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No capítulo anterior, enfatizamos as diretrizes estabelecidas pelo PETI, em consonância com a realidade e peculiaridades na implantação do Programa para absorver famílias do antigo ‘lixão’ de Cidade Nova. A rigor, essas famílias devem ter renda per capita de até ½ salário mínimo; filhos de sete a quatorze anos que estivessem em atividades de trabalho priorizando aquelas famílias que se encontrem na extrema pobreza, em Cidade Nova, conforme dado do Programa no ano de 1999.

Para a caracterização da população beneficiada pelo Programa, tomamos, como referência, os dados contidos nas 70 (setenta) fichas cadastrais das famílias selecionadas, que estão no PETI desde janeiro do ano 2000, segundo informações do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova, através da sua Coordenadora, como também através das informações coletadas nas entrevistas, junto aos 10 (dez) usuários (adolescentes na faixa etária de doze a quinze anos e onze meses) e as 10 (dez) famílias que participaram dessa pesquisa.

A inserção de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, tem muito a ver com a relação de submissão da classe trabalhadora, com a expansão do capitalismo.

Como retrata, (LIMA,2001, p. 116) a população trabalhadora,

encontra-se muito mais atingida por esse sistema dominante e excludente, que procura sempre se reestruturar, no sentido de manter- se forte, ainda que esse fortalecimento dê-se em detrimento de uma profunda exclusão social de expressiva parcela da população, o que deixa em evidência o seu caráter perverso e cruel.

São marcantes as contradições inerentes ao capitalismo que se vêem ressaltadas nas populações que apresentam um quadro sócio-econômico caracterizado pelo crescimento do desemprego e o aumento da miséria. A realidade vivenciada pelas famílias dos usuários do PETI remanescentes do ‘lixão’ de Cidade Nova, reproduz os índices de pobreza, expressos pela renda familiar, conforme demonstramos na Tabela 1.

Tabela 1 - Renda Familiar/Ocupação Até 100 Reais 101 A 200 Reais 201 A 300 Reais 301 A 400 Reais 401 A 500 Reais Não respondeu Total Renda familiar / Ocupação f % f % f % f % f % f % f % Emp. doméstica, Diarista, Lavagem de roupa, ASG/prefeitura e Faxineira 2 66,7 3 12,0 4 14,3 1 12,5 0 0,0 2 50,0 12 17,1 Vive da bolsa, Benefício 0 0,0 3 12,0 2 7,1 0 0,0 0 0,0 0 0,0 5 7,1 Ex-catador, Ambulante, Biscaite, Vigia de rua e Apanhador de feijão na feira 0 0,0 5 20,0 3 10,7 0 0,0 0 0,0 1 25,0 9 12,9 Vende produto de artesanato 1 33,3 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 1,4 Coleta seletiva, Catador na usina, Trabalha na usina e Catador de lixo 0 0,0 5 20,0 5 17,9 2 25,0 2 100,0 0 0,0 14 20,0 Faz salgado e Manicure 0 0,0 1 4,0 2 7,1 0 0,0 0 0,0 0 0,0 3 4,3 Pescador e Pedreiro 0 0,0 0 0,0 0 0,0 2 25,0 0 0,0 0 0,0 2 2,9 Não respondeu 0 0,0 8 32,0 12 42,9 3 37,5 0 0,0 1 25,0 24 34,3 Total 3 100 25 100 28 100 8 100 2 100 4 100 70 100

Por outra parte, das 70 famílias que responderam qual atividade exerciam, observou-se que as ocupações desses usuários (familiares das crianças e dos adolescentes), estão centradas em atividades informais.

Considerando que “uma família em condições de pobreza é aquela cujo rendimento mensal familiar per capita estaria em torno de até ½ salário mínimo” (FUNDO, 1992, p.14), vê-se, ainda, no início dos anos 2000 situações de famílias pobres que têm filhos crianças e adolescentes e que vivem na condição de extrema pobreza, ou seja de miserabilidade.

Isto comprova que a situação de pobreza e a falta de emprego em que vive um grande número da população faz com que muitos busquem outras alternativas de sobrevivência. No dizer de (LIMA, 1996, p. 3):

Se uma grande parcela é expulsa do mercado de trabalho e outras sequer foram empregadas e não há política de geração de emprego, a alternativa é a inserção em trabalhos precários, entre os quais se situa o mercado de trabalho informal, onde não se insere apenas os adultos mas também as crianças e adolescentes como forma de complementar a renda.

No lixão de Cidade Nova, a luta pela sobrevivência dos usuários do PETI, via-se retratada na fala do entrevistado C1, uma criança de 13 anos de idade:

Ia pro lixão com meu irmão, catava lixo reciclagem, garrafa e outros coisas, não me lembro não. Passava o dia, de noite ia pra casa.

A inserção precoce de crianças e adolescentes no trabalho informal, quando viviam no ‘lixão’ catando lixo para ajudar na renda familiar e em situação de insalubridade em Cidade Nova, retrata o modelo econômico excludente que se instalou no Brasil nas últimas décadas; que conforme Lima (2001), expulsa um grande contingente de famílias, que diante das mínimas perspectivas do trabalho adulto e da pressão constante da miséria, são forçadas a inserir prematuramente suas crianças e adolescentes no mercado de trabalho, buscando o aumento da renda familiar ou a renda total da família.

Ai eu saio na batalha nessa carroça, eu cato plástico no meio da rua, material de alumínio, latinha, ferro, é isso que a gente arranja, ai eu junto no final de semana às vezes dá vinte e cinco conto para as despesas dentro de casa. O pior é que não só ele que vive comigo, tem os netos.

No cenário de desemprego e sub-emprego vai sendo gerada uma parcela de trabalhadores autônomos e não assalariados, em ocupações que não apresentam perspectivas de vida ou de atendimento às suas necessidades básicas de sobrevivência.

É nesse processo que entra em cena O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil como uma alternativa de ação que tenta eliminar o trabalho infantil, que se constitui um problema social complexo, determinado economicamente, condicionado socialmente e influenciado por fatores de natureza cultural.Corroboramos o pensamento de Antônio Carlos Gomes da Costa quando diz que: “Qualquer abordagem de enfrentamento que não considere essa complexidade estará, de antemão, condenada à parcialidade e ao reducionismo”(COSTA, 1994,p.51). No mercado de trabalho informal, a presença de crianças e de adolescentes é uma realidade. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD), ANCED :

12% da população economicamente ativa brasileira é constituída por crianças e adolescentes, distribuídos nas mais diferentes ocupações, sendo que, no início da década de 90, 4 milhões de crianças em idade escolar, estavam fora das salas de aula, ressaltando a relação entre a evasão escolar e o aumento da mão-de-obra infantil, principalmente no mercado informal. (ASSOCIAÇÃO,1996, p. 6).

Conforme a Tabela 2, tem-se a visibilidade do que trata os dados do PNAD,ANCED, no que se refere às conseqüências do trabalho infantil frente a nossa realidade, quando da caracterização dos usuários do PETI.

TABELA 2 – Escolaridade/Trabalho que exercia.

EF incompleto EM incompleto Total Escolaridade / Trabalho que

exercia f % F % f %

Catador de lixo 33 47,8 1 100,0 34 48,6

Neto de catador 2 2,9 0 0,0 2 2,9

Mãe trabalha no lixão 5 7,2 0 0,0 5 7,1

Filho de ex-catador 4 5,8 0 0,0 4 5,7

Irmão trabalhava no lixão 2 2,9 0 0,0 2 2,9

Ex-catador 1 1,5 0 0,0 1 1,4

Pai catador 7 10,1 0 0,0 7 10,0

Pai trabalha na usina 1 1,5 0 0,0 1 1,4

Pedinte 1 1,5 0 0,0 1 1,4

Nenhum 2 2,9 0 0,0 2 2,9

Não respondeu 11 15,9 0 0,0 11 15,7

Total 69 100 1 100 70 100

Fonte: Dados coletados do cadastro do Núcleo do PETI de Cidade Nova.

Observa-se que nessa relação de crianças e adolescentes inseridos no trabalho infantil, como catadores de lixo, 47,8% desses tinham o ensino fundamental incompleto, antes de entrar no PETI; exatamente por estarem na ‘atividade de trabalho’ não tinham estimulo para permanecer estudando. Na condição de trabalhadores, essas crianças e adolescentes, muitas vezes, abandonavam a escola, ou quando não abandonavam, entram num ciclo de repetência, o que faz com que muitas delas apresentassem incompatibilidades entre idade e série cursada.

34,8 2,9 20,3 29,0 13,0 100,0 0 20 40 60 80 100 EF incompleto EM incompleto %

12 anos 13 anos 14 anos 15 anos 16 anos

GRÁFICO 1 – Escolaridade dos adolescentes segundo Idade Fonte: Pesquisa de campo.

Fica evidente que a inserção da criança e do adolescente no trabalho infantil é um fator que contribui para que a evasão e a repetência escolar ocorram.

Também, o próprio sistema educacional, com suas precariedades não atende à realidade de nossas crianças e adolescentes, o que contribui para essa situação.

Eis, então, as principais causas de evasão no PETI, no Núcleo de Cidade Nova, relatadas pela equipe técnica do programa:

- Mudança de cidade; a família vai em busca de alternativas de sobrevivência e muitas vezes deixa a capital em busca de cidades do interior ou de outros Estados, onde têm familiares e seguem à procura de trabalho;

- Deixam de freqüentar a escola (criança e adolescente) sabendo que a freqüência à escola conta como critério para permanecer no PETI, também evadindo-se;

- Gravidez na adolescência, a adolescente sente dificuldade em participar das atividades oferecidas.

- A dificuldade de locomoção -... a maioria da clientela assistida vem andando para o Núcleo e volta para as suas casas a pé com uma distância de aproximadamente 20 Km, daí perdendo o interesse em participar das atividades, diariamente; o envolvimento das famílias em

brigas e discussão, que se tornam ameaças, muitas vezes através do consumo de drogas e de assassinatos de parente”.(Equipe técnica do PETI)

Com os adolescentes inseridos no PETI e a exigência da freqüência escolar como um dos critérios do programa, eles passam a olhar a escola como instância de mudança de vida, como pode-se observar nas falas:

Entrevistado C2:

escola é aprender, é ir pra escola todos os dias, ler, escrever, é arranjar um trabalho pra ajudar a mãe quando crescer.

Para o entrevistado C3,

a escola é um ensino de vida que faz você melhorar de vida para você aprender a ler e escrever, para se dar bem com as pessoas, arrumar um bom emprego e assim ser alguém na vida.

A percepção de que sua vida melhorou é expressa na fala do entrevistado C4:

saí do lixo e agora tou indo muito pra escola e ficou melhor mais a minha vida.

Na realidade pesquisada, constata-se igualmente, como mostra Costa, que há grande índice de “não-escolarização e desescolarização precoce das crianças, e o seu ingresso no mundo do trabalho abusivo e explorador, é um fenômeno revestido de uma trágica realidade”. (COSTA, 1994, p.52). A família, frente às necessidades emergenciais, passa a ser condizente com o trabalho das crianças e dos adolescentes. A educação, que deveria estar presente na vida de nossas crianças e adolescentes, vai se distanciando desse segmento pobre, que face a baixa renda familiar, entra nas atividades de trabalho, interrompendo sua formação educacional e vendo reduzidas as chances de mobilidade social.

Percebe-se que é unânime, tanto por parte das famílias quanto por parte dos usuários, crianças e adolescentes, a compreensão pelas crianças e adolescentes participantes do PETI, oriundas do Lixão de Cidade Nova; a compreensão da

importância da escola como um elo transformador, uma possibilidade de mudança, como refere-se a família do usuário:

Entrevistado M3:

Eles mudaram muito porque eles eram muito medonho, eles vivendo lá eles são outras pessoas, aprende mais falar com outras pessoas e vivendo no lixão eles não tinha como aprender a falar com ninguém, misturar com todo tipo de pessoas né? É, hoje em dia não, sabe quais as experiências e eu ensino muito a eles respeitar as pessoas, os mais velhos, respeitar as pessoas quando tiver no meio, como se comportar, entendeu? Eu acho que isso é muito importante.

Ou ainda que:

Vi com certeza,[a importância] assim em relação ao estudo se dedica mais pra ir pro colégio, uma coisa melhor pra vida deles.

O entrevistado M5 acrescenta também:

Vi graças a Deus.[a importância] Estudioso, graças a Deus todo ano ele passa.

Muito embora se perceba, na caracterização dos usuários do PETI, a partir da sua condição de vida na época da existência do lixão de Cidade Nova, uma diferença face a sua inserção no programa, observamos ainda, uma marca muito forte das conseqüências ali instaladas no seu cotidiano. São crianças e adolescentes que vivem em condições de pobreza, famílias vitimadas de um ‘sistema’ e modelo econômico perversos.

O universo pesquisado, de acordo com o mapeamento, está na faixa etária de 12 a 16 anos. Moram em casas sem condições mínimas de habitabilidade, sem estrutura física, pequenos espaços, cubicúlos que acomodam em média cerca de 10 membros da família, entre filhos e agregados familiares como noras, genros e netos. Possuem uma renda cujo valor é incompatível com as suas necessidades básicas. Conforme Tabela 3.

TABELA 3 – Número de Pessoas na Família/Renda 2 a 5 pessoas6 a 10 pessoas 11 a 14 pessoas Total Nº de pessoas na família / Renda F % f % F % f % Até 100 Reais 2 7,4 1 2,7 0 0,0 3 4,3 101 a 200 Reais 7 25,9 15 40,6 3 50,0 25 35,7 201 a 300 Reais 10 37,1 16 43,2 2 33,3 28 40 301 a 400 Reais 4 14,8 3 8,1 1 16,7 8 11,4 401 a 500 Reais 1 3,7 1 2,7 0 0,0 2 2,9 Não respondeu 3 11,1 1 2,7 0 0,0 4 5,7 Total 27 100 37 100 6 100 70 100

Fonte: Dados coletados do cadastro do Núcleo do PETI de Cidade Nova.

A renda familiar torna-se um desafio diário para ser mantido e prover os membros agregados, pois, mesmo que essas famílias tenham saído do ‘lixão’ continuam na informalidade, portanto sem carteira assinada, e sem assistência previdenciária.

As crianças e adolescentes quando questionadas sobre o seu dia a dia, ou sobre o seu futuro, expressam os seus sonhos. Sonhos que destacam sua condição de vida e retratam a esperança de uma mudança, sempre colocando a família e o trabalho na centralidade dos seus sonhos. Como observamos nos seguintes depoimentos:

Para o entrevistado C5:

sonho trabalho digno e ajudar minha família, ixi, aí ta ruim, ajudar minha mãe, porque está idosa e não vai poder mais trabalhar para sustentar, ajudar ela e os meus irmãos. Quando a gente vivi o dia-a-dia que a gente vê muita gente no mundo e não tem conseqüência de ajudar os seus pais.

Ou ainda, para o entrevistado C6:

melhorar minha casa, assim e estudar muito. Ele não trabalha não o pai. É ajeitar minha casa terminar os estudos até a universidade medicina.

O Sonho do entrevistado C7:

meu sonho assim é ser advogada e comprar uma casa pra minha mãe.

Na mesma direção, o entrevistado C8:

ajudar minha mãe a fazer a casa dela pra ir pro interior.

Diante da realidade em que estão inseridas, essas crianças e esses adolescentes marcados pelo modo como viviam na condição sub-humana de sobrevivência no lixão de Cidade Nova e de hoje estarem sendo beneficiadas pelo PETI, é de se indagar se de fato estamos garantindo a elas os direitos assegurados na Constituição Federal; direitos sociais, na concepção da mobilidade, na inserção e emancipação (Manual, PETI-2002) das suas famílias, frente a essa nova realidade, após quatro anos de participação, no Programa PETI.

Na discussão acerca do trabalho das crianças e dos adolescentes, apesar de termos leis que garantem os seus direitos, muitos continuam a se sacrificarem, desenvolvendo atividades que lesam o seu desenvolvimento psicossocial e educacional; essa é a história de vida de milhares de crianças e adolescentes, em nossa sociedade.

No próximo item e ao longo deste capítulo, tentaremos responder de acordo com os dados apreendidos, muitos dos questionamentos levantados para este estudo.