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2 CAPITAL MULTICULTURAL CONTEMPORÂNEO

2.2 Uma função: a cultura como capital e o papel do Estado

O conceito de capital cultural, utilizado inicialmente por Bourdieu (1982, apud Canclini, 2001), é usado nesta pesquisa a partir do fato de ter sido adotado por Canclini (2001, p. 195) com a ressalva de que, no caso de Bourdieu, esse conceito é empregado para analisar processos culturais educativos. Portanto, é feito um deslocamento de um conceito de uma área para outra, como o próprio Canclini destaca.

Ainda que esse autor não o empregue em relação ao patrimônio. Aqui aponto sua fecundidade para dinamizar a noção de patrimônio e para situa-la na reprodução social. Um uso mais sistemático deveria discutir, como frente a qualquer importação de conceitos de uma área para outra, as condições epistemológicas e os limites do seu uso metafórico em uma área para a qual não foi trabalhado (CANCLINI, 1991, p.195, nr 24).

Deslocar esse conceito para uma interpretação como a que esta pesquisa realizou, requer o registro dessa ressalva e o cuidado de estar relacionando os rituais de práticas educativas que ocorriam nas senzalas, com a construção do patrimônio cultural de matrizes africanas tão presente na cultura brasileira e na cultura baiana.

templos religiosos negros, os terreiros de candomblé, nos rituais de iniciação, legitimação e instituição de suas práticas sagradas e de suas relações com o simbólico e com o divino. Como é o caso da Pedra de Xangô que “motivou” a criação da APA e do Parque objetos do recorte desta tese.

Uma vez por ano, sob a liderança da iyalorixá Mãe Iara, é realizada uma grande caminhada em defesa da Pedra Xangô que, nas vésperas, é cuidadosamente limpa e lavada (Figura 11), como preparação ritual para a festa. Mãe Iara conduz todos os adeptos da religião que pratica evidenciando que trata- se de um ritual de educação e cidadania relativos ao culto das forças da natureza.

Ao mesmo tempo é importante perceber que a pedra é como um produto cultural que tem uma importância, inclusive, econômica, na vida daquelas pessoas, não só espiritual. Trata-se, evidentemente, de uma referência à construção do capital simbólico coletivo e do funcionamento do ecossistema do capital.

Esse uso do conceito econômico “capital” relacionado à categoria “cultura” merece um comentário especial de Canclini (1991) que afirma que

[...] as polêmicas sobre o emprego metafórico de conceitos econômicos para examinar processos simbólicos , como o faz Pierre Bourdieu ao referir-se ao capital cultural e aos mercados linguísticos, não têm que concentrar-se na migração desses termos de uma disciplina para outra, mas, sim, nas operações epistemológicas que situem sua fecundidade explicativa e seus limites no interior dos discursos culturais: permitem ou não entender melhor algo que permanecia inexplicado? (CANCLINI, 1991, p. XXI).

É esse capital cultural que foi interpretado com a função usada como base para o estabelecimento de uma política pública urbana referente aos bens territoriais do segmento da população que habita o território usado como recorte desta pesquisa, onde esta localizado o monumento totêmico da Pedra de Xangô.

É importante equacionar corretamente as relações de algumas instituições e organizações da área em estudo com o Estado, representado no caso pelo município de Salvador, responsável pela elaboração do PDDU, que contemplou a criação do parque e da APA, uma vez que esse processo envolve aspectos da cultura urbana, ambiental e religiosa, da produção e reprodução do espaço urbano com características específicas das populações de origem negra e mestiça da cidade de Salvador. Ou seja, o Estado atribuindo uma função ao patrimônio cultural, “transformando-o” em capital cultural, ou melhor, em capital multicultural contemporâneo.

Harvey (2016 p. 146) aborda um aspecto interessante sobre as relações do Estado com o capital e (Harvey, 2014, p.65) também fala sobre a relação entre o capital excedente e as políticas públicas urbanas.

Gottdiener; Feagin (1989, p. 44) analisam de forma bastante crítica a questão relativa à relação entre o Estado e o capital na produção do urbano. Ambos autores reconhecem a importância do papel do Estado na produção do espaço (urbano) e destacam a dificuldade de certas análises em equacionar corretamente esse papel do Estado, que muitas vezes é deixado de lado, sendo priorizada a ação da sociedade.

A relação entre o Estado e a questão urbana ganha contorno mais próximo da que esta pesquisa buscou, nas análises da chamada geografia crítica. No entanto, o papel de “gerente” do espaço urbano desempenhado pelo Estado muitas vezes é “negligenciado” pela ciência de influência marxiana, já que esse gerenciamento é considerado problemático, porque o Estado reproduz nas suas ações as relações capitalistas, como analisa Harloe (1989, p.95) e que, em último caso, visam apenas o lucro.

Quando se fala em cultura é legítimo que se relacione esse conceito com o cotidiano, com a vida cotidiana das pessoas. Com destaque, portanto, deve se compreender que não existe algo que possa ser considerado como “a cultura”, um genérico. E ainda que existe, em cada caso, uma cultura que é a das elites econômicas e existe uma outra cultura, que pode ser qualificada como popular, a dos setores mais pobres da população do recorte adotado. Há ainda a variante cultura de massas e, combinando as duas últimas, a cultura popular de massas.

SANTOS ( 2006, p. 217) sentencia que

sob certos aspectos, a cultura popular assume uma certa revanche sobre a cultura de massas, constitucionalmente destinada a sufoca- la. Cria-se uma cultura popular de massas, alimentada com a crítica espontânea de um cotidiano repetitivo e, também não raro, com a pregação de mudanças, mesmo que esse discurso não venha com uma proposta sistematizada (SANTOS, 2006, p.217).

Figura 11 – Mãe Iara e outros religiosos “zelando” pela Pedra de Xangô para a Caminhada

Fonte: Carlos Alberto Caetano, 2017.

No caso da área em estudo foi possível perceber que ocorre uma síntese dialética entre a cultura popular e a cultura de massa, tendo como pano de fundo as questões urbanas e ambientais, além do papel que o Estado, representado pelo Município e pelo Estado da Bahia desempenham.

Ao estabelecer uma política pública urbana referente a um bem territorial assumido e reivindicado por parte da população de origem negra e mestiça na capital baiana, o Estado, através do município de Salvador ou do Estado da Bahia, contribui para “transformar” a compreensão do que pode ser uma política pública urbana na contemporaneidade.

Envolvendo aspectos significativos da aplicação do conceito de capital simbólico coletivo e dos excedentes de capital na formatação de novas estratégias de planejamento urbano, o Estado evidencia a capacidade do capital de se adequar a novas realidades e estabelecer novos e atuais ativos econômicos. Nesta tese, esses ativos culturais e econômicos são denominados de capital multicultural contemporâneo.

Nesse sentido, a criação da APA e do Parque tem um função bastante objetiva: garantir o controle do Estado e do capital na gestão de um patrimônio cultural reivindicado pela sociedade. Pode-se usar como exemplo para ilustrar essa interpretação, o resultado das reuniões promovidas pela Prefeitura de Salvador, com participação de representantes do Governo do Estado, com membros da sociedade local de Cajazeiras, que não resultaram em nada, como será melhor abordado em outra parte desta pesquisa. Apenas foi reforçado o poder de controle do Estado sobre a sociedade. E escolhido pelo estado um grupo de pessoas para fazer o que é chamado de empoderamento, um conceito bastante questionável.

A prefeitura de Salvador, através do seu órgão de cultura, a Fundação Gregório de Matos, promoveu o ato de tombamento da pedra como patrimônio cultural municipal, atividade (Figura 12) que contou com a presença do prefeito ACM Neto e teve protestos de moradores do entorno da pedra, reivindicando melhores condições de vida para as suas comunidades.

Figura 12 – Ato de tombamento da pedra como patrimônio municipal e protestos de moradores.

Fonte: Carlos Alberto Caetano , 2017.