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5 FAMÍLIA OU FAMÍLIAS: DE QUEM FALAMOS?

6.1 Usos e funções da leitura na família

Os usos e funções da leitura não ocorrem do mesmo modo e com a mesma frequência e mesmos propósitos em todas as famílias, conforme mostra o Quadro15.

Quadro 15 - O que e para que leem as famílias

O QUE LEEM FUNÇÃO Nº. DE

FAMÍLIAS %

Bíblia, revista evangélica Orientação espiritual 6 43

Livro de autoajuda Orientação pessoal 2 14

Jornal, revista de novela Informação 3 21

Romance Entretenimento 2 14

Contos infantis Entretenimento 6 43

Revista SeleçõesReader`s Digest Entretenimento 1 7

Histórias em quadrinhos Entretenimento 5 36

Livro didático, tarefas escolares Orientação e acompanhamento

escolar 14 100

Escritos do cotidiano: contas de energia, avisos,

panfletos, receita culinária Pragmática 14 100

Livros técnicos e apostilas Apropriação de conhecimentos

científicos 2 14

Nas quatorze famílias entrevistadas e que tiveram seus domicílios visitados, as leituras que servem para orientar as tarefas escolares das crianças e as leituras com funções pragmáticas ocorrem com certa regularidade. As primeiras referem-se às tarefas exigidas diariamente pela escola, e as segundas efetivam-se nas situações do cotidiano, como leitura de recados da escola, de uma receita culinária, das contas de energia etc.; em 43% (seis famílias), identificou-se a leitura com função de orientação espiritual; em menor número, 14% (duas famílias), identificamos a leitura com função de orientação pessoal; com função de informação, 21% (três famílias); e com função de apropriação de conhecimentos científicos, 14% (duas famílias).

A leitura que atende aos propósitos de entretenimento varia entre as famílias em relação aos tipos de textos utilizados, destacando-se a preferência pelos contos infantis, identificada em 43% (seis famílias) e as histórias em quadrinhos, encontrada em 36% (cinco famílias). Segundo depoimento das famílias, a leitura realizada para essa função é feita principalmente pelas crianças, porém apreciada também por adultos.

Já as leituras preferidas somente por adultos, como os romances, foram identificadas em 14% (duas famílias) e a leitura da revista Seleções Reader`s Digest, em 7% (uma família). As leituras com função de entretenimento ajudam a suportar as incertezas que as afligem, como diz a mãe de Barb: Eu gosto de ler romance... para sonhar um pouco.

A leitura bíblica (que acontece com maior frequência), a de jornal e os livros de autoajuda que têm por objetivo a satisfação pessoal, raramente, compartilhadas com as crianças, também, são citadas por duas famílias.

Apesar dessas práticas de leitura representarem experiências importantes para a construção da significação a respeito do ato de ler e, outrossim, de mobilizarem a criança para os sentidos e as funções da escrita significativamente produzidas pelos sujeitos, a forma como são praticadas pouco contribuem para a apropriação e sistematização da linguagem escrita. Pois, tanto a apropriação do sistema de escrita alfabética como seu desenvolvimento, exigem mediações específicas.

As leituras de entretenimento, como histórias em quadrinhos e os contos infantis, por se tratarem de gêneros que agradam a quase todas as crianças, além de contribuir para o desenvolvimento do prazer de ler, favorecem, igualmente, a apropriação de conhecimentos a respeito da estrutura de textos literários: quadrinho e conto.

As práticas de leitura realizadas nos domicílios, em geral, contemplam a tipologia narração, sendo pouca, no entanto, a interação das crianças com textos de diferentes formas (estrutura das sequências linguísticas e estilos linguísticos, como descrição, injunção, exposição etc.) e gêneros textuais (formas de expressão textual, como poesias, poemas, adivinhas, fábulas, parlendas, piadas, cartas etc.). Para o Pró- Letramento (BRASIL/MEC (2007), a leitura “supõe uma certa experiência textual, como o contato e a familiaridade com os diferentes gêneros e estruturas textuais, de forma que o aluno perceba que ler um texto informativo é diferente de ler uma instrução, ler uma notícia é diferente de ler uma história [...]”(p. 25).

A interação da criança com uma maior diversidade de textos que lhe agradam contribui para a ampliação de conhecimentos prévios (conhecimento textual, linguístico e de mundo). “E porque o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a leitura é considerada processo interativo” (KLEIMAN, 2007, p. 13).

Para Kleiman (2007), “quanto mais diversificada a experiência de leitura dos alunos, quanto mais familiaridade eles tiverem com textos narrativos, expositivos, descritivos,

mais conhecida será a estrutura desse texto, e mais fácil a percepção das relações entre a informação veiculada no texto e a estrutura do mesmo” (IDEM, 2007, p. 87).

A apropriação de objetos culturais, conforme Wallon (1989), depende das condições oferecidas pelo meio e do grau de apropriação que o indivíduo faz delas.

As fotos 26 e 27 confirmam o que diz Wallon. Essas cenas foram registradas por ocasião de nossa visita ao domicílio de Edu. As duas crianças, residentes na casa vizinha, entraram repentinamente e, ao se depararem com Edu lendo e com os livros sobre o sofá, já se sentiram convidadas para ler. O nível de envolvimento das duas foi tão elevado que, sequer, perceberam que estavam sendo filmadas.

Foto 26 – Leitura silenciosa Foto 27 – Leitura dialogada

O meio provê a nossa atividade de instrumentos e técnicas, que estão tão intimamente unidas às práticas e às necessidades da nossa vida quotidiana, que muitas vezes nem nos damos conta da sua existência. Mas a criança não aprende a dispor delas senão progressivamente (WALLON, 1989, p.54).

Para Wallon e também para Vigotski, o aprendizado é de natureza social. Portanto, os hábitos, as crenças e valores e o sentido da leitura constituem-se na criança desde suas interações em diversos contextos, como a família, a escola e a comunidade, enfim, com a sociedade. Quanto mais intensas, diversificadas e significativas as oportunidades de interação da criança com práticas sociais de leitura, maior será a possibilidade de apropriação dos conhecimentos referentes à linguagem escrita. No entanto, conforme o contexto, as relações que os leitores estabelecem com o texto escrito diferem.

Fatores de natureza política, ideológica, sociocultural e econômica interferem na definição das práticas de leitura da família. A partir desses fatores concretizam-se as condições que favorecem, ou não, a prática de leitura, como existência de bibliotecas, aquisição de impressos, o nível de alfabetização e letramento das famílias, dentre outras.

O estado de pobreza da maioria das famílias arroladas neste estudo, por exemplo, envolve grande parte do tempo dos responsáveis pela educação das crianças (principalmente, as mães) em atividades que não exigem a prática leitora. É o caso das diaristas (lavadeira, engomadeira, faxineira), dos pedreiros, serventes, manicures etc. Como esses tipos de trabalho exigem principalmente a habilidade física, diminui sobremaneira a possibilidade de prática de leitura pelos adultos que sabem ler. Vale ressaltar que, também, são as mães, em sua maioria, com a ajuda das avós, as responsáveis pelo sustento da família.

A maioria dos adultos dessas famílias trabalha em regime de contratação temporária. E quando consegue trabalho fixo, o baixo nível de escolaridade não contribui para que assuma cargos, para os quais a leitura seja um dos instrumentos de trabalho. Para estes, a leitura é utilizada, eventualmente, por ocasião da contratação de trabalho, ocasião em que é preciso preencher um cadastro pessoal.

As angústias e preocupações causadas pela instabilidade de garantia de alimentação e de outras necessidades básicas de muitas das famílias, como é o caso daquelas que têm como renda certa apenas o Programa Bolsa Família39, fazem-nos pensar que a maneira como vivem, de certa forma, orienta a preferência de 43% das famílias por leituras com função religiosa.

Mesmo considerando que há outros fatores que influenciam as escolhas das leituras, ideologicamente, a leitura religiosa conforma quem vive em situações precárias e alimenta a esperança de concretização de projetos de vida por meio de “milagres”, ou seja, “quando Deus quiser”.

O conformismo provocado por ideais religiosos impede que as reais causas da exclusão social de certas famílias sejam percebidas. Como diz Nietzsche (2003, p. 85), “talvez nada exista no cristianismo e no budismo tão digno de respeito quanto a arte de ensinar os mais baixos a elevarem-se pela religiosidade a uma aparente ordem superior das coisas e a contentarem-se, dessa maneira, com a ordem real em que vivem muito duramente”.

39 Bolsa Família - Consiste-se na ajuda financeira às famílias pobres, definidas como aquelas que possuem

renda per capita de R$ 70,01 até 140,00 e, extremamente pobres, com renda per capita até R$ 70,00. Em contrapartida, as famílias beneficiárias deverão manter seus filhos e/ou dependentes com frequência na escola e vacinação em dia.

Outro aspecto implicado nas práticas de leitura das famílias diz respeito ao reduzido acervo literário (pouco atrativo) disponível nos domicílios, citado anteriormente, e à falta de políticas que incentivem o uso de bibliotecas.

As bibliotecas existentes na comunidade, como a do ABC40 e da escola, a que as crianças frequentam, ainda não constituem um espaço acessível para as pessoas que desejam usufruir dos seus serviços, como declara a mãe de Barb: Seria bom que a escola tivesse uma sala de leitura para que a família tivesse acesso. A família podia levar livros também.

Apesar da existência dessas duas bibliotecas na comunidade, ainda não foram criadas estratégias que incentivem a leitura para atender a diferentes propósitos e ao prazer de ler: que possibilitem a leitura compartilhada ou individual; que permitam a retirada de livros para serem lidos no domicílio; enfim, que oportunizem o leitor usufruir da leitura conforme lhe convier.

A falta de incentivo à leitura em bibliotecas comprova-se pela resposta negativa de 86% dos responsáveis pelas crianças, que disseram nunca terem frequentado uma biblioteca. Pra falar a verdade, nunca entrei nunca biblioteca, assim revelou uma mãe (mãe de Dav). Os demais, 14%, afirmaram ter frequentado, esporadicamente, à biblioteca da escola quando estudavam. Segundo Perrotti (2006, p.12),

O Brasil pode ser considerado um país que lê pouco. Estatísticas mais recentes apresentadas pela Câmara Brasileira do Livro, por meio da pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, aponta que a média de livros lidos por per capita anualmente no país é de 1,8 contra 4,9 na Inglaterra, 5,1 nos Estados Unidos e 7 na França. Além disso, o gasto médio do brasileiro com jornais e revistas é muito baixo, se comparado a outros produtos e serviços. Fica atrás, por exemplo, de despesas médias com perfume, cabeleireiro e manicure. Famílias com maior poder aquisitivo consomem de quatro a seis vezes mais esses produtos do que livros.

Já a pesquisadora Lajolo (2007) acredita que o brasileiro lê. Em entrevista concedida ao Jornal Letra A41, a pesquisadora diz, inclusive, que não temos pesquisas confiáveis que permitam dizer se nossa sociedade lê ou não lê. Para Lajolo (2007),

40

ABC (Aprender, Brincar e Crescer)-Atende à população infanto-juvenil através de programações educativas, culturais, socializantes, esportivas e de iniciação profissional, em parceria governo e comunidade.

41 Jornal Letra A, Belo Horizonte, 2007, ano 3, n. 9. mar./abr. O Jornal Letra A é uma ação da Rede

Quando as pessoas gastam 25 centavos para comprar um jornal popular, significa que querem ler. Se elas compram jornais, revistas ou livros, significa que valorizam esses impressos. Ou seja, no imaginário público, objetos para leitura parecem gozar de um valor positivo, a ponto de as pessoas pagarem por eles (p.13).

Como podemos observar, as condições de práticas de leitura são produzidas e influenciadas por fatores de ordens diversas e efetivamente interferem nas relações do leitor com o texto. Lajolo e Zilberman (1996), Manguel (1997) e Chartier (1996) realizaram estudos sobre práticas de leitura e revelaram que há diversos modos de leitura (leitura coletiva, teatralizada, silenciosa etc.), modos diversos de emprego dos textos, diferentes formas e processos de acesso ao texto.