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Uma contribuição para a história da agrossilvicultura no Brasil

Jean C. L. Dubois

(1)Instituto Rede Brasileira Agroflorestal (Rebraf),

Eu gostaria de caracterizar como nasceu o meu interesse pela a agrossilvicultura e, também, como surgiu a Rebraf.

Nos onze anos que trabalhei na África (1951-1961), a agrossilvicultura (termo este que ainda não existia na época) começou a despertar a minha curiosidade e os meus interesses profissionais. No Baixo-Congo, aprendi, junto com as comunidades bakongo, suas práticas ligadas à formação de capoeiras (chamadas "n'kunku" em kikongo) em paisagens dominadas pelas savanas e ao manejo dessas capoeiras (formação de capoeiras enriquecidas com espécies perenes fruteiras). Entre outras práticas, convém citar a tradição dos bakongo de quase sempre concluir seu ciclo de culturas anuais de subsistência com o cultivo de amendoim, o qual enriquece o solo em nitrogênio e, portanto, acelera o crescimento das espécies pioneiras na fase inicial de formação da capoeira. Na época das grandes queimadas de savanas, os "n'kunku" são sistematicamente protegidos contra o fogo, mediante abertura de

alargamento pelo fogo. Os bakongo são mestres em matéria de "conduzir" e dominar suas queimadas tradicionais. A condução das grandes queimadas é feita de forma comunitária semelhante aos nossos mutirões e envolve vários vilarejos; a coordenação das equipes é feita com os tambores bantus (tam-tam).

Também fiquei observando uma outra prática dos bakongo, esta tipicamente agrícola - chamada de "mafuku". Em solos de savana, quando se observa um forte declínio da produtividade dos cultivos agrícolas, a área é abandonada por 2 a 3 anos e, em seguida, a vegetação da savana constituída por gramíneas altas (Hyparrhenia spp.)- é cortada com enxada. O produto do corte, depois de secar o suficiente, é amontoado na forma de montículos ("mafukus") e esses são, então, cobertos com terra superficial. Em momento apropriado, os bakongo botam fogo nesses montículos: a queimada ("incineração") é lenta. As cinzas são incorporadas à terra, e os "nichos" (em geral até 1.300 "mafukus" por hectare) são semeados com cultivos de ciclo curto (milho, arroz, amendoim, mandioca, cebola, etc.): os rendimentos obtidos são altos. Observando o bom desempenho produtivo dessa prática, transformei este sistema agrícola bakongo num sistema agroflorestal: ensinei aos bakongos a colocar sementes de Eucalyptus em um de cada 5 "mafukus" incinerados. O resultado foi impressionante. O sucesso veio da existência, na região, de uma grande falta de lenha e de madeiras roliças para construções rurais. Numa "área demonstrativa de "mafukus agroflorestais", organizei uma festa com churrasco e "malafu" ("cerveja" feita de seiva do dendê). Muitos chefes de tribos se fizeram presentes, e, em poucos meses, nasceram dezenas de eucaliptais nas colinas da região. Meus dois guardas florestais forneciam sementes de eucaliptos a comunidades interessadas. Mais detalhes sobre estas práticas dos bakongo se encontram numa palestra (Dubois, 1979) que apresentei numa das primeiras reuniões sobre sistemas agroflorestais na América Central, realizada no Catie (Turrialba, Costa Rica) em 1979, e coordenada pelo meu amigo Gerardo Budowski, pioneiro da agrossilvicultura na América Central. Ainda na África, desta vez no Maiombe, trabalhei alguns anos na Reserva florestal de Luki (cerca 30 mil hectares de florestas nativas), onde fiquei encarregado, entre outras tarefas, de supervisar um programa silvibananeiro conduzido em

relativamente grande escala (área de 6 mil ha) para produção de bananas de exportação. Os bananais eram enriquecidos com uma espécie madeireira nativa de crescimento rápido ("limba"= Terminalia superba). Foi mais uma aprendizagem agroflorestal!

Nos meus primeiros anos na Amazônia, onde cheguei em julho de 1962,

desenvolvi pesquisa na área de silvicultura tropical e manejo de florestas nativas. Também fiquei de olho nos sistemas tradicionais de produção dos caboclos, dos sistemas bem menos tradicionais dos colonos vindo de fora da Amazônia e dos sistemas de modo geral destruídores, empregados na pecuária. Voltei, então, a pensar em agrossilvicultura como uma alternativa válida para tentar refrear a louca destruição das florestas.

Quando de 1977 a 1988- fiquei coordenando o programa IICA-Trópicos, abrangendo os seis países do Tratado de Cooperação Amazônica, tive uma seqüência de magníficas oportunidades de ver e apreciar várias tradições agroflorestais em comunidades indígenas e "campesinas" em todos os trópicos úmidos sul-americanos. Visitei também as primeiras pesquisas agroflorestais, principalmente no Catie e em pequenos centros experimentais da Conif

(Corporación Nacional de Investigación y Extensión Forestal de Colômbia). Então, o Programa IICA - Trópicos começou a promover o desenvolvimento agroflorestal nas regiões onde se manifestava maior interesse a respeito.

Em janeiro de 1988, me afastei do IICA, por motivos particulares, e em fevereiro do mesmo ano, participei, de forma ativa, do Seminário sobre "Alternativas ao desmatamento na Amazônia" (Anderson,.1990). Um dia desse Seminário foi devotado à "agrossilvicultura" com participação da "turma pioneira" dos sistemas e práticas agroflorestais: Mary Helena Allegretti, Gerardo Budowski, Charles Clement, Florencia Montagnini, A, Anderson, Peter May, Robert Peck, Wim Groeneveld, e tantos outros. O "Dia Agroflorestal" foi um sucesso com uma sala de plenária cheia e com muitas perguntas, os participantes na maioria, estavam ouvindo falar pela primeira vez de uso agroflorestal da terra.

À noite desse mesmo dia, único espaço que restava livre, em virtude da programação agendada pelo Seminário, conseguimos reunir em nossa casa um grupo para um simples jantar, no qual não podia faltar cerveja e vinho para brindar a alegria de uma reunião objetiva, com a participação de mais de quarenta

profissionais entusiasmados pela agrossilvicultura. Foi elaborada uma moção que foi aprovada no dia seguinte em sessão plenária, visando aàcriação de uma "Associação Agroflorestal do Trópico Americano" (AATA). Tratava-se de um empreendimento que, de fato, ia além do nosso alcance. Considerando o

superdimensionamento dessa Associação, não conseguimos concretizá-la. Um dos nossos convidados era Michael Small, Primeiro Secretário da Embaixada do Canadá, em Brasília. A Embaixada do Canadá tomou a decisão de apoiar ambos os projetos agroflorestais na Amazônia Brasileira. Para tal fim, foi criado um pequeno grupo de três profissionais: um economista (Peter May, da Fundação Ford) e dois engenheiros florestais (Wim Groeneveld e Jean Dubois). Foram elaborados e aprovados dois projetos: um na região de Ouro Preto d'Oeste (Rondônia) e outro em Paragominas no Pará. Por terem obtido êxito, os dois projetos continuam até hoje, embora com outras fontes de recursos financeiros e gerenciados por

organizações locais. As comunidades envolvidas no projeto de Ouro Preto d'Oeste formaram a Associação dos Produtores Alternativos (APA), dotada de eficiente organização para a produção e venda de produtos naturais (mel, pólen, "farinha múltipla", etc.) e componentes para colméias.

Em 1990, com o apoio da Fundação Ford, esse mesmo pequeno grupo de três pessoas criou o Instituto Rede Brasileira Agroflorestal (Rebraf), que continua trabalhando na Amazônia, e também abriu frentes de atuação na Mata Atlântica.

Na Amazônia e em outras regiões do Brasil, principalmente nos Estados de Minas Gerais, Sul da Bahia, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, houve maior difusão das alternativas agroflorestais de uso da terra, fruto da atuação de ONGs. Raramente ou jamais houve na história da extensão rural no País, uma adoção tão rápida de novas tecnologias e práticas agrícolas, pelo menos no meio dos pequenos produtores. É também fonte de alegria para todos nós, o forte crescimento de investimento da Embrapa e do Inpa na área de pesquisa agroflorestal.

Antes de concluir, gostaria de chamar a atenção sobre duas necessidades. Em primeiro lugar, em toda a faixa tropical do Brasil, devemos investir mais em pesquisa e promoção de sistemas silvipastoris.

Na Amazônia, como em outras regiões do Brasil, a maior extensão de áreas desmatadas é ocupada hoje com pastagens submetidas a um modelo de pecuária extensiva. De modo geral, essas pastagens são utilizadas com excesso de carga, sem manejo adequado de sua base produtiva e encontram-se em estado avançado ou em via de degradação. Foram destruídas florestas nativas valiosas - um ecossistema sustentável - para implantar uma pecuária extensiva praticamente falida. Esta caracterização aplica-se à maioria das pastagens existentes no país. A introdução de árvores pode contribuir na conversão dessas pastagens degradadas em unidades mais produtivas e muito mais sustentadas.

Para arborizar pastagens, diversas alternativas devem ser contempladas, adotando uma delas ou uma combinação de várias delas: substituição de moirões mortos por moirões vivos, por exemplo de taperebá (Spondias mombim), cajá (Spondias

dulcis), gliricidia (Gliricidia sepium), mulungu (Erythrina spp.), etc; plantio de uma,

duas ou três linhas de árvores ou palmeiras ao longo das cercas, principalmente com espécies de valor econômico; formação de quebra-vento e/ou de aceiros arborizados, principalmente com espécies de valor econômico; plantio de árvores uniformemente distribuídos nas pastagens com fins de produção madeireira e sombreamento; formação de bosquetes como abrigo para o gado; formação de "bancos de proteína" para melhorar a dieta dos animais, utilizando forrageiras arbustivas ou arborescentes (submetidas a podas e rebaixamentos periódicos). Uma arborização bem planejada das pastagens aumentará a sustentabilidade da atividade pecuária e, conseqüentemente, reduzirá a pressão exercida pelos pecuaristas sobre as florestas nativas remanescentes.

Além disso, devemos nos disciplinar quanto ao uso de uma terminologia agroflorestal uniformizada e ajustada à terminologia internacional.

Hoje reina grande confusão no uso da terminologia agroflorestal no Brasil. Um dos erros mais freqüentes é o de utilizar o termo "agrofloresta" para designar o conjunto dos sistemas agroflorestais. Na realidade "agrofloresta" é apenas uma das numerosas alternativas de uso agroflorestal da terra. Agrofloresta não é o

é "forest garden". O equivalente português de "agroforestry" é "agrossilvicultura" a qual abrange os sistemas agroflorestais e as práticas agroflorestais. Existem muitas classificações dos sistemas agroflorestais (Nair, 1990, 1993; Dubois et al., 1996). Na classificação mais empregada, distinguem-se os seguintes sistemas o silviagrícola, o silvipastoril e o agrossilvipastoril. No Brasil, muitos profissionais utilizam o termo "sistema agrossilvipastoril" como sinônimo de "agrossilvicultura": o que é errado. As definições das três categorias de SAFs são lembradas a seguir :

Sistemas silviagrícolas [agrisilviculture]: são caracterizados pela combinação de

árvores, arbustos ou palmeiras com espécies agrícolas. Por exemplo: o consórcio "café-Cordia spp" ou "pupunha-cupuaçu-castanheira" ou ainda: uma agrofloresta.

Sistemas silvipastoris [silvopastoral systems]: são caracterizados pela combinação

de árvores, arbustos ou palmeiras com plantas forrageiras herbáceas e animais.

Sistemas agrossilvipastoris [agrosilvopastoral systems]: são caracterizados pela

criação e manejo de animais em consórcios silviagrícolas, por exemplo: criação de porcos em agroflorestas [forest gardens] ou ainda: um quintal [homegarden] com fruteiras, hortaliças e galinhas.

Quanto à distribuição dos componentes de SAFs na escala do tempo, distinguem- se duas categorias principais: a) SAFS concomitantes: todos os componentes encontram-se consorciados o tempo todo (por exemplo: o consórcio "café Erythrina Cordia"); b) SAFs seqüênciais como é o caso da seqüência "lavoura branca >> capoeira >> lavoura branca".

Existem outras classificações. Uma delas distingue três categorias de base (Nair, 1990, 1993; Smith et al., 1998): os sistemas agroflorestais tradicionais

[traditional agroforestry systems] (por exemplo, os quintais agroflorestais; os sistemas agroflorestais seqüênciais envolvendo o uso de capoeira), os sistemas agroflorestais comerciais [commercial agroforestry systems; market-oriented agroforestry systems] (por exemplo, os consórcios existentes no projeto Reca; o consórcio "café-Cordia sp.", etc..) e sistemas agroflorestais intermediários que satisfazem de forma igual objetivos de subsistência e objetivos comerciais: > Agroflorestas [forest gardens]: entende-se por agrofloresta um povoamento

permanente que, visto de longe, parece ser uma floresta nativa, porém dela se diferencia pelas seguintes características: as agroflorestas são criadas, geralmente, a partir de uma atividade agrícola, tal como, por exemplo, o enriquecimento de uma capoeira desenvolvida em roça abandonada; a transformação de um bananal ou de um açaizal em agrofloresta para porcos. > As práticas agroflorestais [agroforestry practices] devem ser diferenciadas dos

sistemas agroflorestais (Dubois et al., 1996). As práticas agroflorestais são intervenções que podem ser executadas em vários SAFs ou, ainda, serem adotadas para melhorar a produtividade em sistemas agropecuários de produção. Seguem alguns exemplos: a) implantação de cercas vivas [live hedges] e/ou uso de mourões vivos nas pastagens; b) implantação de aceiros arborizados [tree-planted firebreaks], c) plantio de árvores de crescimento rápido em lindeiro [boundary tree hedges] para materializar os limites de uma

propriedade rural ou os limites entre suas unidades de produção; d) quebra- vento [windbreaks] e faixas arborizadas de proteção [shelterbelts].

Referências bibliográficas

ANDERSON, A. B. Alternatives to deforestation: steps toward sustainable use of the amazon rain forest. Columbia University Press, 1990. 281 p.

DUBOIS J. C. L. Informaciones sobre sistemas agroforestales en uso en el

Mayombe y Bajo Congo (Zaire). Turrialba, Costa Rica: CATIE Taller Sistemas

Agroforestales, 1979.

DUBOIS J. C. L.; VIANA V. M.; ANDERSON A. B. 2. ed. Manual Agroflorestal para

a Amazônia: primeiro volume. Rio de Janeiro, RJ: REBRAF, 1997. 228 p.

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NAIR, P. K. R. 1990. Classification of Agroforestry Systems. In: MACDICKEN K.G.; VERGARA N. T. (Ed.) Agroforestry Classification and Management. Jophn Wiley & Sons, 1990. 382 p.

NAIR, P. K. R. 1993. An Introduction to Agroforestry. Kluwer Academic Publishers, 1993. 499 p.

SMITH, N.; DUBOIS, J.; CURRENT, D.; LUTZ, E.; CLEMENT, C. H. Agroforestry

experiences in the Brazilian Amazon: constraints and opportunities. Brasília, DF:

The Pilot Program to Conserve the Brazilian Rain Forest: Federal Government of Brazil / World Bank, Rain Forest Unit, 1998. 67 p. [existe uma versão em português].

Sistemas agroflorestais no manejo de bacias hidrográficas.

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