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Uso de recursos hídricos e disposição de efluentes

No documento Livro bioetanol da cana de açucar (páginas 184-187)

Do ponto de vista dos recursos hídricos, as condições particularmente favoráveis nos países das regiões tropicais úmidas, como é o caso do Brasil, com regime pluvial farto e bem distri- buído, permitem que a maioria das culturas se desenvolva sem irrigação. No caso brasileiro, estima-se que as áreas agrícolas irrigadas sejam de 3,3 milhões de hectares, cerca de 4% da

superfície cultivada. O deflúvio médio anual no território brasileiro é de 5,74 mil km3, frente

a um consumo estimado de 55 km3, ou seja, inferior a 1% da oferta e permitindo uma dispo-

nibilidade anual de 34 mil m3 de água por habitante [Souza (2005a)]. Não obstante, existem

regiões brasileiras em que as disponibilidades anuais são inferiores a 1,5 mil m3 de água por

habitante, caracterizando uma situação crítica de abastecimento de água. Está em curso a implementação de sistemas de outorga e cobrança pelo uso d´água pelos Comitês de Bacia, nos termos da Lei 9.433/1997, a Lei das Águas, que deverá estimular o seu uso mais respon- sável e a redução dos lançamentos dos poluentes nos corpos hídricos, por conta da aplicação do princípio “poluidor/pagador”.

Dependendo do clima, a cultura da cana requer de 1.500 mm a 2.500 mm de lâmina d´água adequadamente distribuídos (um período úmido e quente para crescimento e um período seco para maturação e acúmulo de açúcar) durante o ciclo vegetativo. No Brasil, a irrigação, na cultura da cana, praticamente não é utilizada na Região Centro-Sul, sendo adotada ape- nas nos períodos mais críticos na região Centro-Oeste e, de modo um pouco mais freqüente, na região Nordeste, sob o conceito de “irrigação de salvação”, após o plantio da cana, para garantir a brotação em condições de déficit hídrico e como “irrigação suplementar”, feita com diferentes lâminas de água nas épocas mais críticas do desenvolvimento do vegetal [Souza (2005a)]. Acredita-se que, à medida que áreas com menor disponibilidade hídrica passem a ser ocupadas com canaviais, a irrigação poderá se mostrar interessante para manter a pro- dutividade agrícola, devendo, nesse caso, ser efetuada no âmbito da legislação vigente. Atu- almente, segundo os critérios da Embrapa, as lavouras de cana não apresentam impactos na qualidade da água [Rosseto (2004)].

No âmbito do processo industrial, além do volume captado para o processamento da cana, um volume importante de água entra na usina com a própria cana, já que 70% do peso dos colmos é constituído de água. Assim, embora seja estimado um consumo de processo da or-

dem de 21 m3 por tonelada de cana processada, a captação e o lançamento de água são bem

inferiores. Com relação aos usos, 87% do consumo da água ocorrem em quatro processos: lavagem de cana, condensadores/multijatos na evaporação e vácuos, resfriamento de dornas

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185 e condensadores de álcool. Com a racionalização do consumo da água (reutilizações e fecha- mentos de circuitos e algumas mudanças de processo, como a limpeza a seco e a redução da lavagem da cana, por conta do corte mecanizado), a captação tem sido reduzida de modo significativo. Levantamentos realizados em 1997 e 2005 apontavam uma redução da captação

média de 5 m3 para 1,83 m3 por tonelada de cana processada, com expectativas de atingir,

em médio prazo, 1 m3 por tonelada de cana processada [Elia Neto (2005)].

Os principais efluentes líquidos observados na produção de bioetanol e seus sistemas de tra- tamento são apresentados na Tabela 29. Um levantamento feito em 34 usinas indicou que o tratamento utilizado reduz a carga orgânica em 98,40%, com um remanescente de 0,199 kg DBO/t cana [Elia Neto (2005)]. A fertirrigação, mediante a qual se aplica a vinhaça nos cana- viais, é a principal forma de disposição final da carga orgânica, com vantagens ambientais e econômicas. Por sua importância, cabe analisar um pouco mais a questão da vinhaça.

Tabela 29 – Efluentes líquidos da agroindústria do bioetanol

Efluente Características Tratamento

Água de lavagem de cana Médio potencial poluidor e alta concentração de sólidos

Decantação e lagoas de estabilização para o caso de lançamento em corpos d’água. Na reutilização, o tratamento consiste em decantação e correção do pH Águas dos multijatos

e condensadores barométricos

Baixo potencial poluidor e alta temperatura (~ 50° C).

Tanques aspersores ou torres de resfriamento, com recirculação ou lançamento

Águas de resfriamento de dornas e de condensadores de álcool

Alta temperatura (~ 50° C) Torres de resfriamento ou tanques aspersores para retorno ou lançamento Vinhaça e águas residuárias Grande volume e carga

orgânica elevada

Aplicação na lavoura de cana conjuntamente com as águas residuárias

Fonte: Elia Neto (2005).

A vinhaça, produzida à razão de 10,85 litros por litro de bioetanol, constitui o mais importan- te efluente líquido da agroindústria da cana. Em sua composição, apresenta teores elevados

de potássio (cerca de 2 kg por m3) e de matéria orgânica, mas é relativamente pobre nos

demais nutrientes. No início do Proálcool, a vinhaça era lançada diretamente nos rios, com graves problemas ambientais, atenuados com o uso das bacias de infiltração e resolvidos a partir de 1978 com os sistemas de fertirrigação.

A área dos canaviais atingida pela fertirrigação depende da topografia e da distribuição de terras da usina – há usinas que aplicam vinhaça em 70% da sua área de cultivo e outras têm valores bem menores. Atualmente, procura-se estender essa área coberta pela vinhaça para

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aumentar a produtividade agrícola e reduzir o uso de fertilizantes químicos, o que tem leva- do a doses cada vez menores, diminuindo os riscos de salinização e contaminação do lençol freático [Souza (2005b)]. Entre as usinas paulistas, predominam os sistemas de bombeamento e aspersão para a aplicação de vinhaça, embora também se empreguem caminhões-tanques convencionais para sua distribuição.

Estudos de longa duração sobre os efeitos da aplicação da vinhaça nos canaviais, conside- rando a lixiviação dos nutrientes e as possibilidades de contaminação de águas subterrâneas, confirmam seus benefícios para as propriedades físicas, químicas e biológicas do solo, como elevação do pH, aumento da capacidade de troca catiônica e da disponibilidade de certos nutrientes, melhoria da estruturação do solo, aumento na retenção de água e no desen- volvimento da microflora e microfauna do solo. Com efeito, utilizada em taxas adequadas,

inferiores a 300 m3 por hectare, respeitando as características dos solos em que é aplicada e

a localização das nascentes d’água, a vinhaça, além de fornecer água e nutrientes, age como recuperadora da fertilidade do solo, mesmo em profundidade [Souza (2005b)]. Atualmente, a vinhaça é considerada um fertilizante orgânico, sendo liberada para a produção de açúcar “orgânico”, em que não podem ser utilizados insumos químicos, tais como herbicidas, inse- ticidas e adubos minerais.

Algumas regiões do Estado de São Paulo, tradicionais produtoras de cana-de-açúcar, en- contram-se em áreas ambientalmente vulneráveis, como pontos de recarga de importantes aqüíferos paulistas, por isso, nesses casos, o uso intensivo e freqüente de vinhaça poderia ocasionar a poluição de águas subterrâneas no longo prazo. Considerando tais condições, a legislação ambiental referente ao uso da vinhaça tem evoluído. Em 2005, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo divulgou uma norma técnica sobre os critérios e pro- cedimentos para aplicação, movimentação e disposição da vinhaça em solo agrícola [SMA (2005)]. Essa norma estipula, principalmente, medidas de proteção das águas superficiais e subterrâneas, exigindo impermeabilização de tanques de armazenamento e canais de dis-

tribuição do resíduo, locais passíveis de aplicação e a dose máxima de 185 kg de K2O por

hectare, calculada em função do teor de potássio presente na vinhaça, limitando em 5% a capacidade de troca de cátions do solo ocupada por íons de potássio [Bertoncini (2008)]. Tal legislação é compulsória no Estado de São Paulo e, nos moldes de outras normas de cunho ambiental, tende a ser adotada no resto do país.

Independentemente dos resultados alcançados com a fertirrigação, subsiste o interesse em aproveitar o conteúdo energético remanescente na vinhaça, mediante sua biodigestão e a produção de biogás. Outra linha de investigação é a concentração da vinhaça, por exemplo, através da recirculação na fermentação, combinada com a pré-concentração do caldo ou uti- lizando membranas, visando reduzir seu volume e facilitar seu transporte a distâncias maiores [CGEE (2005)]. As duas alternativas ainda não alcançaram indicadores de viabilidade econô- mica motivadores, como já observado no Capítulo 4, mas, com a evolução dos processos, podem vir a ser adotadas em médio prazo, especialmente nos contextos em que a topografia e as distâncias tornem a fertirrigação mais difícil.

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187 Como uma indicação importante da evolução da agroindústria canavieira no tratamento e na redução de lançamento de seus efluentes líquidos nos corpos hídricos, um estudo da Ce- tesb, nas 16 bacias hidrográficas do Estado de São Paulo onde existe produção de bioetanol, estimou uma descarga potencial de 9.340 mil toneladas diárias de demanda bioquímica de oxigênio (DBO) associada às usinas de açúcar e bioetanol e um lançamento efetivo de 100 mil toneladas, o que significa um abatimento de 99% do potencial poluidor, avaliado pela carga orgânica [Moreira (2007)]. Naturalmente, esses resultados expressivos foram estimula- dos pela ação fiscalizadora, mas indicam que estão disponíveis e em uso tecnologias capazes de mitigar de modo significativo o impacto dos efluentes líquidos sobre os cursos de água. Apesar dos resultados alcançados, em função da magnitude da área ocupada e da produ- ção de bioetanol, justificam-se permanentes esforços para manter ou reduzir os impactos ambientais desses efluentes. Nessa direção, são interessantes as medidas que vêm sendo adotadas para a proteção dos mananciais, em particular com o progressivo abandono do cul- tivo da cana nas denominadas Áreas de Preservação Permanente (APP), cerca de 8% da área cultivada, o que permitirá sua recuperação de modo espontâneo ou a recomposição com reflorestamento, principalmente nas matas ciliares, com efeitos positivos relevantes sobre a biodiversidade [Ricci Jr. (2005a)].

No documento Livro bioetanol da cana de açucar (páginas 184-187)

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