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Transmissão por Força da Cessão de Crédito e Assunção de Dívidas

No documento CLÁUSULA PENAL E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 (páginas 117-120)

6.3 Os Direitos Potestativos

6.3.2 Transmissão por Força da Cessão de Crédito e Assunção de Dívidas

Conforme verificamos, os direitos potestativos podem ser cedidos isoladamente quando não estão indissoluvelmente ligados a determinado crédito ou a determinada relação contratual. Cumpre analisar, agora, quais os direitos que estão ligados de tal maneira ao crédito que podem ser julgados acessórios deste e, portanto, englobados pela cessão do crédito, a teor do artigo 287 do Código Civil. Como observa com propriedade

Antunes Varela,303

“há direitos potestativos que estão ligados ao crédito cedido, porque gravitam em torno dele como um satélite gira em torno do astro principal; e há outros que, transcendendo a órbita restrita do crédito cedido, estão ligados à relação contratual de onde o crédito emerge.”

Com efeito, em uma cessão de crédito que tem fonte contratual, é de grande relevância distinguir quais direitos potestativos são transferidos ao cessionário do crédito, e

quais permanecem em titularidade do cessionário contratante. Segundo Mota Pinto,304 “num

contrato, ao lado dos interesses da parte contratual como credor, isto é, ao lado deste limitado interesse na recepção da prestação devida, existe um interesse mais amplo, o interesse de cada contratante na consecução do fim contratual”.

Em princípio, seriam cedidos juntamente com o crédito, por serem acessórios deste, aqueles interesses relativos à prestação somente. No entanto, a identificação e delimitação de tais interesses não é tarefa simples.

O Código Civil brasileiro não traz qualquer norte para se identificar quais os interesses que podem ser considerados acessórios ao crédito. O Código Civil português estipula estarem cobertos pela cessão as garantias e outros acessórios “que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente” (artigo 582º), sugerindo apenas que não se transmitem os interesses de natureza personalíssima, o que certamente não resolve a questão aqui colocada.

302 MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de contrato, p. 197-198. 303 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, v. II, p. 325. 304 MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de contrato, p. 200.

O Código Civil argentino menciona, como exemplos de acessórios que são transmitidos juntamente com o crédito, “la fianza, hipoteca, prenda, los interesses vencidos y los privilégios del crédito que no fuesen meramente personales, com faculdad de ejercer, que nace del credito que existia” (artigo 1.634). O Código Napoleão cita também como exemplos de acessórios “a fiança, o privilégio e a hipoteca” (artigo 1.692). Segundo o Código Civil italiano, o crédito é transmitido “com os privilégios, com as garantias pessoais e reais e com outros acessórios” (artigo 1.263). O Código Civil suíço dispõe que, “com o crédito, transmitem-se os direitos preferenciais e os direitos secundários”, sendo que se presumem transmitidos “os juros atrasados” (artigo 170 do Livro V).

Conforme visto, a delimitação dos direitos e interesses, dentre os quais os direitos potestativos, que são transmitidos por força da cessão de crédito, é matéria que, apesar de sua grande relevância, não está tratada, em regra, nos códigos civis, pelo que tal tarefa cabe à doutrina.

Há certos direitos potestativos cuja existência autônoma, separada do crédito, não teria legitimidade, e outros que têm relação inseparável com o fim da relação contratual. Estes “tendem (...) a proteger cada parte contra determinadas vicissitudes que afetam a realização contratual, dando-lhe elementos aptos a impedir o seu prejuízo ou permitir-lhe

prosseguir a consecução do intento visado com o negócio”,305 ainda que sejam direitos

potestativos extintivos, tais como a resolução e a denúncia do contrato. Por esse motivo, não são abrangidos pela cessão de crédito.

Então, em um contrato de locação, ainda que o proprietário tenha cedido os direitos futuros de crédito decorrentes dessa relação, poderá exercer a qualquer momento o direito de denúncia (se cabível), não sendo dado ao cessionário qualquer forma de interferência em tal contrato de locação e no exercício do direito potestativo de denúncia, tendo em vista que é mero cessionário do direito à prestação (direito de crédito) e não integra a relação contratual,

sem prejuízo dos direitos que terá em face do cedente em decorrência de tal denúncia.306

O mesmo ocorre relativamente à resolução por onerosidade excessiva ou por inadimplemento, que dizem respeito essencialmente à relação contratual e não somente ao crédito objeto de cessão, pois a relação de sinalagma e a relação de confiança que deve haver no contrato existem somente entre as partes, vale dizer, cedente e devedor.

305 MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de contrato, p. 204. 306 MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Cessão de contrato, p. 205.

Cumpre analisar se a denúncia do contrato pelo cedente, a qual impede que venha a existir o crédito cedido, violaria a obrigação do cedente de garantir a existência307 do crédito.

Embora seja de responsabilidade do cedente a existência do crédito, a teor do quanto disposto no artigo 295 do Código Civil, a cessão do crédito certamente não retira dele o direito potestativo de denúncia ou resolução do contrato gerador dos direitos cedidos, ainda

que venha a responder perante o cessionário pela inexistência.308

Da mesma forma, o direito de anular o contrato com fundamento em erro, dolo, coação, incapacidade ou lesão não é transmitido ao cessionário do crédito, uma vez que tais vícios dizem respeito a dados ou situações de caráter subjetivo, relativos à pessoa do cedente ou à formação da vontade, processo do qual não tomou parte o cessionário.

Parece-nos que uma maneira segura de determinar quais direitos potestativos são, efetivamente, acessórios do crédito cedido e, portanto, devem acompanhá-lo, é perquirir quais podem ser exercitados independentemente da natureza da obrigação, se contratual, legal ou delitual.

Assim, transmite-se para o cessionário, por exemplo, o direito de interpelar o devedor, de o demandar se ele não cumprir, de executar seu patrimônio se o devedor não acatar a respectiva decisão judicial, de escolher a prestação, se esta for alternativa ou genérica e a escolha pertencer ao credor.

Por outro lado, não se transmitem para o cessionário importantes direitos potestativos que continuam na esfera jurídica do cedente, dentre eles o direito de resolver o contrato por falta de cumprimento ou com fundamento na excessiva onerosidade de que

307 Segundo Massimo Bianca, “la garanzia dell’esistenza del credito (nomen verum) há per oggetto il

risultato translativo della cessione, e rende responsabile il cedente tutte le ipotesi in cui il cessionario non consegue la titolaritá del credito cedutogli, o, vendola conseguita, la perde per fatto del cedente” (Diritto civile, v. 4, p. 595).

308 O assunto traz questões cuja solução não é simples. Tendo em vista que o exercício de direitos

potestativos não transmitidos ao cessionário por força da cessão podem ter efeitos direitos sobre o direito de crédito objeto de cessão, podendo impor inclusive sua extinção, é de se questionar se, para o exercício de tais direitos, seria dever do cedente solicitar uma autorização do cessionário. Mota Pinto (Cessão de contrato, p. 208, nota de rodapé) refere que parte da doutrina entende ser exigível tal autorização, e cita especificamente Galvão Telles, o qual entende que passam ao cessionário os direitos à anulação, revogação ou rescisão do contrato. O autor rechaça tal posicionamento, mas refere, quanto aos direitos potestativos extintivos, que se pode, “no máximo, considerar-se a necessidade do consentimento do cessionário para o seu exercício, parecendo- me, todavia, dispensável mesmo esta exigência”. Somos do entendimento de que tal autorização é absolutamente dispensável, uma vez que o direito à resolução diz respeito unicamente à relação contratual, e não à prestação objeto de cessão, pelo que permanece integralmente na esfera jurídica do cedente.

tratam os artigos 478 e seguintes do Código Civil, pois estes derivam, primordialmente, da natureza contratual da obrigação.

Relativamente à assunção de dívidas, valem as mesmas regras referidas acerca da

cessão de crédito. Como observa Mota Pinto,309 “terá aplicação, aqui [assunção de dívidas],

a distinção proposta por Von Thur, entre direitos potestativos conexionados com a dívida e direitos potestativos concernentes à relação contratual (...)”.

6.4 OS DEVERES ACESSÓRIOS E LATERAIS

No documento CLÁUSULA PENAL E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 (páginas 117-120)