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A violência contra a “mulher idosa”: agravantes de um problema sócio-histórico

MAPA 3.2 – Mapa da Violência Contra a Pessoa Idosa na Cidade de Aracaju/SE

3.3 Análises dos números e dados institucionais acerca dos casos de violência praticada

3.3.1 A violência contra a “mulher idosa”: agravantes de um problema sócio-histórico

Ainda em relação ao gráfico 3.1, outro dado torna-se relevante. Em quase todas as faixas-etárias (exceto a dos 90 ou mais anos de idade) a “mulher idosa” figura como aquela cujos números de denúncias de violência possuem o maior volume, demonstrando, dessa forma que, às categorias idade e violência, agrega-se uma terceira variável que passa a ter uma direta e relevante relação com as outras duas anteriores: a questão de “gênero”. Das denúncias de violência praticada contra pessoas idosas, registradas no CAGV, 68% diziam respeito à violência cometida contra a mulher idosa.

Pesquisas e estudos recentes, desenvolvidos no Brasil, e que levam em consideração o recorte de gênero da população idosa, têm apontado para a chamada “feminização da velhice” (BERQUÓ, 1998; 2004; IBGE, 2000; KACHAR, 2003; DEBERT, 2004; MOTTA, 1999; et al.), revelando os reflexos que tal acontecimento social e na formação demográfica do país, podem trazer para a vida desses idosos e da sociedade como um todo. Segundo recente estudo realizado pelo IBGE (2008), a este respeito,

A divisão por sexo das pessoas de 60 anos ou mais de idade mostra que as mulheres apresentam maior longevidade, evidenciada pelo indicador razão de sexo. Em 2007, no conjunto do País, havia 79 homens idosos para cada 100 mulheres nesta condição. Os resultados mostram ainda que a razão de sexo se acentua com a elevação da idade: no grupo de 65 anos ou mais de idade, a razão cai a 76 homens para cada 100 mulheres, chegando a apenas 72 homens para cada 100 mulheres de 70 anos ou mais. A Região Sul possui a maior diferença entre os sexos, no caso do segmento de 70 anos ou mais de idade - há somente 67 homens para cada 100 mulheres - seguida de perto pela Sudeste, com 69 homens para cada 100 mulheres [...] (IBGE, 2008, p. 167).

As mulheres apresentam uma expectativa de vida maior do que a dos homens, no Brasil, em média de sete anos de diferença, gerando um déficit negativo para os homens que se acentua ainda mais em idades mais avançadas (BERQUÓ, 2004). Mas não é apenas pelo maior número de mulheres idosas vivendo no país que elas passam a ser protagonistas de um índice elevado e negativo de violências nos registros policiais, em relação às denúncias de casos de violência e a um número consideravelmente maior, se comparado aos casos registrados, em relação aos casos onde os homens idosos aparecem como vítimas. Tal situação se deve, dentre outras variáveis, ao fato de que, no Brasil, existirem ainda raízes muito profundas, fincadas nas origens culturais e ideológicas do patriarcado brasileiro (FREYRE,

2004), o qual busca garantir na sociedade e na família a supremacia e estabilidade da dominação masculina em relação à mulher, implicando em uma considerável diminuição da importância, do valor e do poder que as mulheres possuem nessa sociedade e no âmbito familiar.

A situação das mulheres na sociedade atual, inegavelmente, revela-nos as conquistas alcançadas por elas e pelos movimentos feministas, durante a maior parte do século XX, na luta por direitos e oportunidades iguais em relação aos homens, seja nas relações de trabalho, ou mesmo na vida afetiva, no espaço das intimidades (GIDDENS, 1991b), na possibilidade de se tornarem parte tanto dos espaços privados (historicamente destinados às mulheres) quanto da esfera pública (domínio hegemonicamente masculino). Contudo, mesmo diante de todas estas conquistas femininas, também é fato que o poder da ideologia patriarcal ainda está presente na realidade social e cultural da sociedade brasileira – mesmo tendo hoje menor intensidade –, contribuindo significativamente, ainda nos dias atuais, para a permanência de estruturas de dominação e de diferenciação sexual e social entre mulheres e homens, materializando-se em práticas e discursos sexistas e em uma relação hierárquica que busca inferiorizar as mulheres em relação aos homens, mesmo em situações onde este poder não é sequer percebido, como as estruturas e disposições práticas definidas e analisadas por Bourdieu (2001; 2007a), onde o poder simbólico constitui-se em um poder irreconhecível, transfigurado e legitimado pelas relações sociais.

Assim, agrega-se à imagem histórica e socialmente construída da pessoa idosa – fragilizada pela representação social da velhice, que se construiu em torno da “decrepitude” e da idade avançada, atribuída aos “velhos” – a imagem de mulher – ideologicamente submissa, passiva, inferiorizada e, muitas vezes, vulgarizada em relação à representação social que se tem do homem nestas estruturas sociais de dominação. Sendo assim, o aprofundamento da ideológica supremacia masculina sobre a mulher, segundo Bourdieu (2005), dispensaria justificativas, pois, ela estaria posta na ordem social das coisas, passando a se impor naturalmente, em certas circunstâncias, sem coerção alguma, dentro das relações cotidianas de poder, reforçando o discurso que legitima a dominação masculina em detrimento da mulher e sendo raramente percebido desta forma. Ainda segundo Bourdieu, este fato passa a ser melhor entendido nas relações de trabalho, em sua divisão social, ou mesmo, na estruturação do

espaço (público x privado; assembléia x casa), que segrega, opõe e define o lugar socialmente

Dessa forma, a mulher idosa passaria a vivenciar duplamente essa violência, devido à imagem socialmente estigmatizada da fragilidade que, comumente, associou-se à velhice, perante os mais jovens, como também em relação à questão de gênero, em sua imagem de submissão, de inferioridade do sexo feminino diante do sexo masculino, perdendo-se assim o espaço e, por vezes, o respeito estabelecido nestas estruturas sociais tradicionais, sem que muitas vezes nem mesmo as relações de parentesco, os vínculos afetivos e proximidades que foram sendo social e naturalmente constituídos, em relação a alguns dos agressores, possam vir a livrar-lhes de práticas de violência, agressões ou maus tratos.

Abaixo trago alguns dos relatos que foram extraídos dos diversos depoimentos feitos pelos denunciantes às autoridades policiais, aos quais pude ter acesso no CAGV, onde se registravam, com maiores detalhes, as práticas de violência cometida contra esses idosos e, em particular, em relação às mulheres idosas.

“Declara a noticiante vítima que há dois (02) anos vem sendo constantemente perturbada e agredida verbalmente com palavras de baixo calão pelo seu filho de nome J. M. S., o qual não a respeita, começa a quebrar objetos em casa, a ofendê-la moralmente, chamando-a de ‘velha

safada, filha do cabrunco’ e outros, inclusive no dia de hoje [...] queimou uma bermuda que

havia comprado para o mesmo e ao repreendê-lo, este respondeu: ‘eu não sei de onde saiu este dinheiro’ e daí começou a perturbá-la. Que por estes e outros motivos já não têm mais paz e nem sossego em sua própria residência” (RPO-2008/000382).

“Relata o comunicante que sua genitora M. R. V. S., 82 anos, vivia sob os cuidados de sua irmã I. V. S.; que I. residia na casa da idosa, juntamente com o marido e um filho; que sua irmã I. permaneceu cuidando da mãe durante oito anos, por vontade própria; que durante o tempo que esteve morando com I., sua mãe lhe telefonou algumas vezes, reclamando que estava sofrendo muito, que o genro, M., marido de I., lhe agredia com empurrões, lhe injuriava de ‘puta velha’, afirmando que ela era ‘manhosa’ e que não tinha doença, além de deixá-la com fome. Informa o comunicante que, certa ocasião sua irmã I. lhe telefonou informando que o filho dela, de nome T., havia torcido o braço da avó, dona M. R. e lhe pediu que a levasse para passar um tempo em sua casa; que sua esposa foi pegar a idosa imediatamente; que ao chegar em sua residência a idosa contou que o neto T. havia lhe torcido o braço, pois o mesmo queria que ela lhe desse a quantia de R$ 25,00 (vinte e cinco Reais) para ele ir a um show. Diz o comunicante que no mês de maio do corrente ano, ao visitar sua mãe no hospital, que sua genitora trazia no corpo sinais de maus-tratos como: fezes na vagina, piolho e assadura na genitália. Por fim, diz o comunicante que sua genitora faleceu no Hospital João Alves, causa morte: septicemia, insuficiência respiratória e diabetes mellitus” (RPO – 2008/000352). “Declara a noticiante/vítima que há muito tempo vem sendo constantemente perturbada e agredida verbalmente com palavras de baixo calão pela sua vizinha, a Srª conhecida por C., inclusive no dia de hoje [...] encontrava-se em sua residência quando a noticiada já acima mencionada começou a ofendê-la moralmente, chamando-a de ‘vagabunda velha’, ‘safada,

cachorra, galinha’, a difamou dizendo que toma os maridos dos outros e que é ‘raça de

A partir das transcrições dos depoimentos acima é possível perceber que a violência depreciativa não atinge apenas as suas imagens enquanto “idosas”, mas que também passa a ser ampliada em relação ao conjunto de ofensas, de gestos e atitudes que golpeiam contundentemente as suas imagens enquanto “mulher”, com termos depreciativos que vulgarizam essa imagem feminina e que passam a agredi-las moral, psicológica e fisicamente, não se levando em consideração nem o respeito simbolicamente construído em torno da mulher e nem em relação aos seus papéis de mãe, de avó, de sogra, nem mesmo em relação ao ser humano que é a pessoa idosa. Desta forma, as mulheres idosas estão situadas em um cenário bastante hostil, seja em sua vizinhança, em contendas e desarmonias pessoais diversas com vizinhos e conhecidos em geral, seja dentro de suas próprias casas, no cotidiano das relações familiares, na convivência intergeracional entre avós, filhos, netos e bisnetos, onde três ou mais gerações passam a conviver sob o mesmo teto (IBGE, 2008), em uma mesma época, sem, muitas vezes, sequer saberem compreender os limites, possibilidades e necessidades de cada um de seus membros, inclusive os idosos.

Sendo assim, ressalto que, por conta desta “dupla imagem” de fragilidade e

submissão, que foi construída histórica e culturalmente no Brasil, em função da imagem

feminina, as mulheres idosas enfrentem maiores dificuldades em relação aos casos de violência, o que passa a desafiar os pesquisadores e seus estudos, a investigarem mais profundamente estes elementos e discuti-los, buscando explicar a vinculação existente entre as categorias velhice, violência e gênero, suas peculiaridades e consequências.

3.3.2 A VIOLÊNCIA CONTRA O “HOMEM IDOSO”: A NEGAÇÃO DO “HOMEM”