ao trabalho e suas relações com o ser humano e seu saber é muito valorizada por Tardif, assim como, a concepção plural e heterogênea de saber docente. Para ele (2002), os saberes provêm de diversas fontes, como da história de vida; da cultura pessoal; da universidade que fornece os saberes disciplinares e os conhecimentos didáticos e pedagógicos; dos programas, guias e manuais didáticos que acarretam os saberes curriculares; e do conhecimento de outros professores e de seu próprio saber ligado a situações peculiares do ofício de professor.

Essa diversidade de fontes de aquisição de saber não permite que se forme um repertório de conhecimentos unificado, garantindo a característica eclética e sincrética dos saberes decentes.

Ao mesmo tempo, os professores buscam atingir objetivos variados, o que exige a mobilização de diferentes conhecimentos e competências, de modo simultâneo, como, motivar os alunos, gerenciar a turma, trabalhar a matéria, lidar com a diferença entre os indivíduos, avaliar, etc.

O fator temporal também é relevante na perspectiva de Tardif, pois considera que os saberes são adquiridos no decorrer da história de vida e de carreira do professor (TARDIF, 2002). Para Tardif (2000) os saberes são temporais em três sentidos: Primeiramente, parte significativa das concepções sobre o ensino, o papel do professor e como ensinar decorre da história de vida, especificamente a história de vida escolar, o que significa que as concepções, representações e certezas sobre a prática docente são formadas antes dos professores passarem pelos cursos de formação inicial de professores. Tardif também argumenta que tais concepções perduram durante essa etapa e, muitas vezes, condicionam a prática docente nos anos iniciais de sua carreira.

Nos primeiros anos da prática docente é adquirida a maioria das competências e estabelecidas as rotinas de trabalho; ou seja, é o período em que se configura uma aprendizagem intensa do oficio e quando são formados os primeiros saberes experienciais.

Finalmente, os saberes são formados e se modificam durante todo o período da carreira do professor tanto em sala de aula com os alunos quanto no processo de socialização com os demais indivíduos do ambiente escolar (equipe de professores, direção, coordenação etc.).

É a partir desses pressupostos, que Tardif e Raymond (2000) propõem um modelo tipológico de classificação dos saberes (Quadro 1). Com esse modelo, que está representado abaixo, os autores buscavam associar a questão da natureza e da diversidade dos saberes do professor, às suas fontes de aquisição, o que permite evitar a utilização de critérios epistemológicos dissonantes que reflitam os postulados teóricos dos autores.

Quadro1. Tipologia dos Saberes Docentes de acordo com a fonte de aquisição do saber

Saberes dos professores Fontes de aquisição Modos de integração ao trabalho docente Saberes pessoais dos

professores. Família, ambiente de vida, a educação no sentido lato etc.

Pela história de vida e pela socialização primária Saberes provenientes da formação escolar anterior. A escola primária e secundária, os estudos pós-secundários não especializados etc.

Pela formação e pela socialização pré-profissionais. Saberes provenientes da formação profissional para o magistério Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem etc.

Pela formação e pela socialização

profissionais nas

instituições de formação de professores.

Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho.

Na utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas, etc.

Pela utilização das “ferramentas” de trabalho, sua adaptação às tarefas.

Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola

A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares etc

Pela prática do trabalho e pela socialização profissional.

Fonte: (TARDIF; RAYMOND, 2000). Tardif (2002) ressalta que a tipologia apresentada coloca em evidencia vários fenômenos importantes:

- Todos os saberes identificados são realmente utilizados pelos professores no contexto de sua profissão;

- O quadro registra a natureza social dos saberes;

Sobre o caráter sincrético dos saberes, os professores não apresentam uma única concepção de sua prática, mas várias, que utilizam em função do tempo, da sua realidade biográfica e de suas necessidades e recursos.

Se os saberes dos professores possuem uma certa coerência, não se trata de uma coerência teórica nem conceitual, mas pragmática e biográfica: assim com as ferramentas de um artesão, eles fazem parte de uma mesma caixa de ferramentas, pois o artesão que os adotou ou adaptou pode precisar deles em seu trabalho (TARDIF, 2002, p. 65)

O sincretismo está, também, relacionado ao fato de que a relação entre os saberes e o trabalho docente não pode ser pensada a partir do modelo da racionalidade técnica, pois, para o autor, os saberes dos professores não são antecedentes à prática, da mesma forma que não são oriundos, sobretudo da pesquisa, nem de saberes capazes de oferecer soluções prontas e corretas aos problemas concretos da prática.

Além dos anteriores, por sincretismo deve-se entender que o ensino exige do trabalhador a capacidade de utilizar, na ação cotidiana, uma grande quantidade de saberes compósitos, baseando-se em juízos práticos que orientam e estruturam sua prática. Nesse sentido, Tardif (2002) fala de um polimorfismo do raciocínio do professor, que revela o fato de que

(...) durante a sua ação, os saberes do professor são, a um só tempo, construídos e utilizados em função de diferentes tipos de raciocínio (indução, abdução, analogia, etc) que expressam a flexibilidade da atividade docente diante dos fenômenos (normas, regras, afetos, comportamentos, objetivos, papéis sociais) irredutíveis a uma racionalidade única, como por exemplo, da ciência empírica ou da lógica binária clássica (p. 66).

Todavia, a abordagem tipológica realizada pelo autor, é criticada, por ele mesmo, porque sendo baseada na origem social dos saberes, negligencia as dimensões temporais do saber profissional, ou seja, sua inscrição na história de vida e sua construção ao longo da carreira. Tardif e Raymond (2000) produzem um artigo para tratar a questão do tempo no trabalho docente, no qual afirmam a importância da trajetória pré-profissional, da formação inicial e da carreira como momentos de produção de saberes profissionais, sendo o tempo um fator importante na edificação dos saberes que servem de base ao trabalho docente.

Posteriormente, Tardif (2004) classifica os saberes na seguinte tipologia: saberes curriculares, profissionais, disciplinares e experienciais, conforme mostra o quadro abaixo:

Quadro 2 – Classificação dos saberes docentes de acordo com Tardif (2004):

(CARDOSO et al, 2012) Nos ensaios do Tardif (2002, 2004), observa-se a valorização da pluralidade, da heterogeneidade e temporalidade do saber docente, destacando-se a importância dos saberes da experiência.

Também apresentam algumas características dos saberes profissionais segundo a definição de epistemologia da prática profissional dos professores, compreendida como o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas.

Para Tardif (2002), a relação dos docentes com os saberes não é restrita a uma função de transmissão de conhecimentos já constituídos. Ele explica que a prática docente integra diferentes saberes e que mantém diferentes relações com eles. Define o saber docente “[...] como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos

coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais” (p. 36).

Para o autor, as múltiplas articulações entre a prática docente e os saberes fazem dos professores um grupo social e profissional que, para existir, precisa dominar, integrar e mobilizar tais saberes, o que é condição sine qua non para a prática.

A docência é compreendida, por Tardif e Lessard (2005), como “[...] uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu „objeto‟ de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana”. Os autores colocam em evidência “[...] as condições, as tensões e os dilemas que fazem parte desse trabalho feito sobre e com outrem, bem como a vivência das pessoas que o realizam diariamente” (p. 8), pois entendem que é na ação e na interação dos atores escolares que se estrutura a organização do trabalho na escola.