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Transformações sociais durante a formação da estrutura social de acumulação

1. Argentina, 1790-1914: formação da estrutura social de acumulação capitalista

1.3 Transformações sociais durante a formação da estrutura social de acumulação

Segundo João Manuel Cardoso de Mello, no bojo da contradição entre capital industrial e exclusivo metropolitano:

“O capitalismo industrial ‘propõe’ a formação de uma periferia produtora, em massa, de produtos primários de exportação, organizando-se a produção em bases capitalistas, quer dizer, mediante trabalho assalariado. É desta periferia que deveriam fazer parte das economias latino-americanas, conjuntamente às demais economias pré-capitalistas”.41

Se trata de uma proposição, pois o capitalismo, em sua etapa competitiva, tem pouco poder de difusão nas áreas coloniais e não capitalistas42. No caso da América Latina, o capital industrial promove o início da crise das economias coloniais, a saber, estimulando o rompimento do pacto colonial. Deste processo devemos destacar dois pontos: por um lado, a avalanche dos produtos industriais ingleses que invadiu os territórios americanos foi estímulo e fruto direto do fim do exclusivo colonial, mas não implicou na extinção do regime de trabalho compulsório (escravismo, mita, encomienda) e na estratificação social básica destas sociedades. Por outro, os capitalistas industriais e livre-cambistas ingleses, no período das

41 MELLO, João Manuel Cardoso de, O capitalismo tardio: contribuição a revisão crítica da formação e do

desenvolvimento da economia brasileira, São Paulo: Brasiliense, 1982, pg 45.

42 “O que nos choca retrospectivamente na primeira metade do século XIX é o contraste entre o enorme e crescente potencial produtivo da industrialização capitalista e sua incapacidade, bem patente, de quebrar as correntes que a prendiam. Poderia crescer drasticamente, mas parecia incapaz de expandir o mercado para seus produtos, proporcionar saídas lucrativas para seu capital acumulado, isso sem mencionar a capacidade de gerar emprego a uma taxa comparável ou com salários adequados”, HOBSBAWM, Eric, A Era do Capital: 1848- 1875, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pg. 58.

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Gráfico III: Evolução dos preços por atacado da arroba de lã em Buenos Aires, 1822-1860 (em pesos fortes)

independências, do ponto de vista de seu poder político, eram impotentes para promover seus objetivos e no máximo conseguiram organizar protestos contra o tráfico negreiro.

É somente a partir da década de 1840, e em definitivo a partir da “Grande Depressão” da década de 1870, que o capital industrial inglês conseguiu estimular e promover a reorganização das economias pré-capitalistas. Podemos apontar o início deste processo na derrota dos protecionistas agrários com as Corn Laws de 1846 e na mudança do foco de acumulação da indústria têxtil para as de bens de produção depois da Gigant Railway Mania em 1845-1847, que estimulou a exportação de capitais e, portanto, a extensão das relações sociais capitalistas pelo mundo43.

Se em algumas partes do globo, como na Índia, o capital industrial inglês consegue, a partir da década de 1840, criar um mundo “à sua imagem e semelhança”, na América Latina, segundo Cardoso de Mello, a força deste:

“(...) nem tem o mesmo poder, nem maior interesse na reorganização das economias nacionais. Não tem o mesmo poder porque estava diante de Estados Nacionais, por mais fracos que fossem, e não de suas colônias; não tem maior interesse porque não surgem por aqui oportunidades de inversão de capitais suficientemente atrativas, isto é, capazes, de concorrer tanto com as colônias inglesas, quanto, e principalmente, com os países que atravessavam vigorosos processos de industrialização”44.

Em relação à região do Prata, o caso das Invasões Inglesas de 1806-1807 é bem ilustrativo. Quando tropas britânicas tomaram os portos de Montevideo e Buenos Aires, o rechaço dos invasores por parte de espanhóis e criollos mostrou a dificuldade de uma intervenção mais direta em uma área que não fosse a de suas colônias. Os episódios levaram a burocracia imperial inglesa a modificar o tipo de ação relativa às colônias espanholas, preterindo a opção militar por uma político-comercial45.

Em última análise, o fraco poder de difusão do capitalismo sobre as recém-criadas nações latino-americanas ocorreu, não por problemas relativos à frouxidão da demanda externa por mercadorias dessas nações e internas à Inglaterra por matérias primas, mas devido a dois principais motivos: em primeiro lugar, pelas dificuldades internas aos países latino- americanos na organização de vigorosas economias exportadoras; em segundo lugar “(...) devido, em última instância, às suas próprias limitações [do capitalismo], porque só na

43 MELLO, op. Cit., pp. 46-47. Cabe lembrar que em um breve período da década de 1820 o capital bancário londrino aventurou-se por algumas das recém-nascidas nações latino-americanas: bancos e empresas mineradoras na Argentina, empréstimos para o império brasileiro, uma estrada de ferro em Caracas e um canal na Nicarágua. Mas de nenhuma maneira pode-se equiparar com as exportações de capitais a partir da década de 1860. PEÑA, op. Cit., pp. 33-34.

44 MELLO, op. Cit., pg. 48. 45 ANSALDI, op. Cit., pg. 533.

Inglaterra havia atingido um estágio relativamente avançado”46. A sorte e a maneira como

foram inseridos os países latino-americanos no mercado internacional dependeu de uma combinação entre as demandas do capital industrial europeu, dos conflitos internos à estes países e dos grupos sociais que emergiram durante esse processo de transição.

Do ponto de vista da emergência de grupos sociais durante este processo de transição, foi durante o século XVIII que uma poderosa classe de comerciantes surgiu na cidade de Buenos Aires em decorrência da especialização no comércio e na administração colonial desencadeadas pela reorganização da economia do Império espanhol. Por sua vez, devido à alta complexidade das redes comerciais que ali tinham seu centro, essa classe pode ser dividida em algumas facções. São elas:

a) Comerciantes dos produtos da metrópole: se dirigiam aos centros de alto

consumo, como Potosí, Lima, Santiago do Chile, Salta e Córdoba. Os pagamentos eram recebidos em metálico, os quais primordialmente se dirigiam às casas comerciais na metrópole.

b) Comerciantes que alternavam a atividade anterior com o comércio de produtos

coloniais. A diferença em relação ao primeiro grupo é que os produtos metropolitanos eram trocados por produtos coloniais, como erva-mate, vinho, aguardentes, etc. O metálico era recebido na venda destes “produtos da terra” nos centros consumidores.

c) Comerciantes ligados à exportação dos produtos coloniais. Basicamente aqueles

que comercializavam couros, charque e sebo animal. Era o setor mais interessado na expansão dos mercados, e, portanto, inimigos do monopólio comercial da coroa espanhola. Realizavam o comércio dos produtos da metrópole somente no atacado, detendo poder e controle sobre redes comerciais não acessíveis aos dois grupos anteriores. Os conflitos com os primeiros grupos irromperam com a quebra do sistema monopolista ao fim do século XVIII.

d) Comerciantes dedicados ao envio de metálico para a metrópole. Este setor

estava vinculado ao anterior principalmente em consequência do contrabando. Essa relação se aprofundou com o rompimento de relações com a metrópole. Estes comerciantes retiravam uma porcentagem da operação de envio, redundando num lucrativo negócio.

Por último, surgiu, com as Reformas Bourbônicas, um novo e poderoso grupo:

e) Comerciantes de origem espanhola, principalmente da Catalunha, que

cresceram com a expansão econômica da metrópole na segunda metade do século XVIII. Este grupo se especializou no comércio de consignação de casas comerciais espanholas e em operações rotineiras na hinterland de Buenos Aires. Construíram nesse circuito uma maior independência de seus mandatários espanhóis e uma maior dependência dos comerciantes do interior.

Esses últimos comerciantes não chegaram a introduzir grandes modificações na região, apesar da pressão que exerceram para abertura do comércio com a Inglaterra. Ao fim, acabaram se fundindo com a velha classe comerciante de Buenos Aires através principalmente do matrimônio47.

Outro poderoso grupo que emergiu ao fim do século XVIII, mas que ainda não possuía a proeminência dos comerciantes, eram os pecuaristas. Estes, à medida que superavam sua dispersão e convergiam em interesses com os comerciantes contrários ao monopólio – dos quais dependiam a princípio para comercializar seus produtos -, começaram a ganhar projeção e chegaram a controlar metade dos postos do Real Consulado48 no ano de 1797. Para Waldo Ansaldi:

“Mais que nenhum setor da sociedade argentina, os pecuaristas do Litoral são um produto genuíno das necessidades do mercado internacional e das Reformas Bourbônicas (...) A demanda externa por couros bovinos compete com êxito com a mais antiga atividade de cria e comércio de muares com o Alto Perú (...) provoca um decisivo processo de apropriação privada do gado – o gado cimarrón quase desaparece da província de Buenos Aires durante o século XVIII – e destaca o papel da estância como unidade de produção, na qual o trabalho assalariado é dominante e onde se combina quase sempre a pecuária com a produção de cereais”.49

O papel da estância – grande propriedade rural - como motor do desenvolvimento do capitalismo argentino tem sido alvo de discussão por mais de meio século. O papel dos terratenientes, da oligarquia ou dos capitalistas dos pampas no desenvolvimento econômico argentino permeou também as diversas discussões políticas no país durante todo século XX.

Raul O. Fradkin resume estas discussões em três principais enfoques. No primeiro, entende-se que os proprietários rurais apelavam para sistemas de coação extra econômicas e exerciam o poder direto do Estado. Nessa vertente, mais que o desenvolvimento de modernas relações capitalistas, haveria ocorrido na gênese da estância um processo de subordinação violenta da população rural ao poder dos proprietários de terra. A segunda visão apresenta o

47 ANSALDI, Op. Cit., pp. 524-527.

48 Espécie de câmara de comércio criada em 1794, onde livre-cambistas e monopolistas discutiam. 49 ANSALDI, op. CIt., pg. 528-529.

pampa desenvolvido por “empresários” agrários, com um comportamento racional e propulsores de relações predominantemente salariais. Segundo Fradkin, os dois primeiros enfoques, por mais que sejam antagônicos, tem um traço em comum: a estância aparece como central para a explicação da sociedade e economia dos pampas. Por fim, um terceiro enfoque procurou reconstruir nos pampas uma sociedade mais complexa, onde a pequena produção familiar tinha um importante papel e impunha limitações e restrições às estâncias. Estas unidades familiares combinariam produção de subsistência com a produção mercantil e, de acordo com os ciclos econômicos, podiam intervir no mercado como vendedores de mercadorias, força de trabalho ou consumidores. Durante a formação da estrutura social de acumulação capitalista nos pampas, distintas formas de trabalho assalariado e de exploração familiar estiveram articuladas com as enormes empresas agrícolas50.

Uma possível leitura da análise que Waldo Ansaldi faz a respeito da formação da economia agropecuária nos pampas na primeira metade do século XIX permitiria articular de maneira simultânea as três versões.

Segundo o autor, a expansão da região passou por uma fase de subordinação da população rural gaúcha e indígena, que vivia nas fronteiras das áreas ocupadas pelas atividades agrícolas. As leis relativas à vadiagem, que voltaremos a comentar a seguir, são um exemplo desse comportamento dos produtores rurais.

A expansão obedeceu a uma racionalidade econômica, pois os crescentes investimentos na pecuária foram motivados pelo aumento da demanda do mercado internacional por esses produtos e pela alta lucratividade dessa atividade. E mais: com a desintegração da economia colonial a partir da década de 1820, os comerciantes da região de Buenos Aires, tanto livre-cambistas como principalmente monopolistas, passaram a diversificar seus investimentos adquirindo terras e empresas pecuárias – como os saladeiros51.

50FRADKIN, Raúl O., “Caminos abiertos en la pampa. Dos décadas de renovación de la historia rural rio- platense desde mediados delsiglo XVIII a mediados del XIX”, in La historia económica argentina enlaencrucijada: balances y perspectivas, coord. Jorge Gelman, Buenos Aires: PrometeoLibros, 2006, pp. 189- 207.

51 A família Anchorena é um exemplo bem ilustrativo de como os fatos impuseram uma mudança de tática e uma acomodação às novas circunstâncias por parte de alguns comerciantes, principalmente da categoria b, que alternavam o comércio de produtos metropolitanos com o de produtos da terra. Comerciantes consignatários de casas espanholas, a família Anchorena se aproveitou de suas relações de poder e informação para se adaptarem ao livre comércio. O filho mais novo, Nicolás, em 1814 passou uma temporada no Chile comercializando erva- mate. Retomado o Chile pelos exércitos realistas, Nicolás abandonou o país e rumou em 1816 ao Brasil, onde começou a negociar couro, sebo e charque. Construindo uma rede de contatos que ia do Rio da Prata, passava por Rio de Janeiro e Havana e chegava à Londres, o pródigo caçula voltou ao seu país em 1822 e iniciou a família na produção pecuária, atividade cujo nome Anchorena ficaria associado na história. LAZÁRO, Alicia Gil e MIRA, Guillermo, “Minería, comercio e moneda en un período de transición. Potosí, la crisis colonial y las bases del crecimiento económico del Rio de la Plata después de la Independencia”, in La desintegración de la

Por fim, a convivência entre grandes e pequenos proprietários ocorreu principalmente nas áreas de ocupação mais antigas – como ao norte de Buenos Aires -, pois a incorporação de novas terras e a formação das grandes estâncias no período posterior à independência ocorreram a partir da fronteira ao sul com o “deserto” indígena.

A partir da aliança de comerciantes e pecuaristas da província de Buenos Aires e do litoral - esboçada na década de 182052, tumultuada durante os governos de Juan Manuel Rosas (1829-1832 e 1835-1852)53, reatada após a batalha de Pavón em 186154 - emergiu a principal força social do século XIX na Argentina. Porém, a subordinação de outras forças sociais, não só localizadas no chamado Litoral – ou mesmo na cidade de Buenos Aires – como nas províncias do Interior e mesmo das camadas mais baixas da sociedade - foi um longo processo que não terminou com a reintegração da Província de Buenos Aires ao país em 1862. Esse processo, do ponto de vista das disputas entre as diversas facções da classe dominante argentina e aproximando as reflexões de Ansaldi com as de Oscar Oszlak, pode ser caracterizado como progressivo-regressivo – ou construtivo-destrutivo.

Progressivo pois destruiu as relações não capitalistas presentes no espaço em que se constituiu a nação argentina – a saber, a economia regional, o âmbito local das relações sociais e os sistemas locais de dominação política. E regressivo pois esse processo não tem força suficiente para romper o papel exercido na divisão internacional do trabalho: de fornecedor de produtos coloniais, constituiu-se no país uma economia que fornece ao centro do sistema produtos primários de exportação.

Construtivo porque contribui de forma decisiva na formação do mercado nacional, integrando as relações de produção e distribuição do interior aos ditames do moderno mercado internacional – isto é, a economia sem restrições e entraves regionais como os impostos provinciais. E destrutivo pois a formação do espaço nacional de acumulação obedece meramente aos interesses – e principalmente à formação de alianças políticas - do setor exportador-pecuarista do litoral, consolidado pela centralização do poder político e militar em um sistema de dominação em nível nacional55.

economia colonial: Comercio y moneda en el interior del espacio colonial (1800-1860), org. Maria Alejandra Irigoin e Roberto Schmit, Buenos Aires: Biblos, 2003, pp. 45-48.

52 Para os anos posteriores a Revolução de Maio de 1810, ver HALPERIN DONGHI, Tulio, Revolución y

guerra: la formación de una elite dirigente em la argentina criolla, Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1972, pp. 316-379.

53 Para os anos de Juan Manuel Rosas, ver Cf. PEÑA, op. Cit.

54 Para as alianças posteriores a queda de Rosas, secessão e reincorporação da Província de Buenos Aires no Estado argentino, ver Cf. PEÑA, Milcíades, De Mitre a Roca: Consolidación de la oligarquia anglocriolla, Buenos Aires: Ediciones Fichas, 1973.

55 ANSALDI, op. Cit., pg. 551 e OSZLAK, Oscar, La formación del Estado argentino, Buenos Aires, Emecé Editores, 2009, pp. 25-26.

No que diz respeito aos chamados “setores populares” ou marginalizados, se a Revolução e a guerra civil haviam destruído o relativo isolamento que estes tinham gozado durante o período colonial ao serem convocados como soldados ou partidários de tal ou qual facção política, os tempos de paz e de formação do espaço nacional de acumulação exigiram o enquadramento destes, tarefa que o Estado Nacional não se furtou de realizar. Leis relativas à vadiagem e a mendicância começaram a ser editadas já na década de 1820: os vagabundos são enviados para o serviço militar ou, se não tiverem condições físicas para a vida de caserna, para trabalharem em obras públicas. Mendigos só seriam autorizados a exercer seu ofício mediante autorização da polícia e se portassem uma identificação oficial. E por fim, a medida mais importante de todas por regulamentar o trabalho no campo, a imposição e obrigatoriedade dos peões rurais de portarem cadernetas que comprovassem seu “bom comportamento”, sob pena de reclusão ou alistamento militar56. Ao impulsionar a construção

de novas relações sociais, Estado e classes dirigentes argentinas destruíram as antigas formas de sociabilidade, exploração e lealdade com as classes dominadas57.

Por fim, o boom das exportações agrícolas a partir da década de 1870, a “Campanha do Deserto” de 1879 e a ascensão do General Julio Argentino Roca a presidência no ano de 1880, acentuaram e outorgaram os traços definitivos da modalidade de produção, circulação e acumulação na Argentina58.

1.4 Consolidação da estrutura social de acumulação capitalista argentina: urbanização,