• Nenhum resultado encontrado

Um outro modelo de ciência: Possibilidades para a construção do conhecimento

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA 2007 (páginas 84-88)

2 SOBRE A METODOLOGIA DA PESQUISA

2.1 Um outro modelo de ciência: Possibilidades para a construção do conhecimento

Quando nos deparamos com o modelo de racionalidade científica proposto pela ciência moderna, percebemos que ele despreza o senso comum. O senso comum é marcado pelo conhecimento não científico, a superficialidade, o conhecimento que se considera ilusório, falso, conservador e com um valor prático. Porém, no decorrer da história esse senso sofreu transformações. Hoje há um senso comum que foi produzido pela transformação do conhecimento científico em novo senso comum. Este, ao estabelecer um diálogo com a ciência sofrerá uma reconfiguração transformando o conhecimento em esclarecimento, pois, uma vez que a ciência reconfigura o saber comum esta também pensa, trabalha e parte do senso comum, de modo que o que acontece, na verdade, é uma retroalimentação entre esses dois modos de produção de conhecimentos.

Portanto, ao se afirmar que a ciência moderna se colocou em oposição ao senso comum, estamos considerando que ela preconiza a distinção entre ciência e senso comum, definindo, desse modo, dois tipos de conhecimento: conhecimento verdadeiro e senso comum. Esta distinção de um e outro conhecimento é questionada por Santos (2001) quando afirma a necessidade de repensarmos o papel do senso comum na produção do conhecimento.

Para isso, Santos (2001) propõe a idéia de uma dupla ruptura epistemológica instaurada com o intuito de valorizá-lo. A primeira se configura na distinção entre ciência e senso comum, e a segunda envolve a superação desta oposição, ou seja, o rompimento com primeira, a fim de transformar o conhecimento científico em um “novo senso comum”, pois:

Por outras palavras, o conhecimento-emancipação tem de romper com o senso comum conservador, mistificado e mistificador, não para criar uma forma autônoma e isolada de conhecimento superior, mas para se transformar a si mesmo num senso comum novo e emancipatório (SANTOS, 2001, p.107).

Essa reinvenção do senso comum objetiva construir um paradigma cujo lema seja “um

conhecimento prudente para uma vida decente”, sobre o que Santos (2001) nota:

Com esta designação, quero significar que a natureza da revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorreu numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas

um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente) (SANTOS, 2001, p.74).

Apesar do senso comum ser geralmente mitificado ou parcial, possui também, segundo Santos (2001), uma dimensão imaginativa, utópica e libertadora, a partir do que poderá ser reconfigurado, propiciando o surgimento de novas formas de conhecimentos. Tais dimensões aparecem em várias características sendo que:

[...] o senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e, nessa correspondência, inspira confiança e confere segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar complexidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e não metódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. O senso comum privilegia a acção que não produza rupturas significativas no real. O senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade ou convence [...] (SANTOS, 2001,p.108).

Ao questionarmos o paradigma da ciência moderna colocamo-nos contrariamente à hegemonia quase indiscutível desta. Observa-se que o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna perseguiu basicamente o modelo das ciências naturais. A regulação da ciência através da ciência natural trouxe problemas quando o modelo de racionalidade da ciência moderna se estendeu às ciências sociais emergentes.

Portanto,ao contrário do que prega a ciência moderna quando defende que as ciências naturais são uma aplicação ou concretização de um modelo universal e válido, as ciências sociais e humanas delineiam uma transição para outro paradigma científico, uma vez que não compartilham dos mesmos critérios de cientificidade das ciências naturais.

Dessa forma, verifica-se uma necessidade de as ciências sociais e humanas possuírem um estatuto metodológico próprio, o que Santos (2001) explica da seguinte maneira:

A ação humana é radicalmente subjectiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objectiváveis, uma vez que o mesmo acto externo pode corresponder a sentidos de acção muito

diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjectivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objectivo, explicativo e nomotético (SANTOS, 2001, p. 67).

Considerando que a nova proposta paradigmática emergente busca estabelecer um diálogo entre ciência e filosofia, Miranda (2005) esclarece que:

A evolução da ciência e da filosofia revela a realidade de qualquer critério de certeza e mostra o sentido regressivo de qualquer intervenção normativa. Desta forma, uma teoria científica não pode ser estática, mas sim estar em devir constante, sendo compreendida através de uma dinâmica. Uma das maiores dificuldades na busca de construção de novos paradigmas está na superação do pensamento linear e na instituição de uma forma de pensar ligada ao movimento, à contradição, à totalidade, à dialética. Isto posto, pode-se afirmar que a produção do conhecimento deve se fundamentar na interface da objetividade e subjetividade, que integra o sujeito e o objeto numa perspectiva dialética. Em outras palavras, a dialética estabelece a reciprocidade dentro do sujeito e o objeto na interação social que vai ocorrendo historicamente (MIRANDA, 2005, p.243).

Ainda a respeito da abordagem metodológica nas ciências sociais, Miranda (2005) afirma que:

Nesta vertente é possível observar uma ampliação metodológica na prática interpretativa da realidade, que busca novos conceitos, novas relações e novas formas de entendimento, uma vez que um único tipo de razão deixa de ser considerada como componente fundamental na interpretação e compreensão do real. Os planos de investigação são mais abertos e flexíveis, portanto os métodos de pesquisa são vistos como processos vivos e não métodos acadêmicos formais. Isso significa não pensar um método como absoluto, pois a visão de complementaridade é necessária, visto que caracteriza o tipo de relação do pesquisador com a realidade e com o objeto de estudo. O pesquisador atribui significados e sentidos a partir de sua realidade, entendida como síntese de fatores objetivos e subjetivos, portanto os métodos podem compartilhar de suposições subjetivas. Essa conexão entre objetividade e subjetividade abre o precedente para versões distintas da realidade por valorizar a maneira própria de entendimento desta pelo indivíduo. (MIRANDA, 2005, p. 244)

Pensar uma nova abordagem metodológica a partir de um novo modelo paradigmático vai, portanto, ao encontro de uma proposta de ciência não linear que contemple e leve em consideração a diversidade, a singularidade e a complexidade. O que se propõe a partir desse novo paradigma científico é superar o discurso unitário da ciência que se contrapõe, domina e

reprime os saberes de pessoas ou grupos. Trata-se, portanto, de considerar que a construção de conhecimentos científicos é um movimento histórico e que a ciência é resultado de um processo produtivo permanente, contínuo.

Grande parte das discussões (Chizzotti, 1995; Gonzalez Rey, 2002; Chalmers, 1993; Santos, 2001; André, 1995) sobre a abordagem qualitativa na pesquisa em Educação situam- na no campo das Ciências Humanas e Sociais e consideram que entre as características que diferenciam as Ciências Sociais das Ciências Físicas e Naturais, destaca-se o fato de que na primeira o foco da investigação deve se centrar na compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos às suas ações, de acordo com um determinado contexto.

Nesse sentido, não podemos pensar um modelo de método científico aplicado às Ciências Naturais transposto para as Ciências Sociais. Podemos sim levar em conta que o método científico de investigação nas Ciências Naturais com suas exigências de objetividade, fidelidade, imparcialidade, exatidão, quantificação, autenticidade, atemporalidade, distanciamento e generalização não pode ser aplicado às Ciências Sociais como tal.

Na abordagem qualitativa, o pesquisador parece captar diretamente a experiência vivida (Gonzalez Rey, 2002). Assim, essa experiência da pesquisa criada pelo texto social escrito por ele, leva à substituição do conhecimento pelo discurso, a repensar a legitimidade do conhecimento produzido e leva também a uma reflexão sobre o significado dos termos validade, confiabilidade e generalização, entre outros, nas ciências sociais.

Ao se pensar o momento histórico atual nos deparamos com uma crise epistemológica refletida na pesquisa qualitativa. Ela rejeita o enfoque positivista totalizante cedendo lugar à perspectivas abertas, interpretativas e plurais. Observa-se também a existência de uma preocupação voltada para o “sujeito” como “objeto” de pesquisa e sujeito da própria pesquisa. Essa abordagem de pesquisa que valoriza a maneira própria de entendimento da realidade pelo indivíduo se opõe “a uma visão empiricista de ciência, busca a interpretação em lugar da mensuração, a descoberta em lugar da constatação, valoriza a indução e assume que fatos e valores estão intimamente relacionados, tornando-se inaceitável uma postura neutra do pesquisador” (ANDRÉ, 1995, p. 17).

As reflexões e o desenvolvimento de novos conceitos e procedimentos de pesquisa nas ciências sociais pressupõem uma reflexão epistemológica. A esse respeito Gonzalez Rey (2002) considera que:

[...] o surgimento do qualitativo [é] essencialmente o surgimento de uma nova epistemologia [...] a elaboração de novas epistemologias, capazes de sustentar mudanças profundas no desenvolvimento de formas alternativas de produzir conhecimento nas ciências sociais, requer a construção de

representações teóricas que permitam aos pesquisadores ter acesso a novas “zonas de sentido” sobre o assunto estudado, impossíveis de serem construídas pelas vias tradicionais” (GONZALEZ REY, 2002, p.7). (acréscimos nossos)

Nesse contexto, observa-se que quando o homem passou a ser considerado como um objeto especial de pesquisa e o pesquisador como sujeito externo que investiga, as pesquisas passaram, então, a voltar seus olhos para as experiências dos indivíduos, às subjetividades e para a interação entre pesquisadores e pesquisados. Isso levou a questionamentos substanciais no tocante à objetividade e à neutralidade como atributos essenciais de uma epistemologia positivista que dominou o cenário das ciências sociais.

Segundo Gonzalez Rey (2002), a epistemologia aplicada às ciências sociais assume o caráter histórico-cultural de seu objeto e o conhecimento passa a ser considerado como uma construção humana. Nesse sentido, essa concepção de conhecimento concede a possibilidade de relação entre realidade e conhecimento, contrapondo-se ao princípio da objetividade. De acordo com o autor, são claros os sinais da crise pela qual passa o modelo de racionalidade científica e, desse modo, essa idéia favorece o abandono às crenças que, com a ciência, geraram a epistemologia positivista. Por conseguinte,

Em primeiro lugar a ciência não é só racionalidade, é subjetividade em tudo o que o termo implica, é emoção, individualização, contradição, enfim, é expressão íntegra do fluxo da vida humana, que se realiza através de sujeitos individuais, nos quais sua experiência se concretiza na forma individualizada de sua produção. O social surge na rota única dos indivíduos constituídos em uma sociedade e uma cultura particular. A representação da ciência como atividade supra-individual, que supõe a não participação do pesquisador e o controle de sua subjetividade, ignora o caráter interativo e subjetivo do nosso objeto, o qual é condição de sua expressão comprometida na pesquisa. Sem implicação subjetiva do sujeito pesquisado, a informação produzida no curso do estudo perde significação e, portanto, objetividade, no sentido mais amplo da palavra (REY, 2002, p. 28).

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA 2007 (páginas 84-88)