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“Hoje amanhecemos com uma vergonha a menos e uma liberdade a mais, as dores que ainda temos são as liberdades que nos faltam”. Manifesto após a conquista da reforma universitária dos estudantes de Córdoba,

99 A Universidade Al Quaraouiyine localizada em Fez, no Marrocos, fundada em 859, é considerada como a universidade mais antiga do mundo, embora de acordo com Ana Waleska P. C. Mendonça (2000) a instituição universitária foi uma criação específica da civilização ocidental, que desde sua origem, desempenhou papel unificador da cultura medieval e que, posteriormente, no decorrer do século XIX, a partir da redefinição de suas atribuições e de seu escopo, passou a exercer um papel significativo no processo de consolidação dos Estados nacionais.

Para Luís Eduardo Waldemarin Wanderley (2003) a história das universidades hispano-americanas incide sobre a trajetória das universidades latino-americanas, de modo a perceber, ao longo do tempo, suas interferências em toda a dinâmica da luta de classes nestes países. Para Ricardo Rossato (2005) enquanto Portugal restringia o acesso ao ensino superior ao território da metrópole, a Espanha teve a política de implantar instituições de ensino superior dentro das colônias, a fim de produzir um contingente capaz de suprir a demanda de cargos burocráticos administrativos. Daí a primazia espanhola quanto ao ensino superior nas Américas. A fundação da primeira universidade das Américas se deu em 1538, em São Domingos, seguida da fundação da universidade de San Marcos no Peru, em 1551. A fundação da primeira universidade norte-americana, Harvard, só aconteceu em 1636, quando a América Latina já possuía mais de 13 instituições de ensino superior.

Próprio do domínio colonial29, as universidades foram importadas da metrópole assim como a cruz e a realeza, e correspondem à realidade europeia da época. Sua fundação na América Latina ocorreu por um ato puramente administrativo, reproduzindo mecanicamente o contexto europeu de acordo com os interesses das classes dominantes locais. Apesar de passar por um período de efervescência científica e artística no período do renascimento e do iluminismo, o modelo de universidade trazido da Europa funcionou como uma alternativa de fortalecimento dos poderes eclesiásticos (ROSSATO, 2005).

As universidades hispano-americanas se inspiraram em duas matrizes: a universidade de Salamanca e a universidade de Alcala, ambas na Espanha e referências mundiais, à época,

29 O Brasil Colônia compreende o período entre a chegada dos portugueses, em 1500, e a independência do país, em 1822. De 1500 a 1530, a exploração do território, então chamado Terra de Santa Cruz, era limitada a expedições para coleta e transporte de pau-brasil, madeira nobre muito apreciada no continente europeu. Fonte: Disponível em: <www.brasil.gov.br>. Acesso em 08 nov. 2017. Destacamos ainda que América Espanhola se refere às partes das Américas colonizadas por espanhóis.

100 em ensino superior. Das seis universidades da época, três seguiram o modelo de Alcala, sendo estas as universidades de São Tomaz de Aquino em São Domingos, de Bogotá, na Colômbia e a de Quito, no Equador, no formato universidade convento, dirigidas diretamente pela igreja e desvinculadas da responsabilidade do Estado. Estas foram as antecessoras das universidades católicas privadas atuais. Vale destacar ainda que a universidade estatal de Salamanca inspirou a criação de três outras universidades de âmbito nacional, como a do México, a de Lima e a de Santiago de La Paz (WANDERLEY, 2003).

De acordo com o autor supracitado, o modelo Salamanca influenciou as instituições latino-americanas, tanto que a universidade do México em seus primeiros anos possuía um ensino de tendência humanista. Porém, com o movimento da contrarreforma da igreja católica na Europa, o modelo da universidade Alcala passa a ser hegemônico, tanto na Europa como na América do Sul, passando a formar novos quadros dirigentes para a chamada “conquista espiritual”. Durante todo este período, as universidades tiveram poucas/os professoras/es e um número grande de alunas/os. A estrutura das universidades latino- americanas impunha um obstáculo ao desenvolvimento científico e mantinha o ensino superior atrelado aos interesses da igreja e da burocracia local.

Durante o período colonial, a América Espanhola formou aproximadamente 150.000 (cento e cinquenta mil) graduadas/os, estudantes que tiveram papel no suporte teórico e prático dos processos de independência dos países da América Espanhola. Enquanto isso, no Brasil, 2.500 (dois mil e quinhentos) estudantes foram graduadas/os durante todo período colonial, todas/os formadas/os em Coimbra (Portugal). O Brasil chegou à “independência” em 1822 sem formar em seu território nenhuma/um estudante de nível superior sequer.

Ainda de acordo com Wanderley (2003), o capitalismo inaugurou uma nova universidade, marcada pela indissociação entre ensino e pesquisa, particularmente na Alemanha, o que possibilitou às universidades, naquele contexto, promover avanços do ponto de vista científico. A derrubada de paradigmas religiosos sustentados pelos poderes eclesiásticos fez a ciência avançar.

Nos séculos XVIII e XIX a Europa viveu um período histórico de fortalecimento da pesquisa científica, especialmente no campo das ciências da natureza e da ciência médica. Enquanto isso, as universidades latino-americanas eram dominadas pelas potências mercantis europeias, reproduzindo sua ciência e sua forma de pensar e sistematizar o conhecimento,

101 sem ainda exercer seu protagonismo. A luta por uma república livre, soberana, empurrava os estudantes a uma luta de vida e morte contra os pensamentos colonizadores. A estrutura universitária controlada pelo clero e a falta de democracia e de autonomia tolhiam o desenvolvimento científico. Isto fez com que as universidades coloniais entrassem em uma profunda crise no final do século XIX (FERNANDES, 1974).

Wanderley (2003) coloca que, em fevereiro de 1908 aconteceu o primeiro congresso americano de estudantes em Montevidéu/Uruguai. O Congresso contou com a participação de quase todas organizações estudantis das Américas. Nele foram discutidos: orientação pedagógica, regime de exoneração – que acabaria com o controle do governo sobre a admissão/demissão do quadro docente – estudos livres, e regulamentação obrigatória – a fim de instituir o ensino superior como responsabilidade do Estado – e assim, o congresso deu início a uma nova fase de integração entre as discussões e lutas universitárias latino- americanas. Levantou como bandeira principal a representação estudantil nos conselhos universitários, questão ratificada nos congressos seguintes de Buenos Aires (1910) e Lima (1912). A participação indireta em conselhos universitários passou a ser rejeitada. Wanderley (2003) indica que foi no ano de 1910 que um primeiro estudante teve direito à voz no conselho diretor da universidade do México.

Em 1917, os estudantes de Córdoba protestaram contra fechamento do hospital universitário e também pela manutenção das aulas práticas, mas não foram atendidos. Montaram então, um comitê pró-reforma universitária e lançaram o manifesto à juventude Argentina, onde dizem:

A Universidade Nacional de Córdoba ameaça ruir pelo trabalho anticientífico de suas academias, a inaptidão de seus dirigentes, pelo seu horror ao progresso e a cultura e por carecer de autoridade moral. A juventude universitária não pode ser cúmplice da catástrofe, queremos que seus corações e seu cérebro marchem a par com o ritmo ascendente e fecundo dos novos ideais (WANDERLEY, 2003, p.38). O movimento estudantil declarou greve geral na universidade de Córdoba em março de 1918. A universidade foi fechada pelas autoridades acadêmicas e o governo intercedeu. O interventor instaurou negociações, propondo uma nova eleição para a diretoria, mas os estudantes negaram. No dia 15 de junho, os estudantes interromperam o ato eleitoral organizado pelo interventor, ocuparam a sala onde se reunia a assembleia de professores com o novo reitor, e desconheceram a eleição. Em resposta a esse movimento, o governo da Argentina elaborou uma nova lei do ensino superior (WANDERLEY, 2003).

102 Rossato (2005) afirma que em Buenos Aires foi fundada a FUA (Federação Universitária Argentina), movimento que se estendeu por todo o país, e que esta convoca o primeiro congresso de estudantes argentinos para avaliar a nova lei do ensino superior. Fechado por tempo indeterminado, o edifício da universidade de Córdoba foi tomado para reiniciar as aulas sob a direção estudantil, oportunidade em que oitenta e três estudantes foram detidos e processados pela rebelião. Desse modo, a greve estudantil se generalizou e alguns sindicatos aderiram a esse movimento. Assim, o governo foi obrigado a reformular os estatutos e convocar novas eleições, elegendo o filósofo Alejandro Korm como diretor da faculdade de letras e filosofia, a partir também do voto estudantil.

Ainda de acordo com Rossato (2005) da Argentina o movimento se expandiu rapidamente por toda a América Latina. Em 1919, os estudantes de San Marcos, Lima/Peru, aderiram ao ideário de reforma de Córdoba. No ano seguinte, o primeiro congresso nacional dos estudantes, reunido em Cuzco, avançou em sua concepção, decidindo pela criação das universidades populares Gonzáles Prada, que foi um dos melhores aportes da experiência peruana. Estas universidades populares reuniam estudantes, operários e intelectuais, ampliando muito o raio de influência da reforma. Já no México, foi aprovada uma lei orgânica universitária, que determinava a participação de toda a comunidade na administração das escolas superiores. Entre os anos de 1929 e 1933 os estudantes desencadearam a luta pela autonomia, conquistando-a e modificando o nome da instituição para Universidade Autônoma do México.

A luta pela reforma universitária, a partir de 1920, se desenvolveu também no Chile, Uruguai, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai, e se estendem à América Central e Caribe, eclodindo em importantes lutas. Em 1928 no Brasil, o movimento estudantil, apesar de sua recém fundada universidade, foi diretamente influenciado pelas proposições desses movimentos. O movimento pela reforma universitária na América Espanhola conseguiu promover o protagonismo quanto à produção de conhecimento, considerando-se o contexto latino-americano, conforme aponta Nelson Piletti (2003).

Rossato (2005) coloca que não foram poucas as conquistas obtidas pelos movimentos. A educação passou a ser reconhecida como um bem social e de interesse público, tornando- se responsabilidade do Estado a sua manutenção financeira. As instituições passaram a contar com plena autonomia para definir os objetivos e o conteúdo a ser ministrado, bem como a

103 forma de organização e elaboração dos currículos, o que permitiu uma relativa independência em relação aos interesses das classes dominantes. Dessa forma, a pesquisa e o ensino se fundiram e os representantes eleitos dos estudantes e dos professores passaram a dirigir diretamente as universidades, garantindo a plena autonomia destas.