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5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

5.1 IDENTIFICAÇÃO DOS VALORES DO PRECE

5.1.4 Valores pouco presentes no PRECE

Fizemos uma opção por trazer uma apresentação de valores pouco presentes no PRECE por compreender que em termos identitários, de caracterização de um movimento, a ausência ou pouca presença de um valor é também se constitui como um importante elemento de análise para compreender o que se afirma, o que se é. Nesse sentido, em relação aos valores pouco presentes no PRECE, temos, no Quadro 8, a referência a alguns valores:

Quadro 8 − Valores humanos pouco identificados no PRECE Valores humanos

(SCHWARTZ et al., 2012) Práticas presentes no PRECE

Poder domínio

- Construção coletiva do conhecimento (AVENDAÑO, Ana, 2008)

- Relação dialógica e cooperativa (AVENDAÑO, Ana, 2008) - Corresponsabilidade (SÁ, 2010)

Poder recurso - Valorização do ser (PRECE, 1998)

Tradição - Confronto às perspectivas de futuro tradicionais (RODRIGUES, 2007)

- Educação reflexiva e questionadora (AVENDAÑO, Arneide, 2008)

Fonte: Elaborado pela autora.

Em relação ao valor poder recurso definido como o “poder através do controle de recursos materiais e sociais” (SCHWARTZ et al., 2012, p. 669, tradução nossa), podemos perceber nos discursos de alguns dos participantes da pesquisa uma contraposição à noção de poder associado ao recurso, ao dinheiro: “Eu num conheci nenhum precista que queira, seu plano é ser rico, milionário. Pode ser quando entra, mas depois que entra, eu não consigo enxergar assim” (PAULO, GF 1).

Isso tem sido resgatado no nosso dia a dia, a valorização do ser, da pessoa, você sabe que nós temos hoje, temos a valorização do ter [...] muita gente acha que se eu tiver um carro, eu conheço jovens, rapazes que acham se tiverem uma moto vão arranjar várias namoradas, isso dentro do nosso grupo [PRECE] pode não ter se acabado, mas ele foi reduzido bastante (MICHEL, GF 2).

Analisando os discursos acima, juntamente com um trecho da ata de constituição do PRECE (1998a) que enfatiza “ninguém pode ser tratado pelo que tem”, podemos inferir que no PRECE se compartilha a ideia de que o acúmulo material não é um fator motivacional prioritário, o que não significa que inexista uma preocupação com a busca por condições econômicas mais favoráveis, sendo este um aspecto relevante para a autonomia dos sujeitos.

Percebemos o valor poder domínio, que implica “poder através do controle sobre as pessoas” [tradução nossa] (SCHWARTZ et al., 2012, p. 669) vai de encontro a algumas práticas presentes no PRECE, como a ênfase na construção coletiva nos processos grupais e a formação de líderes que compartilham a responsabilidade entre si. Firmiano et al. (2006, p. 31), ao definirem o tipo de aprendizagem presente no PRECE, reforçam esse ponto de vista:

A aprendizagem, portanto, é coletiva e participativa e dá oportunidade para q ue todos sejam sujeitos do processo, favorecendo o desenvolvimento da autonomia intelectual dos participantes, o que contribui para elevar sua auto -estima e exercício ativo da sua cidadania.

Podemos também observar a pouca ênfase dada ao valor poder domínio no discurso do Antônio (GF 1) que explicita o fato de, no PRECE, construírem juntos conhecimento capaz de transformar suas vidas:

No momento atual, pra mim, o PRECE é uma grande inspiração [...] acredito que é uma grande inspiração, a experiência que ele trouxe faz com que outros jovens,

outras pessoas se inspirem com aquele modelo né, de que as pessoas juntas podem construir um conhecimento e usar isso pra transformar sua vida.

Compreendemos que a metodologia da cooperação e da ajuda mútua visa fortalecer uma liderança compartilhada entre os sujeitos, em um processo de corresponsabilização, uma oposição a ideia de controle que um sujeito deve ter sobre os demais, como delimitado pelo poder domínio.

Percebemos também que a participação no PRECE traz um confronto com algumas práticas perpetuadas historicamente nas famílias e nas comunidades dos precistas, como um rompimento de uma tradição intergeracional, que fazia com que os filhos reproduzissem o papel social desempenhado pelos pais, como podemos perceber nos discursos do AND (GF 2): “O PRECE e a escola [EEEP Alan Pinho Tabosa] mudou muita a minha visão, eu tinha esse mesmo pensamento do Assis, que eu ia ser que nem meu pai, agricultor, aí depois quando entrei aqui esse pensamento mudou totalmente”.

Um sentimento que percebi que mudou muito em mim quando conheci o PRECE, esse grupo, foi uma força em acreditar mais, eu acho que eu ainda não tinha muita visão ou não enxergava o caminho, tava ali na minha comunidade, ia fazer a mesma coisa que meu pai fez, aí quando conheci o PRECE, e aí as pessoas começaram a falar dessa responsabilidade, que eu era capaz, que eu não tava só, me senti empoderado pra vencer muitas das barreiras (ASSIS, GF 2)

Essa característica presente no PRECE se contrapõe a valores de tradição que é definido como “manutenção e preservação cultural , familiar ou religiosa das tradições” [tradução nossa] (SCHWARTZ et al., 2012, p. 669). Rodrigues (2007, p. 57) aponta a dedicação dos jovens aos estudos como um aspecto que demarca um rompimento de práticas tradicionais de empregabilidade da juventude na região:

O ideal de dedicação aos estudos interrompeu o circulo vicioso que praticamente obrigava o jovem a abandonar a sua comunidade e a aventurar-se na busca de trabalho nos grandes centros urbanos, cuja condição desfavorável, por falta de qualificação profissional e baixa escolaridade, ensejava que a maioria se acomodasse em subempregos ou que fosse explorada como mão de obra barata, vivendo exposta às mazelas sociais como a violência, a falta de assistência médica e a precarização de moradia, dentre outras.

O rompimento com o ciclo intergeracional da pobreza se dá no PRECE por conta das possibilidades de construção de futuro através da dedicação aos estudos e ao ingresso no ensino superior, o que se configura como uma estratégia de enfrentamento à pobreza através

da insubordinação à ideologia de submissão e resignação (GÓIS, 2008) que submete os sujeitos a uma inferiorização cultural, social e econômica.

A entrada dos jovens precistas no ensino superior implica mais uma atitude de rompimento com as práticas tradicionais quando exige o distanciamento do cotidiano de suas comunidades de origem, como uma espécie de êxodo urbano universitário, onde os jovens se veem obrigados a morar fora da sua cidade e comunidade para conseguir uma formação superior.

É interessante perceber que esse rompimento com as tradições familiares e culturais resguarda em si uma singularidade, pois ao mesmo tempo em que se incitam os jovens a assumirem uma série de riscos em prol da realização do sonho de adentrar no ensino superior, por outro lado há uma mobilização para que os jovens retornem aos seus lugares de origem fortalecidos para contribuírem com o desenvolvimento de suas comunidades ou para darem apoio a seus familiares. No trecho do Jornal Tribuna do Estudante (2002, n. 5, p. 3) que faz uma referência às mães dos precistas, percebemos essa característica singular presente no PRECE:

Hoje estamos prestando uma homenagem às mães dos alunos do PRECE, as quais louvamos pela garra, pela força e principalmente pelo incentivo dado aos seus filhos para continuarem estudando. Nós as anunciamos que estão sendo empreendidos esforços para que eles não as abandonem. Certamente, eles também deverão sair, para buscar melhorias. No entanto, sairão com o status de estudantes universitários, com a perspectiva de se qualificarem para concorrerem com mais condições no mercado de trabalho. Eles não ficarão abandonados na periferia, mendigando o subemprego. Seus objetivos serão claros, estarão com a cabeça levantada, caminhando cheios de esperança, na certeza de dias melhores. Eles sairão, mas um dia voltarão com seus cestos cheios de gratidão. Voltarão para assistir suas mães e enxugar suas lágrimas.

O que pretendemos apontar a partir da análise dos valores que estão presentes ou pouco presentes no PRECE não é fazer uma apreciação incontestável dos valores oficiais do PRECE, mas compreender a partir dos elementos que nos foram apresentados a partir da pesquisa de campo e da análise documental uma visão de sujeito e de sociedade que está implícita e explicitamente apresentada nos discursos e documentos construídos pelos participantes do movimento.