pró-burguês pombalino, consoante o sacros- santo e reiterado enunciado de Augusto França, que ideário consubstanciaria, afinal, esse carácter emblemático alegadamente tão do agrado do ministro de D. José? E por que razão nos projectos apresentados pelos demais concorrentes, detentores de idêntica formação teórica e qualificados oficiais do seu ofício, de- signadamente no da parceria Eugénio dos San- tos e António Carlos Andreas, nem sequer vis- lumbres são detectáveis da disciplina do plano que toma a proposta, em cujo traçado Mardel interveio, singular?4Foi, em suma, a sua ade-
quação às preocupações regalistas herdadas de D. João V, e já compendiadas pelo Magnâ- nimo no palácio cenóbio de Mafra, que in- fluenciou decisivamente Sebastião José de Carvalho e Melo. A constatação não é inova- dora, porquanto Luís Chaves implicitamente a contemplou ao admitir a adaptação do plano do Convento de Mafra ao Terreiro do Paço5.
Adaptação formal, com efeito, mas sobretudo metafórica e evocativa dos topoi semânticos do
eschaton nacional. É o caso, entre outros, da
utilização de certos números, como o 17 e seus múltiplos6: na declinação do Cardo relativa-
mente ao eixo do Norte verdadeiro e a alguns secundários; no cômputo das artérias (8 ruas no sentido sul-norte e 9 no leste-oeste); nas re- lações angulares, em geral; nos arcos da Praça do Comércio, etc.
Como, porém, o di arithmon da tratadística greco-latina (provado mediante números), passa por ser fórmula menos precisa que o dia
ton grammon (provado com o auxílio de li-
nhas, ou construções geométricas), é conve- niente submeter o modelo teórico da Baixa à regra do compasso e do esquadro com o objec- tivo de apurar qual a simetria que o rege. Considere-se, então, a zona de intervenção, ex- cluindo os três Recintos. A área em apreço fi- cará confinada num rectângulo cujas extremas são: o Rossio, a norte; as ruas do Carmo e Nova do Almada, a poente; a Praça do Comér- cio, a sul; a Rua da Madalena, a nascente. Dentro desse rectângulo coexistiam original- mente dois módulos: um residencial, consti- Monte de Santana) é Santo Antão3, cuja festa
cai a 17 de Janeiro, em pleno signo do Capri- córnio, enquanto o Cais das Colunas conduz ao aquático Câncer (a indispensável purifica- ção antes da passagem a um estado superior). 3) Os três Recintos: a mundividência suposta nesta tripartição assenta, segundo Georges Du- mezil, em três energias ou ordens que garan- tem o curso do mundo, a saber: a soberania, regida pelo céu e representada pelo templo (oratores ou clero = Rossio, a norte, Palácio da Inquisição e Igreja de São Domingos); a fecun- didade que radica no mundo subterrâneo e se materializa no celeiro (laboratores ou povo = Praça da Figueira, a nascente); a força que age no mundo terrestre e tem sede no paço (bella-
tores ou nobreza = Real Praça do Comércio, a
sul, Ministérios do Reino). Nesta trifuncionali- dade a que Platão se reporta quando descreve a Alma do Mundo (mistura de três substâncias, uma indivisível outra divisível, ligadas por um “misto”), patenteada pelos três degraus do pe- lourinho (réplica do altar védico), se baseia a organização social convencional no Antigo Re- gime, conforme a tese de Georges Duby sobre o imaginário do feudalismo.
Torna-se, assim, evidente a razão por que ne- nhuma das partes constituintes da obra pom- balina pode ser alienada sem prejuízo do todo e dos seus habitantes, inexoravelmente in- fluenciados pelo clima psíquico exercido pelos elementos dominantes da estrutura física da cidade.
Se confrontado com os restantes projectos des- tinados à reconstrução da Baixa lisboeta sub- metidos a Pombal, o subscrito por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, destaca-se não apenas por denotar uma assinalável coerência formal, como, particularmente, mercê do seu carácter ostensivamente emblemático, o qual deu a José-Augusto França azo a clamar que concordava com o pensamento político do marquês e que influira de forma determinante no modo como este o acolhera e pusera em execução. Uma vez que é por demais duvidosa a absoluta subordinação do plano ao programa
A Praça do Real Arco demonstrada
Fig. 1
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Modelo teórico da Baixa Pombalina com traçado gerador.
áurea, na mediana de cujo lado meridional as- senta a estátua de D. José.
O monumento não preenche o centro geomé- trico da praça, todavia essa aparente deficiên- cia de cálculo não resulta de uma qualquer causa aleatória, muito pelo contrário, uma vez que o local foi objecto de ritual que lhe super- lativou a sacralidade7. De resto, o centro vir-
tual ou omphalos que manifesta será o polari- zador da retórica geometrizante de que o sobe- tuído por quarteirões orientados norte-sul, e
outro administrativo, formado por quarteirões orientados nascente-poente, situado entre a Rua da Conceição e o Terreiro do Paço. O de- senho aprovado revela que o primeiro desses módulos configura um quadrado cuja diago- nal rebatida gera o limite sul do segundo, a totalidade desse espaço constituindo um rec- tângulo √2. O rebatimento da diagonal da metade do aludido quadrado gera uma secção
A Praça do Real Arco demonstrada
Fig. 2 Baixo-relevo de Machado de Castro inspirado em Cesare Ripa
DGEMN.
João
Cabral,
Sol, a Lua e o Grão-Mestre, também havia na mesma casa a figura do Sol, feita de papelão dourado e a da Lua, de papelão prateado e uma proporção matemática [delta = 47.aproposição
de Euclides], feita de papelão cortado […] e também havia na mesma casa nas ditas oca- siões as quatro letras iniciais dos quatro ventos principais: Norte, Sul, Leste, Oeste”.12
Resta determinar em que medida a tão omni- presente Casa dos Vinte e Quatro13e bem
assim a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, ambas consabidamente herdeiras dos mesteirais e da sua ética corporativa14, in-
fluenciaram as opções feitas.
Uma coisa parece indubitável. O baixo-relevo colocado na face do pedestal “que olha a ci- dade” serve de autêntico epítome à obra pom- balina. Machado de Castro declara ter-se inspi- rado na Iconologia de Cesare Ripa para a ela- boração dessa Invenção poética15: assim, nela
são reconhecíveis a Generosidade Régia (Real donzela) acompanhada por um leão e uma ce- gonha, o Governo da República (varão ves- tido de couraça) amparando a Cidade de Lis- boa, o Amor da Virtude (menino alado co- roado de louro e uma estrela) conduzindo pelo braço ao Governo da República, o Comércio (varão abrindo um cofre) oferecendo riquezas à Generosidade Régia, a Providência Humana (matrona coroada de espigas de trigo, osten- tando um leme e duas chaves) e a Arquitec- tura (segurando a planta onde se vê o plano da reedificação, um compasso e um esquadro) . Os rano absoluto é, concomitantemente, a encar-
nação e o dispensador. A sua qualidade de Rei-Máquina fica subentendida pela forma como a própria estátua se viu transportada desde a fundição e colocada no pedestal. Encontrando-se no centro, o rei situa-se no cume. A sua entronização no topo do obelisco, simulado pelo plinto da estátua, assinala-o como Sol sempre Augusto, governando como Pai da Pátria e Sacra Majestade (Invicta, Pia e Justa), com a missão de reconduzir os elementos caóticos (as serpentes que o seu cavalo esmaga sob os cacos) à harmonia cósmica. Em torno a si, e a seus pés, mostra-se o mundo todo (su-
burbia), enquanto Ele recapitula a História à
Luz da Eternidade. Não admira, pois, que na cerimónia de inaguração da estátua, coroamento de todo o projecto, Apolo, Oceano, Portugal Triunfante e os quatro continentes tenham ido todos prestar vassalagem ao soberano. Efectiva- mente, a estátua equestre irradia a partir do foco de uma circunferência que igualmente constitui o foco de um triângulo equilátero nela inscrito e cujos vértices coincidem com os eixos da Rua Augusta e das portas laterais dos tor- reões do Ministério da Guerra e da Alfândega8.
Ganha deste modo maior consistência e signi- ficado a observação de Helmut Wohl, segundo o qual “as contribuições de Mardel residem na qualidade dos seus desenhos e nas suas inova- ções relativamente a um certo número de pro- blemas arquitectónicos”, ou aquela outra onde sublinha que “era extremamente sensível à be- leza das formas simples e não decoradas”9.
A circunstância, que jamais originou qualquer reparo relevante10, de Carlos Mardel constar
como participante nos conclaves da Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, cujas ac- tividades um inquérito da Inquisição, intitu- lado Sumário das Testemunhas que se tirarão a
respeito dos Pedreiros Livres11, pretendia investi-
gar, lança ainda alguma luz sobre o caso. De facto, num dos depoimentos de Miguel O’Kelly, este afirma a dado passo: “[…] E nas ocasiões em que entrava algum de novo, es- tando demais na dita casa três tochas acesas, em figura triangular, em que simbolizavam o
A Praça do Real Arco demonstrada
Fig.3 Pormenor da Fig. 2. DGEMN. João Cabral, 1994
Notas
1 – Segundo um axioma consagrado por Homero, no episódio da gruta de Ítaca descrita na Odisseia, as almas “descem” pela porta Sul ou dos Homens (Caran- guejo) e “sobem” pela porta Norte ou dos Deuses (Capricórnio) do Zodíaco. No cristianismo, o simbolismo da es- cada de Jacob encerra a mesma ideia, tendo inspirado patriarcas e doutores. 2 – Janus também é conhecido por
Mestre do triplo tempo, sendo por
vezes representado com três rostos, na ordem do passado, do eterno presente e do futuro. Outro dos seus atributos é a barca, também distintivo de São Pedro. 3 – Do grego An + ateneus, aquele que suporta as coisas do alto. A direc- ção norte representa o eixo do frio, das trevas e dos perigos demoníacos, o que explica a presença do eremita, comba- tente do demónio, nessa extremidade da cidade. Curiosamente, é na Rua das Portas de Santo Antão que se localiza o Ateneu Comercial de Lisboa… 4 – Instituto Geográfico Cadastral, n.o219. Publicado por Vieira da Silva,
Plantas topográficas de Lisboa, Lisboa,
1950. Ainda não surge contemplada a Praça da Figueira, só posteriormente de- senhada em duas plantas existentes no mesmo Instituto. A atribuição exclusiva do plano a Eugénio dos Santos é uma mera suposição confessada por Augusto França, não obstante ter à vista o autó- grafo de Carlos Mardel. Cf. Lisboa Pomba-
lina e o Iluminismo, Lisboa, 1965, p. 73.
5 – Cf. Mafra: o Monumento, separata da
Rev. de Guimarães (1963), p. 9. A sobre-
posição das plantas de ambos os “edifí- cios” à mesma escala revela que os tor-
reões de Mafra “encaixam” perfeita- mente nos do Terreiro do Paço, que funciona como autêntico “negativo” para o “positivo” mafrense, o qual preenche todo o espaço até à Rua da Conceição. A estátua de D. José coin- cide com o altar-mor da basílica. 6 – Manuel J. Gandra, Ourique, como ca-
tegoria escatológica da portugalidade, Ma-
fra, 1991.
7 – A praça só existia em projecto quando se lançou a primeira pedra do monu- mento, para assinalar o local.
8 – O triângulo em causa reproduz a té- trada pitagórica (1+2+3+4 = 10). 9 – Cf. “Carlos Mardel and his Lisbon Architecture”, in Apollo, n.o134 (Abril
1973), p. 357.
10 – O Sumário foi estudado por Bar- bosa Sueiro, Um inquérito da Inquisição de
Lisboa no século XVIII, Lisboa, 1930; Sid-
ney Vatcher, “A Lodge of lrishmen at Lis- bon, 1738: an early record of Inquisition Proceedings”, in Ars Quatuor Coronato-
rum, v. 84 (1971), p. 75-109; Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal,
v. 2, t. 2, Lisboa, 1980, p. 439-526; An- tónio Egídio Fernandes Loja, A Luta do
Poder contra a Maçonaria: quatro perseguições no século XVIII, Lisboa, 1986, p. 13-67.
Apenas o Prof. Silva Dias aflora a questão. 11 – AN/TT: caderno 108 (300 da Or- dem) do Promotor, f. 408r- 474r. Mardel é citado nos depoimentos de Frei Carlos O’Kelley (f. 409v; Silva Dias, ob. cit., p. 443), Dionísio Hogan (f. 424v; p. 468), Diogo O’Kelley (f.465v; p. 517) e Miguel O’KelIey (f. 467; p. 519). 12 – Cf. Silva Dias, ob. cit., p. 521. 13 – Na definição da toponímia dos ar- ruamentos da Baixa (decreto de 5 de
Novembro de 1760) e no patrocínio dado à elevação do monumento eques- tre (“Collegi Negotiarum curans”). Apesar de não existirem documentos que permitam estabelecer com segu- rança o início das corporações de ofí- cios em Portugal e da sua criação ofi- cial em Lisboa datar apenas dos últi- mos dias de Dezembro de 1383, presume-se que a Casa dos Vinte e
Quatro tenha mantido operativos
grande número de preceitos transmiti- dos pelos collegia fabrorum latinos, cujos magistério e influência terão per- sistido incólumes graças às guildas me- dievais. A sua hierarquia (aprendiz, ofi- cial, mestre, escrivão, depositário, alfe- res e juiz do ofício) apresenta certo paralelismo com a praticada pela Casa
Real dos Pedreiros Livres da Lusitâ- nia (aprendiz, oficial, mestre, e as dig-
nidades funcionais de mação excelente e mação grande).
14 – O Grão-Mestre da Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia alude à existência no seu grémio de 2 ou 3 pe- dreiros livres mecânicos.
15 – Exceptua a matrona que figura Lis- boa. Cf. “Descripção analytica”, p. 194- -197, in Escritos Diversos, p. 360-361. 16 – Observações secretíssimas do Marquês
de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello na ocasião da inauguração da Está- tua Equestre no dia 6 de Junho de 1775, e entregues por ele mesmo, oito dias depois ao Senhor Rei D.José I, in Cartas e outras obras selectas do marquês de pombal, mi- nistro e secretário d’Estado d’el-Rei D. Jozé I com o epítome da vida deste mi- nistro e ornado do seu retrato, Lisboa,
1822, p. 15-16. A Praça do Real Arco demonstrada
objectos apresentados pelas Providência Hu- mana e Arquitectura denunciam, tal como na obra de Ripa, o seu verdadeiro alcance: aquela ocupa o lugar de Janus (as duas chaves e o leme), ao passo que esta evoca o Criador e os que dão pelo nome de pedreiros livres. Em face do exposto, não serão, por consequên- cia, dispiciendas as palavras seguintes do mar- quês de Pombal dirigidas ao seu monarca: “A grande cortina que no felicíssimo dia 6 do corrente mês de Junho de 1775, descobriu a Régia Estátua de El-Rei meu Senhor, veio a
manifestar nos dias sucessivos ao claro conheci- mento de todos aqueles que, não passando da superfície dos objectos que lhes presentam à vista, passam a investigar e compreender a substância das coisas, que Sua Majestade não só tem inteiramente dissipado as trevas e repa- rado as ruínas em que achou sepultados os seus Reinos, mas que além disso tem feito aparecer outra vez em Portugal o século feliz dos Senho- res Reis D. Manuel e D. João III, para os exce- der com os progressos das suas paternais, mag- nânimas e infatigáveis providências.”16"
D O S S I E R