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4 EXPECTATIVAS SOCIAIS À LUZ DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-

4.2 Tradição cultural

Vigotski enfatiza em seus estudos a natureza social da formação da mente humana e a centralidade da cultura para a sua constituição e desenvolvimento. ―Tradição cultural‖ é a segunda categoria de análise proposta a partir da teoria vigotskiana sobre o desenvolvimento das funções mentais superiores, a seguir apresenta-se o seu metatexto produzido, seguindo-se uma proposição sobre concepções e contribuições para a Educação Escolar Básica de Qualidade.

Segundo Martins e Rabatini (2011), o desenvolvimento cultural humano tem como esteio a formação das funções psicológicas superiores. Isso significa que a formação das qualidades únicas da espécie humana está subordinada à construção histórica e cultural de cada sujeito. Essas autoras pesquisaram a concepção de cultura em Vigotski e entendem que ela pode ser concebida como

produto das leis históricas, da atividade práxica do conjunto dos homens, consequentemente, substrato de suas condições concretas de existência. O indivíduo nessa perspectiva é o produtor da cultura e ao mesmo tempo o produto de suas internalizações, por conseguinte, os processos de internalização balizam a qualidade de seu desenvolvimento. (MARTINS; RABATINI, 2011, p. 356).

Vigotski baseia-se nos fundamentos do materialismo histórico e dialético para defender que a constituição do humano tem sua origem no social e desenvolve-se pela internalização das relações, que têm sua gênese no trabalho e nos processos históricos que o mesmo desencadeia. Tudo o que constitui o plano interno nas funções mentais superiores foi, necessariamente, externo; foi para outros o que é hoje para si (SMOLKA, 2000). No entanto, esse movimento de internalização, aqui entendido como significação cultural, não ocorre de forma passiva, nem em uma via de apenas um sentido. Ao mesmo tempo em que o indivíduo significa a cultura a partir da tradição, ele também passa a recriá-la, modificando suas condições socioculturais e modificando a si mesmo, suas necessidades e maneiras de pensar. Nessa perspectiva, a cultura é entendida como ―o produto do trabalho humano e, portanto, expressão do processo histórico‖ (MARTINS; RABATINI, 2011, p. 348). Vigotski entende que

o desenvolvimento não se tratava de uma mera acumulação lenta de mudanças unitárias, mas sim, segundo suas palavras, de ‗um complexo processo dialético, caracterizado pela periodicidade, irregularidade no desenvolvimento das diferentes funções, metamorfose ou transformação

qualitativa de uma forma em outra, entrelaçamento de fatores externos e internos e processos adaptativos‘ (2007, p. 150).

Isso significa que o homem não é um ser passivo, apenas uma consequência das relações sociais, mas um ser que atua sobre o mundo, que modifica e recria as condições sociais e culturais, em um movimento contínuo. De acordo com Aguiar (2000, p. 128), Vigotski ―critica os reducionistas, sejam eles os objetivistas, sejam eles os subjetivistas. Para ele, o sujeito não se constitui com base em fenômenos internos e nem se reduz a simples reflexo passivo do meio‖. A autora cita Leontiev (1978, p.121, tradução nossa) para corroborar com a tese de que ―o reflexo da realidade objetiva pela consciência não se produz passivamente, mas de maneira ativa, criativa, sobre a base e no decorrer da transformação prática da realidade (...).‖.

Vigotski explica a origem das funções psicológicas superiores pela significação cultural, na perspectiva do materialismo histórico e dialético, embasado em três princípios fundamentais: trabalho, sociabilidade e historicidade (RABATINI, 2010). Sucintamente, trata-se de materialismo porque tudo o que caracteriza o especificamente humano advém do contexto real, nesse caso, das relações sociais, de maneira que a consciência não seria constituída sem os meios acessados na interação social com indivíduos que já foram inseridos na cultura e conhecem, por exemplo, seus artefatos culturais e tecnológicos. ―O ponto de partida para o conhecimento da realidade deve ser a materialidade das relações humanas‖ (SABEL, 2006, p. 44). É nas relações de trabalho, produzidas diante das necessidades, em primeira instância, de sobrevivência, que se viabilizam espaços de construção de conhecimento e de acesso à tradição cultural pela sua significação. Na escola, busca-se criar esses espaços de circulação de instrumentos e signos em interações assimétricas e de forma intencional.

O materialismo é histórico, uma vez que o humano, único em sua capacidade de transmissão da cultura entre gerações, seria muito pobre visto numa perspectiva ontogenética, sem o conhecimento construído e transmitido ao longo da história da humanidade. De acordo com Vigotski (2007), as dimensões historicamente criadas e culturalmente elaboradas da vida humana estão ausentes na organização social dos animais. O desenvolvimento das funções mentais superiores se processa na medida em que ocorre a internalização do conhecimento, nesse movimento os aspectos específicos da existência social humana constituem a sua mente. Vigotski encara ―o homem como mediação, justamente, pelo fato de se considerá-lo um ser histórico, mais do que cultural ou determinado pelas condições sociais presentes em seu tempo e espaço.‖

(AGUIAR, 2000, p. 127). Considerar a dimensão histórica da cultura e da sociedade denota a importância da antropologia e da sociologia para estudar o desenvolvimento da mente humana. Sabel (2006) concebe a história, nesse contexto, como um método para analisar as relações materiais, as quais não têm um curso natural e evolucionista, mas são construídas pela atividade humana.

O movimento é dialético uma vez que ―o homem, como sujeito coletivo, pode desempenhar um papel ativo e modificador da realidade, pois é em igual medida produto das determinações sociais e produtor, pelas relações de trabalho, das próprias condições de existência.‖ (SABEL, 2006, p. 44). A abordagem dialética admite a influência da natureza sobre o homem, assim como a capacidade de ele agir sobre ela e modificá-la, criando novas condições naturais para a sua existência (VIGOTSKI, 2007). Trata-se de um movimento dialético, uma vez que assim como as ondas do mar vão e voltam e o mar nem a praia são os mesmos, a consciência e as condições sociais e culturais, transformam o interno e o externo continuamente. Nessa metáfora, a escola poderia ser pensada como potencializadora das marés, uma vez que traz os meios que modificam os sujeitos e o mundo vivido. O homem transforma a natureza e a si próprio como parte dessa natureza (PINO, 2000). Tais transformações se devem, sobretudo, à significação e transmissão cultural, dessa forma o desenvolvimento cultural humano é sempre exponencial diante do desenvolvimento biológico. Vigotski desenvolveu uma abordagem que supera o dualismo entre interno e externo, individual e social, natureza e cultura.

Embora a transmissão cultural ocorra por meio das interações sociais, cultura não é sinônimo de entorno social imediato. ―Para muito além de algo local, regional, específico e etc., a cultura é traço da universalidade humana, produto da prática histórico social dos homens‖ (MARTINS; RABATINI, 2011, p. 357). Cultura implica a construção compartilhada de sentidos e significados, de maneira que a validação, manutenção e recriação cultural estão atreladas à significação pelo outro. O desenvolvimento humano é um processo paradoxo: se por um lado a criança, diferente de outras espécies, ―depende totalmente de organismos imensamente mais experientes que ela; por outro lado, ela colhe os benefícios de um contexto ótimo e socialmente desenvolvido para o aprendizado.‖ (VIGOTSKI, 2007, p.166). As condições de sobrevivência, necessárias para o seu desenvolvimento, promovem interações com os outros, e assim também com a cultura; a qualidade dessas interações é que vai definir o desenvolvimento das capacidades especificamente humanas.

Os instrumentos do pensamento, que são os conceitos pelos quais se entende a realidade, se transformam historicamente dando origem a novas estruturas mentais, as quais não são algo universal e eterno (VIGOTSKI, 2007). Os indivíduos da espécie participam ativamente do próprio aprendizado e da produção e reconstrução das suas condições de existência. A transformação e recriação social e cultural do meio remetem à importância da escola na seleção e síntese da cultura que será perpassada e na qualidade da sua ressignificação pelas novas gerações.

Admite-se hoje que o conhecimento constitui a mente e o pensamento dos sujeitos em um processo continuado e permanente. Isso possibilita que cada membro da sociedade participe com responsabilidade na criação/recriação de seu meio, modificando e retificando decisões tomadas equivocadamente. A mente do sujeito nunca está pronta, é elástica, pode modificar-se constantemente na interação social e cultural. (MALDANER, 1999, p. 290).

Sendo assim, a função da Educação Escolar Básica pode ser pensada no sentido de proporcionar oportunidades para que cada indivíduo tenha acesso à cultura histórica e, com isso, se constitua membro ativo e participante na sua recriação com vistas à melhor qualidade de vida para todos. Isso me leva a fazer a seguinte proposição: A Educação Escolar Básica de Qualidade orienta e organiza o acesso sistemático e intencional à tradição cultural, o que possibilita com que cada sujeito participe com responsabilidade na recriação da sociedade e da cultura, ao mesmo tempo em que produz outras condições que passam a constituí-lo e transformá-lo, tendo em vista a materialidade e historicidade dialética da sua existência.