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A barragem de Sobradinho está localizada no rio São Francisco, no município de Sobradinho, estado da Bahia. Esse empreendimento foi construído pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF)7, entre os anos 1973 e 1978, e possui uma potência instalada de 1.050,3 MW, com uma área de reservatório de 4.214 km2, que resultou no deslocamento forçado de, aproximadamente, 60.000 pessoas, segundo dados de Sigaud (1986). Ressalta-se que, ao longo das margens do São Francisco desenvolveram-se modos de vida profundamente vinculados à utilização do rio, como pesca, agricultura de vazante, agricultura de terra firme e criatório nas áreas secas (SIGAUD, 1986).

O contexto histórico em que foi implantada a UHE Sobradinho caracteriza-se por ser um período de autoritarismo político, em que vigorava o regime militar. Tal conjuntura traduzia-se, portanto, como desfavorável às reivindicações populares e na força do Estado para impor o que havia estabelecido, contribuindo para inibir as reações da população compulsoriamente deslocada, impedindo-a de participar efetivamente do processo de reassentamento (SIGAUD, 1986).

Em consequência disso, foram propostas soluções injustas, com indenizações irrisórias, que ficaram muito aquém das reais necessidades da população atingida. Além disso, as soluções propostas foram uniformes, sendo desconsiderada a extrema diversidade das relações sociais que traduzem o modo de vida das populações rurais atingidas (ARAÚJO et al., 2000).

Nesse sentido, Duqué (1984) assevera que a remoção compulsória para a construção da barragem de Sobradinho foi percebida pela população rural local como uma verdadeira catástrofe, uma vez que as famílias atingidas perderam as terras de vazante, consideradas as melhores, por serem adubadas naturalmente pelas enchentes dos rios. Além disso, as indenizações foram consideradas demasiadamente injustas, uma vez que somente os proprietários com títulos de terra tiveram o direito à justa indenização, ou seja, receberam-na pelo valor da terra nua. Os demais (a maioria da população rural), considerados posseiros por não possuírem o título da terra, mas que nela trabalhavam, receberam indenização apenas pelas benfeitorias realizadas (DUQUÉ, 1984).

Sob esse aspecto, Duqué (1984, p. 37) assume que Sobradinho foi:

um projeto pensado de forma autoritária, imposto nas suas formas de aplicação de cima para baixo e executado sem nenhuma flexibilidade, segundo um modelo rígido. As sugestões populares foram quase todas rechaçadas.

Os altos custos sociais de Sobradinho foram percebidos por várias entidades, podendo- se ressaltar a organização sindical dos trabalhadores rurais, a igreja católica, a população atingida e a própria CHESF. Dentre esses custos, destacam-se: os baixos valores das indenizações pagas aos trabalhadores rurais e a forma arbitrária de seu estabelecimento; o deslocamento compulsório e mal planejado da população atingida; a destruição de hábitos culturais, relacionados ao modo de vida da população ribeirinha; e perdas materiais decorrentes da transferência, com o consequente empobrecimento da população. Some-se a isso o desespero e a insegurança gerados na população frente aos aspectos coercitivos de atuação da CHESF, que não atuava de forma transparente, deixando a população desinformada quanto ao seu destino (SIGAUD, 1986). Segundo Sigaud (1986, p. 31) a “realocação da população em Sobradinho está mais próxima de uma operação militar para evacuar um território, do que uma operação de reassentamento”.

Embora esses efeitos sociais negativos tenham sido previstos pela CHESF, ela nada fez para evitá-los, uma vez que os custos impostos por tais medidas poderiam inviabilizar o projeto. Sendo a geração de energia elétrica uma prioridade inquestionável para suprir o aumento da demanda energética imposta pelo crescimento econômico, as questões sociais adversas à construção da barragem de Sobradinho eram consideradas acessórias, uma

externalidade negativa que deveria ser neutralizada. A população ribeirinha que ali estava instalada era um entrave a ser removido para a formação do reservatório. Contudo, essa prioridade dada à questão energética foi estabelecida pelo Poder Executivo sem qualquer consulta à sociedade, desconsiderando, portanto, seus verdadeiros interesses (SIGAUD, 1986).

Não obstante a literatura tenha trazido aspectos relacionados à resistência da população ao projeto de reassentamento imposto pela CHESF (DUQUÉ, 1984; SIGAUD, 1986; BARROS, 1984), não se tratava de um movimento organizado e com força nacional. A organização sindical era frágil e não houve atuação de partidos políticos durante o deslocamento. Sigaud (1986) salienta que a Igreja Católica começou a influir ativamente somente no final do processo. Nesse sentido, não houve uma mediação política para a organização da população na luta por seus desejos e direitos. Assim, a resistência da população ao projeto de reassentamento imposto foi formada basicamente pela organização comunitária local, preexistente à intervenção do Estado, constituída “por parentelas com fortes laços de solidariedade” (SIGAUD, 1986, p. 37). Segundo Sigaud (1986, p. 37), essa organização social “adquiriu funções „políticas‟ no momento do conflito e funcionou como a principal instância de organização e pressão política”. Houve, portanto, uma reação coletiva, realizada por meio das articulações existentes entre os povoados. Sigaud (1986) afirma que, apesar de essas articulações serem preexistentes, elas foram fortalecidas ao longo do enfrentamento do conflito com a CHESF.

O fato de a população ter se recusado a se deslocar para o projeto de colonização do INCRA, situado a 700 km de distância do reservatório, e ter optado por ser reinstalada de forma precária na borda do lago, apesar da resistência da CHESF a essa solução, foi considerada uma vitória popular, uma vez que conseguiu impor o que lhe parecia mais conveniente (DUQUÉ, 1984). Dessa forma, por mais que a reação da população tenha sido limitada, a pressão por ela exercida sobre a CHESF pode ser considerada uma resposta política, que foi capaz de alterar os rumos que estavam sendo impostos pelo Estado (SIGAUD, 1986).

Diante disso, resta claro que a principal causa dos conflitos sociais na implantação da UHE Sobradinho foi o deslocamento compulsório da população ribeirinha, que tinha seu modo de vida atrelado à utilização do rio, com fortes laços culturais estabelecidos no local. Com isso, o impacto causado pelo empreendimento foi rebatido com uma resposta cultural da população à intervenção que lhe estava sendo imposta pelo Estado de cima para baixo.

Entretanto, o fim dos impactos socioambientais gerados em Sobradinho só será visto quando a população deslocada tiver recuperado sua auto suficiência (SIGAUD, 1986).

Nota-se, ainda, que não houve mediação na gestão dos conflitos. O que houve foi uma pressão social sobre o governo, que terminou impondo a vontade popular. Apesar dos baixos valores das indenizações e da desestruturação da organização social preexistente, a vitória popular foi obtida quando os rumos que haviam sido traçados pelo Estado foram alterados. No caso de Sobradinho restou claro que o conflito manifestado pela resistência da população, por mais que tenha sido limitado, foi o fator que determinou sua vitória frente ao autoritarismo estatal vigente à época da implantação desse empreendimento.

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