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UMAS E OUTRAS – UM SAFÁRI SEMIOLÓGICO

No documento Cinema de Invenção.pdf (páginas 58-61)

Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Invenção

cia desse processo é o Distanciamento Metacrítico, ao qual dedico uma seqüência ambientada no interior de um disco voador, onde meu perso- nagem, finalmente superado, é substituído por Marshall MacGang, para- doxalmente um dos três heterônimos que usei na revista Metacinema. Em sua estrutura de colagem – e foi muito difícil dar uma estrutura à co- lagem – o filme tem diversos fios condutores, todos válidos. A locução tal- vez seja o principal. Nos 15 minutos finais, meu personagem desaparece da mesma forma que em O Passageiro o documental fica fora do ar tempora- riamente. O eu ficcional e o eu documental deixam a pelota com MacGang, João Miraluar e Ligéia de Andrade.

João Miraluar, personagem assumido esporradicamente por Júlio Calasso Júnior, compensa o que há de implosivo no meu papel e também no de Carlos Reichenbach que – julgando estar fazendo ficção – termina inter- pretando a si mesmo, caso também do poeta Orlando Parolini e do cinéfilo Edson Cálgaro. Marshall MacGang, o mutante intergalaxial, interpretado ternamente por Luis Alberto Fiori, é uma projeção andrógina do autor, re- montando levemente ao Anjo (Terence Stamp) de Pasolini em Teorema, mas rompendo com ele ao deixar o Brasil de forma retumbante num disco voador emprestado de um filme de Walt Disney (A Montanha Enfeitiçada). Antes de entrar na nave, o mutante chama-se João Miraluar; no interior dela, vira Marshall MacGang. Curiosamente, porém, tudo isso aconte- ceu por circunstâncias de filmagem: eu estava com pressa de terminar o filme e Luis Alberto Fiori nunca estava disponível. Terminei convidando Júlio Calasso Júnior não para substituí-lo, mas para fazer o papel de João Miraluar. Uma fantasia que logo se desvanece, quando o locutor informa que o autor estava de volta aos botequins, curtindo Roberto Carlos e Carlos Gardel. O show já terminou.

Há diversos filmes através dos quais é possível fazer várias interpretações de Umas e Outras: Cidadão Kane, por ser um filme de estrutura rotativa; O

Bandido da Luz Vermelha, por ser uma colagem de gêneros, que eu também

pratiquei; À Meia-Noite Encarnarei no Teu Cadáver, por ser invenção total, tendo um personagem principal, Zé do Caixão, deflagrando a irracionali- dade brasileira1; A Mulher de Todos, outro filme anti-linear, mas com uma personagem (Helena Ignez) que atravessa toda a narrativa, como eu tam- bém atravesso todo meu filme; Pandemônio (Helzapoppin’), de H. C. Potter,

1 Acreditamos que Jairo esteja se referindo ao segundo filme da trilogia com Zé do Caixão, Esta Noite Encarnarei no Teu

Cadáver, de 1967. Porém, não seria exagero especular se este ato falho de Jairo na grafia do título não seria reflexo de

sua admiração tanto por este quanto pelo anterior, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, de 1964, talvez até mesmo um “erro intencional”. (N. E.)

compensasse os bloqueios da área jornalística. A repressão estava me le- vando a freqüentes deblaterações e eu queria liberar toda energia contra ela. Comecei a filmar instintivamente, como se estivesse escrevendo em guardanapo de papel durante uma bebedeira solitária num boteco. Não procurei atores nem produção, pois tinha o essencial: a câmera e o nega- tivo. Achei que poderia aglutinar fragmentos documentais a partir de mim mesmo. Eu simplesmente ligava a câmera e me colocava na frente dela. Identifiquei narcisismo com jogos de espelho da metalinguagem. Nos dias mais negros de outubro de 1975, quando morreu Vladimir Herzog, meu filme estava sob o impacto emocional desse acontecimento e passou a se chamar Doutor Phibes em São Paulo, mas isso se diluiu ao longo de dois anos. Eu via o cinema como uma relação entre eu e a tela, eu e o vídeo, eu e os amigos. Misturei – em mim mesmo – ficção e documentário, real e imaginário e atuei como denominador comum de um projeto deflagra- dor, partindo de quatro paredes. Na geléia geral, pretendi fazer ao menos

Um Safári Semiológico no Vídeo e nas Telas. Um discurso anti-discursivo. Translinguagem – metalinguagem sem linguagem.

Ao gravar a locução, partindo da primeira pessoa do singular, o filme as- sumiu um caráter de depoimento – ou diário filmado. Não tive pudor em fazer esta ou aquela revelação. Fiz um confronto entre o documentário in- timista e a violência política, considerando que esse último dado era por demais óbvio e foi devidamente filtrado. O Play Center se transformou em sala de torturas. O doutor Faibes é um general que se transforma em macaco

num parque de diversões. Real/surreal. Procurei fugir aos conceitos pré-es-

tabelecidos, sabendo que o real está sempre na frente das teorias. O que eu perdia em dinheiro, ganhava na ampliação da área da consciência. Deu uma marca implosiva à narrativa: implodia o edifício Mendes Caldeira, im- plodia a imagem – e as pessoas, durante a Inquisição nacional, queriam voltar ao útero materno, uma forma de implosão. Assumi essa barra criti- camente em quatro latas de filme Super-8.

Repassando sempre o interminável copião e discutindo muito com Paulo Sérgio Muniz, que foi um co-roteirista por controle remoto, fui recheando o panetone cinematográfico com cristalizações cítrico/críticas. As inserções enriquecem a base, ainda que a banda sonora fique sobrecarregada. E co- loquei uma segunda locução, distanciada, um vozeirão tonitruante, remi- niscência dos computadores falantes, Hal 9000, de Kubrick, e Alpha 60, de Godard, respectivamente de 2001 – Uma Odisséia no Espaço e Alphaville. Com esse lance comecei a questionar o próprio diário filmado. A culminân-

exemplo, tem diversos níveis e tons, indo de desespero à avacalhação, da sobriedade ao gutural. Essa exploração da voz, inspirada em estruturas de esquizofrenia, rompe a linearidade e freqüentemente deixa passar infor- mações sonoras que não encontram eco na imagem. Uma curiosa forma de equilíbrio no desequilíbrio: o que falta na imagem, que revela-se limitada, está nos excessos da banda sonora.

Em suma: fiz um filme ao mesmo tempo autocrítico e metacrítico. Um exercício transcinematográfico, onde diversos filmes se entrelaçam numa colagem de questões. Não exatamente uma releitura dos anos 67/68/69, os melhores de nossa cultura recente, mas um retorno quase inconsciente a essa época. O que aliás é muito sintomático: hoje, quem quiser ir pra frente, tem que voltar um pouco pra trás...

Texto em forma de depoimento sobre seu primeiro longa-metragem O

Vampiro da Cinemateca, cujo título de trabalho era Umas e Outras.

por ser metacinema anárquico; A Câmara de Horrores do Dr. Phibes, de Robert Fuest, por ser o mais requintado filme de terror dos últimos anos; A

Lei dos Marginais, de Samuel Fuller, por seus travellings antológicos. Há uma

espécie de alquimia narrativa em Umas e Outras, que comporta citações em nível estrutural. Esses filmes se entrecruzam e trespassam o meu filme, que termina sendo transcinematográfico.

Apesar de todas essas possibilidades, a análise principal parece recair sempre sobre Zé do Caixão, personagem criado por José Mojica Marins e que considero como o mais importante do cinema nacional. Ele está presente do início ao fim do meu filme, permeando todos os estilhaços inter-semióticos e dando unidade ao mosaico. Ele é o homem-que-ri, o grande avacalhador, o brasileiro debochado do século 21... Ele não espinafra o terror político, mas gargalha do terror fílmico, do terrível Doutor Phibes e, inclusive, da minha dedicatória: “Este filme é dedicado aos terroristas... da forma... e não aos do conteúdo”. Ele se anuncia inúmeras vezes, mas só ao fim aparece de fato. Umas e Outras, por outro lado, não tem fim. O filme que termina é Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Desnecessário acrescentar que considero Mojica Marins como inventor endossado por inventores (Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso). Zé do Caixão, espinha do peixe no meu filme, é medula e osso na geléia geral do cinema brasileiro, onde ser gênio é ser idiota.

Questionando estilhaço por estilhaço, questiono inclusive a natureza bidi- mensional do cinema, que se torna apocalíptico quando se trata de abordar diversas questões ao mesmo tempo. Então encontrei uma forma de denun- ciar as limitações da famigerada simultaneidade, mas isso eu só percebi depois de dar o filme por (in)terminado. Assim, algumas questões ficam apenas esboçadas: o convite ao neo-anarquismo, o depoimento amoroso truncado e a transa do poder. Esta última, aliás, merece destaque: Cidadão

Kane entra como filme sobre o poder, mas o som evoca Adhemar de Barros

e seu populismo. As ginásticas de 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, lembram muito mais um cemitério, esvaziadas que foram pela mú- sica de Wagner, Funerais. E Adolf Hitler é contestado por uma canção de Roberto Carlos.

A colagem de aberturas é abrangente e possibilita uma cosmovisão, mas tem a desvantagem – ou vantagem? – de desorientar o espectador, além de dificultar o discurso extra-fílmico do próprio autor: é difícil falar desse filme, pois sempre está escapando alguma coisa. Tudo isso porque investi furiosamente contra o exercício da linearidade. Mesmo a locução, por

Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Invenção

Quais foram essas despesas de produção?

Essas despesas de produção compreendem condução... é, basicamente con- dução, não é? Nem sequer houve o caso de pagar um sanduíche pra alguém porque o filme era feito tão rapidamente que não se marcava nada. Eu não marquei nenhuma filmagem. Eu pegava a câmara e o filme ia saindo, quer dizer, não era a tradicional filmagem, marcada. Inverti esse esquema. Qual o tempo de duração do Umas & Outras?

O total está com 66 minutos. Isso não torna o filme cansativo, Jairo?

Eu tenho a impressão que, pelo tipo de coisa que é, uma colagem, não chega a ser cansativo. Há uma seqüência que é realmente cansativa, mas é proposital.

Explica um pouco essa seqüência.

É o momento da implosão total dentro do contexto do individualismo que é a tônica do filme. Esse individualismo vai implodindo cada vez mais e chega a um nível assim, quase intolerável. Mas isso é proposital dentro do filme. É o momento de uma crise de criatividade que existe dentro do pro- cesso de realização do filme, e eu filmei essa própria crise, quer dizer, refleti sobre ela.

Falando mais amplamente do filme, o que você pretendeu com ele?

Bem, inicialmente eu não pretendi nada com o filme. Eu comecei a fazer o negócio despretenciosamente. Agora, de repente, o material foi se avolu- mando e eu vi que o troço poderia se tornar mais sério. Quando eu tinha meia hora de filme, eu já vi que dava pra fazer um negócio interessante, aí então, eu pretendi violentar a linguagem padrão do cinema comercial. Comecei a filmar trechos de filmes no próprio cinema e na televisão, utili- zando alguma coisa do cinema de consumo; e trabalhando em cima desse tipo de coisa mas pra obter um outro tipo de resultado, usando isso aí como linguagem objeto. Eu uso citações pra trabalhar em cima delas e obter um resultado final diferente do que era o original. Inclusive eu pensei em me- lhorar o Samuel Fuller, o que pode parecer um absurdo. Há uma seqüên- cia que eu filmei de A Lei dos Marginais em que eu botei uma música do Stravinski, que é um trecho de Sagração da Primavera e ficou com um clima fantástico de cinema policial que no original não tinha por que a música que o Fuller usa é muito ruim, uma música de categoria C e tal. Ele traba- Há cerca de dois anos Jairo Ferreira começou a filmar Umas & Outras, um

longa-metragem em Super-8. Naquela época, não se sabia ainda se o filme seria um longa, o que iria abordar, nem se seria concluído. Jairo simples- mente acabara de comprar um equipamento Super-8 sonoro e estava fas- cinado pela idéia de fazer um filme em sua própria câmara.

Como ele próprio conta a seguir, tudo começou com “umas andanças por aí”, filmando o que aparecesse pela frente. A partir daí, a coisa foi crescendo e do simples documentário (ou seria melhor “olhadela descomprome- tida”?) foi-se acrescentando elementos de ficção e discussão propriamente ditos que tornam seu filme “um estilhaço do cinema udigrudi”, segundo ele próprio o define, num verdadeiro desabafo sobre toda a impossibilidade de se fazer, no Brasil, um filme comercial realmente sério.

Tudo isso e mais a situação do Super-8 e do cinema udigrudi são discutidos pelo autor de Umas & Outras em seu depoimento transcrito a seguir. Você disse que Umas & Outras começou a ser rodado em setembro de 75. Como é que você teve a idéia de fazer o filme?

Bem, eu não tive idéia de fazer um filme, não. Eu parti do fato de que exis- tia uma câmara e as idéias vieram depois. Tanto é que não era para ser um filme e terminou sendo, não é? Eu comecei a filmar de uma forma desco- nexa, e tal, juntando material pra ver o que iria dar.

E quanto custou a produção desse filme?

Custou cerca de 10 mil cruzeiros no total.

Você disse em uma matéria da Folha que em 75 o filme sonoro custava...

É, em 75 o filme sonoro custava muito menos. O material sensível au- mentou mais de 200% nos últimos dois anos e meio. Em setembro de 75, quando eu comecei a filmar, um rolo de filme que tem três minutos e meio em 18 quadros por segundo, que é a velocidade que eu usei, três minutos e meio custavam 90 cruzeiros; atualmente está custando 240 cruzeiros. Quer dizer, levando em conta isso, o custo do filme seria, na base atual, de 10 mil cruzeiros. Isso excetuando despesas de produção que eu não estou levando em conta.

ATENÇÃO, CÂMARA, AÇÃO –

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