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Saí para o pátio na manhã seguinte e encontrei-o decorado com vasos de rosas brancas frescas fragrantes e gardênias. Não havia ninguém ali. Eu sabia que as gardênias deviam ter sido mandadas de um lugar com clima úmido e não podia imaginar quem as havia trazido. Parei um instante sob o suave sol da manhã e a brisa matutina do deserto. O pátio estava absolutamente imaculado, cintilante e solitário. Decidi me entreter perto da fragrância das gardênias, me servi de um copo de limonada na cozinha e voltei ao pátio para ler.

Eu devo ter cochilado, porque minha próxima memória ao abrir os olhos foi perceber que já eram 10:00 da manhã. Don Juan estava em pé perto de mim com suas roupas cáqui e chapéu, olhando para mim. Por um momento, como se meus olhos tivessem sido ajustados à luz da manhã, eu fui incapaz de distinguir entre seu sorriso e o sol nascendo imediatamente atrás dele.

- Vamos para a fronteira do rio Gila hoje - ele sugeriu.

Achei a idéia maravilhosa. Sorri e fui pegar a chave do carro sem proferir palavra. Nós fomos até o jipe em silêncio e em paz. Quando chegamos à fronteira, um agente americano não prestou atenção ao velho índio no banco do passageiro. Ele meramente olhou em meus olhos ainda sonolentos, e perguntou:

- Qual o propósito de sua visita ao México ma´am? - Oh, eu só estava fazendo compras! - respondi casualmente.

- Vá em frente, e tenha um bom dia. - o agente concordou e me guiou através do checkpoint enquanto Don Juan suspirava reclinado com satisfação no banco da frente, cobrindo um sorriso com seu chapéu.

Seguimos por algum tempo, a leste além de Yuma, até que alcançamos o deserto aberto do rio Gila, que seguia à sudoeste e eventualmente se misturava ao Colorado. Descendo e caminhando ao longo da margem, senti imediatamente que o espírito do Gila era muito diferente do Colorado. Enquanto o rio Colorado tinha um espírito forte, mesmo que tivesse sido suavizado pelas barragens e tivesse diminuído devido à irrigação, o Gila parecia ser mais brincalhão. Até aquele ponto ao longo do rio a água fluía rapidamente, livre de obstáculos feitos pelo homem. Rodeado pelas montanhas de lava calvas a leste e oeste, a área era um lugar perfeito para conversar.

Eu coloquei duas esteiras de palha próximas ao rio e nos sentamos confortavelmente. Eu ainda tinha trazido uma garrafa de água e algumas frutas secas locais. Coloquei meu chapéu e estávamos sob uma mesquite que ele havia escolhido. A vista daquele

ponto era espetacular. Sentados a sudeste da margem, com um grande campo de saguaros ao norte... a área era povoada por coelhos, roadrunners, águias...

- Todos aproveitam o rio - Don Juan riu enquanto olhava a vida selvagem se ajustando à nossa presença. - Eu acho que hoje é um dia perfeito para conversarmos sobre o amor. - disse, saboreando uma fruta seca.

Eu olhei seus olhos brilhantes sob a sombra do chapéu. - Eu estava esperando que não o deixaríamos de lado, - eu disse sorrindo, - Sem mais estórias de Melquior Ângelo, eu espero.

- Ele deu uma gargalhada e um tapa na sua coxa. - Seu ponto de vista é bem aceito. Muitos professores e praticantes ficam tão cativados na aquisição de novos poderes que aparentemente esquecem de tudo sobre o amor. Ainda quando e se eles estão afortunados o suficiente por uma coisa real presente em si mesmos à frente de seus rostos, bem, eu asseguro que eles estão cativados como despreparados como nenhum outro. Eu pensei que pudesse trazê-la aqui para contar a estória do cervo mágico a fim de ilustrar meu ponto de vista.

Don Juan era o máximo em contar estórias nativas e seu timing era impecável.

- Parece que foi um aprendiz jovem, - ele começou - que vivia neste deserto, abundante de vida selvagem. - ele abriu seus braços, num gesto que varria todo o horizonte. - Ele desejava o poder da abundância, a fim de se tornar um homem rico e renomado, capaz de atrair qualquer garota que escolhesse. Ele veio até esta área aqui na busca da visão para o poder e passou noite após noite num ponto isolado, sem comida e

água, suplicando às forças e espíritos que moram aqui, gritando seu desejo e intento.

- A primeira criatura que se aproximou dele foi uma leoa da montanha. Na primeira noite de sua busca ela lhe ofereceu força e astúcia, mas não era o que ele buscava. Ele agradeceu, mas não pôde aceitar a oferta. Na noite seguinte, quando ele se sentou dentro de um círculo gritando às forças, um coiote apareceu, oferecendo a ele audácia e carisma. O jovem rapaz pensou, um tanto dominado pelo charme enganoso do coiote, mas enfim o agradeceu e o coiote se foi. Na terceira noite uma coruja noturna apareceu e falou com ele, dizendo “Eu posso oferecer o que você busca, mas eu lhe asseguro que não sabe o que é isto que você quer. Você perdeu o discernimento”. O jovem aprendiz estava tenazmente fixo em seu desejo, contudo, e não aceitou.

Na quarta noite o jovem aprendiz estava fora de si, faminto e sedento, mas ainda tenaz em sua resolução. Enquanto estava deitado meio delirante dentro do círculo, a visão apareceu. Dali, na frente de seus olhos, um cervo mágico brilhava diante dele. Ele pôde perceber que não era uma criatura ordinária. Ela se movia com uma graça que ele nunca havia visto, e sua luminosidade... - Don Juan pausou um momento pelo efeito dramático.

- Ainda ali estava algo evasivo sobre a criatura. - ele continuou. - como se seus poderes não pudessem ser possuídos. Ainda ele estava ali, completamente tangível. Aquilo fez com que o jovem aprendiz quisesse a bonita aparição ainda mais.

- Ela falou com ele numa líquida voz feminina. “Eu tenho ouvido seus gritos e fiquei com pena de você”, ela disse a ele. “Eu posso te dar um teste sobre o poder que você busca, o qual é o mais valioso na

criação, mas, desde que você o tenha experimentado, nada mais se comparará a ele, e você estará fadado a buscá-lo, sempre e em qualquer lugar”.

- O jovem rapaz salivava com o pensamento do mais valioso poder. Certamente, em posse dele, ele seria rico e o mais poderoso entre os homens. “Eu aceito”, ele disse sem hesitação. A cervo mágico concordou e de repente o jovem viu que ela se transformava em algo tão belo, tão inconcebível, que ainda seus olhos tinham alcançado com a incapacidade de expressá-lo. Ele se sentiu tocado profundamente no âmago de seu ser e começou a chorar, cobrindo seu rosto de vergonha.

- “Por que você cobre seus olhos para o que deseja?”, ela perguntou a ele. Mesmo sua voz havia se transformado. “Não é isso o que você quer?”, então ele descobriu seu rosto e olhou sobre a criatura, que parecia nunca ter visto antes. Ele sentiu tal amor, um amor que não podia ser explicado, um amor quase além das fronteiras do desejo de poder que buscava. Certamente, o presente daquele ser tinha sido miraculoso. E então, ela desapareceu.

- O quê? - eu disse, levantando-me. - Ela o deixou. - Don Juan repetiu.

Ali se fez silêncio. Mesmo o rio havia silenciado por um momento. Eu pensava sobre sua estória, ponderando em silêncio e na brisa tudo o que ele havia dito. - Então seu poder foi transformação - eu disse. - E o amor que ele sentiu. - Don Juan adicionou. - Ele a viu novamente? - perguntei.

- Esperamos que sim - ele respondeu. - Não podemos saber. Tudo o que podemos saber é que ele buscou por ela sempre e em todos os lugares até o fim da vida, mesmo depois da morte.

Havia uma paixão na voz de Don Juan que fez romper lágrimas em meus olhos e minha garganta apertar. Eu tremia e estava à beira de uma explosão de soluços. - Você já sentiu algo assim? - perguntei a ele. - Já - ele respondeu, olhando-me nos olhos.

Eu me apoiei no chão enquanto sentia minha respiração faltar.

- Você não precisa se preocupar - ele disse.

Mas eu estava preocupada, e não sabia por quê. Eu me sentia tão agitada que pensava que podia explodir em moléculas e partículas a qualquer momento. Don Juan tirou seu chapéu, alisou seu cabelo e colocou minha cabeça frente à sua, colocando seu dedo sob meu queixo. Ele me olhou por um momento, tão calmamente em meus olhos, e então gentilmente inclinou-se à frente, tocando o ponto entre suas sobrancelhas com o meu.

Naquele momento senti o mais incrível, indescritível sentimento de paz e amor, além de qualquer que já tivesse sentido. Tudo desapareceu e, sob minhas pálpebras fechadas, nós e tudo à nossa volta se tornaram um, e repleto de luz branca dourada.