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Transformação do jogar jogos clássicos para o jogar jogos familiares

No documento 1.2 Design de Jogos ( game design ) (páginas 120-124)

Capítulo 4 - Análise histórica: As relações de trabalho e brincadeira em jogos de tabuleiro

4.2 A vidades instrumentalizadas pelo jogo de tabuleiro

4.2.2 Transformação do jogar jogos clássicos para o jogar jogos familiares

O domínio da produção artesanal foi cedendo espaço para a industrialização e processos massivos de produção que tornaram a produção em massa dominante.

Esta transformação afetou tanto a produção de jogos como os modos de jogar. A produção massiva tornou o jogo uma mercadoria comercial para venda em larga escala, o que influenciou a a vidade de jogar.

FIGURA 4.9: Transformação do jogar jogos clássicos para o jogar jogos familiares

(FONTE: A AUTORA)

Percebe-se uma transformação dos jogos clássicos para os jogos familiares: da imagem do jogo como algo pernicioso, inadequado para ambientes de moral puritana, para jogos familiares aceitos pelo status quo. A representação gráfica mostra alterações nos sujeitos e na comunidade que antes era dos jogadores de jogos de azar pra cados fora do ambiente domés co, inclusive em locais proibidos, para famílias no ambiente domés co com a presença e inclusão do público infan l, o que leva os jogos a desafios pueris. Os jogadores, que antes

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poderiam ser simples desconhecidos, em oposição direta e arriscada (apostas em dinheiro), tornam-se os próprios familiares, em oposições amistosas. O objeto do jogo clássico, que era a aposta e o risco, como forma de desafiar a imobilidade e estabilidade da época, passa a ser o puro diver mento e passatempo, uma vez que existe um tempo livre para ser consumido.

Estas transformações revelam o caráter moral dos primeiros jogos familiares distribuídos no mercado massivo. Jogos familiares são a mercadoria das grandes empresas do mercado de jogos de tabuleiro.

Jogos familiares

Shanon Applecline pontua três mudanças que afetaram os jogos e os modos de jogar: a produção industrial, o deslocamento do trabalho para fora de casa; e o tempo de lazer.

Primeiramente, Applecline cita as novas técnicas de impressão, que tornaram mais fácil e barata a produção em massa de componentes de jogo. Depois o autor destaca a mudança do trabalho agrário para o trabalho industrial, o que lentamente resultou no conceito de classe média e possibilitou o tempo para o lazer. Em terceiro lugar, destaca que, à medida que o trabalho se deslocava para as fábricas, as casas se tornaram um local para a socialização e a educação. E os jogos aproveitaram essas mudanças. Applecilne segue argumentando que os primeiros jogos de tabuleiro expressaram um forte ethos puritano:

Os ideais puritanos também foram refle dos nos componentes iniciais do jogo.

Cartas e dados eram ambos desaprovados, como haviam sido durante toda a Idade Média. Eles eram vistos como ferramentas do diabo e, portanto, bons cristãos muitas vezes se recusam a usá-los. Como resultado, muitos dos jogos de corrida do século 19 usavam “piorras”. Estes eram topos que poderiam ser girados, e então cairiam em um lado que mostrasse um número (ou possivelmente uma letra). Eles eram dados em tudo, menos na forma. (APPLECLINE, 2013a - tradução nossa ) 26

Cos kyan também oferece uma visão sobre a criação de jogos, dando ênfase à a vidade de design e sua relação com a a vidade de produção e distribuição do jogo como uma mercadoria no sistema de produção massivo.

Afirma o autor que no início do século 20 os jogos comerciais se tornaram mais difundidos (COSTIKYAN, 1998), a exemplo da empresa Parker Brothers’s que publicaram jogos de sucesso como Rook and Pit (PARKER BROTHERS, 1903). O

26Puritanical ideals were also reflected in early game components. Cards and dice were both frowned upon, as they had been throughout the Middle Ages. They were seen as tools of the devil, and so good Christians often refused to use them. As a result many of the 19th century racing games used ´teetotums`. These were tops that could be spun, and would then fall down on a side which displayed a number (or possibly a letter).

They were dice in all but shape. ” (Applecline, 2013a).

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autor lembra que jogos são entretenimento barato, porque se joga de novo e de novo depois de adquiri-lo, e comenta jogos de sucesso como Candyland (HASBRO, 1949), produzidos nos Estados Unidos, o francês Risk (MIRO, 1959) e o britânico Dete ve (WADDINGTONS, 1949). Comenta que designers freelancers imaginavam viver da criação de jogos, embora fosse temeroso abandonar seus trabalhos convencionais. A indústria massiva consiste em grande parte do an go produto de marca que vende porque todos conhecem os tulos.

Applecline (2013a) e Cos kyan (1998) apresentam retratos do mercado de jogos na América do Norte, mas, apesar de localizados, os relatos expressam caracterís cas de sua época, na qual as companhias estabelecidas produzem e distribuem jogos de tabuleiro em larga escala para o consumo de massa direcionado a um público genérico - no caso, a predominância do jogo familiar para o ambiente domés co. A produção massiva não é sa sfatória em oferecer produtos para um público mais maduro, jogos estratégicos ou desafiadores para o público adulto. As exceções são os clássicos (xadrez, gamão, go) ou os jogos de azar (baralhos e dados).

Cabe salientar outro aspecto apresentado no texto de Cos kyan, rela vo ao design e o profissionalismo/amadorismo dos designers freelancers. Cos kyan comenta o retorno milionário do jogo Monopoly (Parker Brothers, 1933) para Charles Darrow e a expecta va de que os designers poderiam se dedicar exclusivamente à criação de jogos. Esta observação revela uma caracterís ca da a vidade de criação de jogos, na qual o sujeito que projeta jogos nem sempre tem retorno financeiro. Isso indica que existem muitos designers amadores atuando na criação de jogos de tabuleiro.

Cabe também tecer comentário sobre a questão dos direitos de autoria e de propriedade que afloram no século 19 e passam a ser regulados por meio do registro de patentes (ANDRADE LIMA, 2006). Nos jogos familiares massivos, prevalece a marca da companhia sobre a autoria do jogo, ou seja, são jogos comercializados somente com menção ao editor, sem iden ficação do designer.

Mary Flanagan (2009, p. 86-87) oferece uma passagem marcante sobre a autoria no design de jogos. A autora relata que o jogo The Landlord’s Game (1903) foi patenteado em 1904 por Elizabeth “Lazzie” Magie, que queria promover ideias sociais sobre uma questão de tributos. Lazzie levou seu jogo em 1924 à companhia Parker Brother’s, que não se impressionou com ele e disse a Lazzie que seu jogo era muito complicado e educa vo, não promovia nenhuma diversão e, o pior, nha cunho polí co, sendo arriscado para uma empresas comercial publicá-lo. O jogo foi rejeitado para publicação, mas localmente, em alguns estados norte-americanos, ele foi usado por professores e estudantes, e foi

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cultuado nos anos 1920 e 30, par cularmente após a crise de 29. Flanagan segue o relato informando que Charles Darrow jogou o jogo de Lazzie e depois criou uma versão com novos gráficos, e em 1934 estava vendendo sua versão com o nome Monopoly, um jogo imensamente similar ao jogo de Lazzie. Darrow patenteou sua modificação e vendeu o jogo para a companhia Parker Brother’s em 1933. A primeira versão de Monopoly (PARKER BROS, 1933) vendeu meio milhão de cópias. Darrow ficou milionário e Lazzie acabou vendendo sua patente para Parker Bros por uma quan a irrisória.

A questão estabelecida aqui é a força do produtor-distribuidor sobre o criador dos jogos quando este busca a ngir grandes massas de consumidores. No exemplo, o jogo devidamente patenteado de Lazzie (The Landlord’s Game, 1904) não obteve sucesso comercial com o esforço isolado da autora, a ngindo apenas um nicho de consumidores fora do circuito comercial, ao passo que a variante do jogo registrada por Darrow (Monopoly, 1935) obteve um alcance global ao ser produzido e distribuído pelo mesmo líder de mercado que rejeitou a apresentação original do jogo, uma década antes.

Criação-produção-distribuição-consumo

Neste período ocorre uma separação efe va entre a produção e o consumo, a a vidade intermediária tem papel determinante na comercialização dessa mercadoria. Aqui se verifica o comportamento compe vo (SNOW, 2015) da produção em massa caracterís ca desta relação de trabalho (ENGESTROM, 2006).

FIGURA 4.10: Criação, produção, distribuição e consumo de jogos familiares

(FONTE: A AUTORA)

A representação gráfica mostra um triângulo para a a vidade de criação (à esquerda), um triângulo para a a vidade de produção e distribuição (centro) e

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um triângulo para o consumo, a a vidade de jogar (à direita). O processo vai em uma sequência linear cuja a vidade central é a produção-distribuição, que liga do criador dos jogos com os jogadores. Aqui encontramos novos jogos sendo criados, ainda que mediados pelas grandes companhias, que criaram um mercado para jogos pueris, de fácil aceitação pelo consumidor de massa. Nesta representação, o resultado da a vidade de criar é o instrumento da a vidade de produzir-distribuir, e o objeto da produção é o instrumento para o consumidor jogar. Nesta configuração o designer e o jogador estão afastados.

O domínio da produção massiva cedeu certo espaço para processos de produção que atendem nichos de mercado, em uma transformação que afetou os pos de jogos e as interações entre os stakeholders.

4.2.3 Transformação do jogar jogos familiares para o jogar jogos temá cos

No documento 1.2 Design de Jogos ( game design ) (páginas 120-124)