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Esta investigação iniciou-se a partir de um experimento que originou o artigo Traduzir é categorizar: um caso de tradução interlinguística espanhol- português (BADARACCO; BRUM-DE-PAULA, 2015). Nele, o objetivo foi investigar o modo como os processos de categorização e de proeminência ocorrem em fragmentos da obra Doze contos peregrinos. Analisaram-se a versão original, em espanhol, escrita pelo autor colombiano Gabriel García Márquez (2011 [1992]), e a versão traduzida ao PB, feita pelo tradutor brasileiro Eric Nepomuceno (1992). Focaram-se fragmentos em que o verbo pôr (poner) surge conjugado no particípio em espanhol, com a acepção de vestir-se. De modo geral, procurou-se realizar discussões a respeito do conteúdo semântico que as duas línguas expressam nessas situações. Partindo do pressuposto de que não há uma equivalência direta para a forma puesto no PB e levando em conta que a própria noção de equivalência é bastante controversa nos estudos da tradução, surgiu uma questão norteadora: quais seriam as opções do tradutor ao encontrar-se com uma estrutura do tipo El niño tiene los zapatos puestos? Além disso, o que elas poderiam revelar sobre o aparato conceitual humano? Os níveis de categorização teriam as mesmas especificidade e distintividade na língua-fonte e na língua-alvo? Quais informações deixariam de ser expressas e quais se tornariam explícitas após a tradução dessas sequências? A fim de responder a tais questionamentos, recorreu-se, mormente, às propostas de Rosch (1975; 1978) e Lakoff (1987), as quais se destacam na área das ciências cognitivas.

A pesquisa, apesar de contar com um corpus escasso, traz resultados que interessam aos campos da tradução e da linguística cognitiva. No que concerne à proeminência relativa, constatou-se que sequências com o particípio de pôr em espanhol podem ser traduzidas para o PB de modo particular. Em um dos trechos selecionados, o espanhol traz máscara puesta, que o PB traduz como máscara no rosto. Enquanto na língua espanhola o particípio (puesta) informa que o objeto (a máscara) está sendo usado por uma entidade, na língua portuguesa, o adjunto (no rosto) indica a localização espacial do objeto na entidade. Existe, pois, uma inversão quanto ao que se expressa e ao que se infere. No original, explicita-se o processo ocorrido (pôr) e o estado final (puesto), inferindo-se em que lugar da entidade a máscara se encontra (no rosto); na tradução, por sua vez, explicita-se o locativo, inferindo- se o processo ocorrido e o estado final.

Esse dado, no entanto, constituiu uma exceção quantitativamente. Em sequências que continham outro tipo de objeto da categoria roupa, as estratégias tradutórias foram diferentes. Percebeu-se que, na maioria dos contextos analisados, o tradutor do PB preferiu o processo vestir ao processo pôr. Em correlação com as alternativas gramaticais que cada língua oferece para os particípios, levantou-se a hipótese de que o status do objeto da categoria roupa pudesse influenciar tal escolha. De forma praticamente exclusiva tanto para particípios nominais como para verbais, a forma vestir reservou-se a membros prototípicos da categoria (sobretudo, jaqueta, cueca) ou ao vocábulo que designa a categoria superordenada (roupa). Para membros pouco representativos da categoria, como máscara, houve diversas combinações, e cada uma traz implicações informacionais específicas. Assim, a atividade da tradução torna-se um objeto de estudo pertinente para a linguística cognitiva, uma vez que nela se manifestam os efeitos prototípicos a que se sujeita qualquer categoria.

Outra reflexão passível de maior desenvolvimento que o artigo destaca centra-se nos níveis categoriais e contribui, por isso, às ciências cognitivas em geral. Os dados da pesquisa, juntamente com aqueles obtidos por Rosch

(1975), lançam dúvidas relativas à abrangência da categoria superordenada roupa. Posto que se prefere vestir para exemplares prototípicos de roupa, não seria possível que alguns exemplares não prototípicos pertencessem a outras categorias superordenadas, tais como acessório ou disfarce? Trechos de traduções para o PB que envolvem exemplares como lenço de cozinha ou máscara parecem sugerir que sim. Neles, a tradução escolhe processos diferentes (usar ou estar + preposição) e explicita locativos. Para Brown (1965 apud LAKOFF, 1987, p.32), as categorias superordenadas e subordinadas seriam “frutos da imaginação”, ou seja, abstrações puramente humanas. Por esse exato motivo e com base nas estratégias adotadas pelo tradutor de Doze Contos Peregrinos, pode-se argumentar que roupas difeririam de acessórios e de disfarces, concorrendo essas três categorias no mesmo eixo horizontal superordenado.

As limitações do estudo dizem respeito, principalmente, ao tamanho do corpus (representatividade das amostras) e ao aprofundamento das análises. Os dados de língua espanhola referem-se a um único autor, falante de uma variedade linguística determinada, na qual se localiza um único idioleto. O mesmo se aplica aos dados de língua portuguesa: as traduções resultam do trabalho de um indivíduo só, cujo uso do PB não é igual ao de nenhum outro. O alcance das generalizações feitas a partir dos resultados, pois, é bastante curto, levantando questões metodológicas plausíveis. Como provar que os dados em espanhol não decorrem do estilo de escrita do autor ou não são característicos apenas da variedade colombiana? Uma vez que o método dedutivo não pode responder cientificamente a esses questionamentos, requer- se aumentar o número de dados, quantitativa e qualitativamente. Isso significa lidar com uma amostragem não somente mais ampla, mas também mais diversa. Em relação à análise dos dados, o estudo restringiu-se às fronteiras permitidas pelo gênero textual em que foi veiculado (artigo científico). Aprofundar as discussões concernentes a cada tipo de ocorrência, nesse aspecto, é essencial para levar a cabo uma pesquisa que proporcione contribuições significativas aos diferentes âmbitos dos estudos linguísticos.