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Visibilidade das práticas profissionais dos bibliotecários com o advento da

2. REVISÃO DE LITERATURA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 A regulamentação da profissão em Biblioteconomia

2.2.5 Visibilidade das práticas profissionais dos bibliotecários com o advento da

Para os profissionais da informação, mais especificamente os bibliotecários, é patente que os avanços tecnológicos eram aguardados como o grande agente transformador de seu campo de atuação e de suas atividades − isto é, de suas relações de trabalho. Era esperado grande impacto social26 com o advento das então NTIC, em especial no que tange à cultura:

Assiste-se a um processo de hibridismo cultural entre as distintas sociedades. Isso em parte se deve ao avanço e a ação das TICs que caracterizam o mundo globalizado. As comunidades virtuais são cada vez mais comuns. As trocas de informações entre pessoas de culturas diversas, os “bate-papos”, a compreensão de outros idiomas em função do contínuo esforço de comunicação entre as pessoas conectadas à Rede, desenham uma nova cultura: a cibercultura (MORIGI; SILVA, 2005, p. 128).

Em relação à atuação profissional dos bibliotecários, previa-se que esse impacto seria maior que em outras profissões. De fato, muitas mudanças ocorreram nos processos de trabalho em seu espaço símbolo, isto é, na biblioteca. Adaptar-se às mudanças seria essencial para sua sobrevivência, até então ambientado em outro tempo, em outra realidade. O século XXI trouxe consigo um ambiente que passou a se movimentar com mais rapidez, no qual essas mudanças ocorriam de modo cada vez mais efêmero.

26 Impacto social significa as mudanças no bem-estar social, na educação, no mundo do trabalho e no próprio indivíduo, em virtude do uso cada vez mais intensivo das tecnologias de informação e comunicação (MORIGI; SILVA, 2005).

Morigi e Silva (2005) estudaram as mudanças e o redimensionamento nas rotinas de trabalho originados pelo uso da mediação tecnológica dos bibliotecários universitários de Porto Alegre/RS. Utilizando-se das representações sociais, teoria que ainda será conceituada mais à frente neste trabalho, analisaram as percepções dos bibliotecários estudados quanto às mudanças em suas atividades dentro das bibliotecas universitárias. Eles identificaram que, de modo geral, a percepção dos bibliotecários foi positiva em se tratando dos impactos sociais das tecnologias em suas rotinas de trabalho. O computador foi reconhecido como um dos símbolos da “modernidade”, a Internet como o principal recurso de acesso que essa máquina possibilitou e a adaptação dos profissionais foi entendida como parte do processo de aprendizagem contínua, que garantiria o acompanhamento da evolução dessas tecnologias (MORIGI; SILVA, 2005).

A necessidade de informatizar os serviços das bibliotecas era vista pelos bibliotecários como imprescindível naquele período, meados dos anos 2000. Para eles, esse procedimento tanto melhoraria o serviço prestado ao usuário quanto ampliaria as possibilidades de atuação do profissional (MORIGI; SILVA, 2005).

Outro fator observado pelos bibliotecários da pesquisa prende-se à questão da autonomia dos usuários possibilitada pela tecnologia. A mediação da relação bibliotecário/usuário feita pelo computador possibilitou a virtualização desse processo de interação entre ambos. Sinalizaram os autores:

Em relação ao processo interativo bibliotecário/usuário, o uso das tecnologias trouxe, segundo os profissionais pesquisados, profundas modificações. Os bibliotecários percebem que os usuários tornaram-se mais independentes e autônomos. Nesse processo, o bibliotecário passou a assumir o papel de “orientador”. A comunicação mediada pelas tecnologias, a orientação à distância, sem o contato face a face entre os sujeitos envolvidos, redimensionou as relações interativas (MORIGI; SILVA, 2005, p. 135).

A educação continuada é lembrada pelos bibliotecários como essencial para a continuidade do aprendizado, que passou a não ser mais centralizado no acervo, e sim na informação e sua manipulação. As habilidades requeridas dos bibliotecários, como “capacidade de adaptação e atualização” para o domínio pleno das tecnologias também foram mencionadas como fundamentais para a consolidação do novo perfil de profissional da informação (MORIGI; SILVA, 2005).

As NTIC eram percebidas pelos bibliotecários participantes da pesquisa como o mecanismo que viabilizaria a mudança de olhar sobre esses profissionais. Logo, a mudança

de perfil dos bibliotecários em decorrência dos avanços tecnológicos também impactaria a imagem deles perante a sociedade. Afirmaram Morigi e Silva (2005, p.136):

As narrativas dos profissionais em relação ao modo como se configura a sociedade da informação está centrada no uso das tecnologias e nas rotinas de seu trabalho que, por sua vez, influenciam na constituição de um novo perfil do bibliotecário. Elas proporcionaram uma nova representação do seu papel. O bibliotecário passou a ter outros atributos e a ser visto com “mais respeito” diante de outras categorias profissionais. As tecnologias deram mais “agilidade” ao seu trabalho. Ele se sente mais “seguro”, “valorizado” e com necessidade de se “atualizar constantemente”. Sente-se um profissional “moderno”, manuseando as tecnologias com “desenvoltura”, oferecendo serviços de “ótima” qualidade em um tempo reduzido. Todos esses atributos positivos fazem com que aumente a autoestima em relação a sua profissão.

Silva e Gomes (2010), em pesquisa realizada com bibliotecários da cidade de Salvador/BA, concluíram que as mudanças que vêm ocorrendo na sociedade contemporânea em razão do advento das novas tecnologias, embora tenham se apresentado como elemento determinante da autoimagem do profissional bibliotecário em virtude do redimensionamento do trabalho com a informação na era digital, não têm ocorrido na proporção imaginada a princípio. Mesmo reconhecendo que as tecnologias contribuem consideravelmente para a execução de seu trabalho − por exemplo, ao racionalizarem o tempo de tratamento e organização da informação e ao facilitarem sua disseminação e seu acesso −, esses profissionais consideram que os recursos tecnológicos “precisam ser mais bem explorados no fazer bibliotecário, o que talvez esteja interferindo na visibilidade social do próprio potencial da profissão” (SILVA; GOMES, 2010, p. 17). As autoras apontaram a dualidade vivida por esses profissionais: de um lado, são cobrados pelas demandas sociais cada vez mais expandidas em virtude das transformações provocadas pela tecnologia; de outro, sentem as dificuldades oriundas do estado de escassez de recursos e de infraestrutura para a execução das atividades nas bibliotecas. Essa situação contraditória acaba por favorecer a construção de uma “consciência dual” do bibliotecário. Isto é: “por um lado o bibliotecário tem consciência do potencial social do seu fazer profissional, mas por outro enfrenta cotidianamente os limites e as frustrações impostos pelas barreiras que inibem a realização de suas atividades em um plano ideal” (SILVA; GOMES, 2010, p. 18).

Tendo em vista essas questões suscitadas pelas pesquisas referenciadas, é preciso ponderar se essa transformação que estava ocorrendo, ou que se previa que ocorreria, com o advento do avanço tecnológico, a partir da primeira década do século XXI, de fato se consolidou do modo esperado. Efetivamente, essas mudanças alteraram as práticas profissionais dos bibliotecários? Os cursos de graduação em Biblioteconomia foram realmente

afetados a ponto de acompanharem o avanço tecnológico? As relações de trabalho realmente foram alteradas? O campo de atuação profissional foi ampliado na mesma proporção do desenvolvimento da tecnologia? A imagem profissional e social do bibliotecário sofreu alterações positivas ou negativas com essa nova situação? Estes questionamentos poderão balizar uma discussão que busque esclarecer o quão transformador foi, ou não, o impacto da mediação tecnológica nos bibliotecários, inclusive no que tange a sua educação formal.

Para colaborar na busca por respostas a esses questionamentos, recupera-se o relatório produzido pela International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA)27, de 2013, citado por Valentim, Almeida e Silva (2015, p. 6), em que foram apontadas

cinco tendências para a área da Informação:

Tendência 1: As tecnologias se expandirão, mas haverá limitação no que tange ao acesso à informação

• universo digital em constante expansão atribuirá alto valor a formação de competências e habilidades informacionais como, por exemplo, no que tange à leitura e ao manuseio de recursos eletrônicos/digitais.

• As pessoas que necessitam dessas competências e habilidades enfrentarão obstáculos para sua inclusão em distintas áreas e fazeres.

• Os novos modelos de negócios online influirão significativamente junto àqueles que possam acessar, apropriar e compartilhar a informação no futuro com efetividade.

Tendência 2: A educação online democratizará e modificará a aprendizagem global

• A rápida expansão global da informação e dos recursos educativos online tornarão mais abundantes as oportunidades de aprendizagem, uma vez que serão mais baratas e acessíveis.

• Terá maior valor a aprendizagem ao longo da vida, e um maior reconhecimento da educação não formal e informal.

Tendência 3: Os limites da privacidade e a proteção dos dados serão redefinidos

• Aumento de dados e informação que estão em poder dos governos e empresas sustentarão a elaboração de avançados perfis individuais. • Sofisticados métodos de monitoramento e filtragem de dados através das telecomunicações [mais fácil e mais barato] rastrearão pessoas.

• Esse contexto poderá trazer sérias consequências para a privacidade pessoal e a confiança da sociedade no ambiente eletrônico/digital.

Tendência 4: As sociedades hiperconectadas escutarão e empoderarão novas vozes e grupos

• Existem mais oportunidades para a ação coletiva no âmbito das sociedades hiperconectadas, pois propicia o surgimento de novas vozes e promove o crescimento de movimentos com um único objetivo, em detrimento dos tradicionais partidos políticos.

27 IFLA (2013). Riding the waves or caught in the tide? Navigating the evolving information environment. The Hague. 16p. (IFLA Trend Report). Recuperado em 18 novembro, 2014, de http://trends.ifla.org/insights-document.

• As iniciativas de governo aberto e acesso aos dados do setor público darão lugar a uma maior transparência e a serviços públicos centrados na cidadania.

Tendência 5: A economia global de informação se transformará por meio das novas tecnologias

• A proliferação de dispositivos móveis hiperconectados, sistemas de sensores, infraestrutura de rede, impressão tridimensional e tecnologias de tradução de idiomas vão transformar a economia global de informação. • Os modelos de negócios de diversas industrias experimentarão mudanças geradas por inovadores dispositivos que ajudarão as pessoas a continuar economicamente ativas no futuro, a partir de qualquer lugar (IFLA, 2013, tradução livre apud VALENTIM; ALMEIDA; SILVA, 2015, p. 6-7).

A primeira tendência gira em torno da mudança do enfoque físico da informação para o eletrônico/digital, o que exige, consequentemente, competências e habilidades próprias do profissional para lidarem com a informação de modo seguro e efetivo, bem como a preparação do usuário no sentido de propiciar o desenvolvimento de sua competência informacional (VALENTIM; ALMEIDA; SILVA, 2015).

A segunda tendência toca a questão do envolvimento do profissional na democratização da informação no que tange ao dilema que perpassa os direitos autorais (copyright x copyleft), isto é, o acesso aberto das publicações científicas para a formação de coleções e acervos, o desenvolvimento de softwares livres e, de outro lado, o direito do cidadão ao acesso à informação garantido por lei. Contudo, a democratização da informação por meio da educação online propiciaria o aprendizado ao longo da vida, ao reconhecer a educação não formal e informal (VALENTIM; ALMEIDA; SILVA, 2015).

A quarta tendência ainda remete à questão da democratização da informação no sentido de que o profissional da informação deverá ser capacitado para formular políticas públicas de acesso à informação e ter condições para disseminá-la não só nos sistemas formais, como também nas novas mídias, como as redes sociais.

A quinta tendência se relaciona aos novos formatos de acesso à informação propiciados pelos avanços tecnológicos nas telecomunicações, que propagaram o uso de “dispositivos informáticos portáteis, as interfaces por voz, tato e imagem e os sistemas integrados [...]. Dessa maneira, o profissional da informação deve oferecer produtos e serviços informacionais nesses novos modelos tecnológicos” (VALENTIM; ALMEIDA; SILVA, 2015, p. 7).

A terceira tendência ficou para ser explicitada por último, por talvez, resvalar em questões de caráter essencialmente ético. O avanço tecnológico propiciou a controversa

questão da vigilância eletrônica/virtual, que passou a ser uma constante na vida social. Bauman, em sua obra “Vigilância Líquida”, alertou sobre os riscos da contínua vigilância e do controle a que está submetida a sociedade atualmente, muitas vezes, inadvertidamente. Ancorado em seu coautor, David Lyon, apregoa que o Big Data28 tornou-se uma fonte inesgotável de vigilância líquida, pois todo e qualquer rastro de uma pessoa é possível de ser identificado e capturado no momento desejado. Os autores apresentam a vigilância como um estado que parece invisível a todos, inclusive no âmbito do consumo, como uma parte importante da rede neurálgica da Modernidade. A vigilância líquida, integrada na sociedade atual como um efeito colateral do progresso tecnológico, é realizada mediante técnicas digitais e de lógica estatística (algoritmos) para a qual os próprios vigiados contribuem tendo como primeira consequência a classificação social (BAUMAN; LYON, 2013). Desse modo, questões éticas emergem nesse ambiente em que tópicos como “privacidade” e “exposição” são destacados. Logo, o profissional da informação deve estar preparado para

[...] debater sobre as questões que regulam a Internet global, participando ativamente da formulação de políticas de informação e de normas nacionais que estabeleçam de modo consistente a proteção de dados científicos relevantes para o país, mas que por outro lado propicie o acesso a memória de conhecimento à sociedade (VALENTIM; ALMEIDA; SILVA, 2015, p. 7).

Para ilustrar esse embate ético, remete-se ao artigo publicado pela Revista The Nation29 em maio de 2015 intitulado “Bibliotecários versus a NSA30: sua biblioteca local está

na linha de frente contra a vigilância do governo” (tradução nossa).31 Versa sobre a

interessante resistência que alguns bibliotecários norte-americanos vêm empreendendo contra as agências do Governo dos Estados Unidos no que tange às violações de privacidade dos dados de usuários das bibliotecas. Em especial, foca a bibliotecária Alison Macrina, a qual disse que passou a se preocupar com a questão da privacidade de modo mais contundente após o caso Snowden.32 Para ela, na coleta de dados por agências de inteligência e

28 Utilizando a definição criada em 2001 pela Gartner, uma das principais empresas do mundo no ramo de pesquisas, consultorias, eventos e prospecções acerca do mercado de TI, Big Data são dados com maior variedade que chegam em volumes crescentes e com velocidade cada vez maior, exigindo novas formas de processamento de informações que permitam uma melhor percepção, tomada de decisões e automação de processos. Disponível em: <https://www.gartner.com/it-glossary/big-data/>. Acesso em: 15 jul. 2019.

29 Disponível em: <https://www.thenation.com/article/librarians-versus-nsa/>. Acesso em: 29 jun. 2019. 30 Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

31 Librarians Versus the NSA: Your local library is on the front lines against government surveillance. 32 Em 5 de junho de 2013, o The Guardian publicou o primeiro de uma série de relatórios impressionantes baseados nos documentos de Snowden: A Agência de Segurança Nacional (NSA) estava coletando os registros de ligações telefônicas feitas por milhões de clientes da Verizon diariamente para uma ordem previamente desconhecida do Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira. Coletar e armazenar os metadados dessas chamadas permite que a NSA “construa uma

corporações os bibliotecários não estavam tomando as medidas suficientes para proteger seus usuários. Em muitos casos, isso ocorria porque eles não possuem as habilidades técnicas para executar tal ação. É interessante observar como o artigo retrata a imagem da bibliotecária Alison Macrina (FIGURA 2):

Macrina, 30 anos, não é bibliotecária da sua avó. Ela tem uma ilustração caleidoscópica de um livro da Mother Goose tatuada em seu braço, ocasionalmente posa para selfies de batom vermelho e usa um pequeno pedaço de hardware chamado de símbolo de segurança em volta do pescoço como um pingente. Macrina vem trabalhando como bibliotecária pública por quase uma década, mas ela não está arquivando livros; ela está lutando contra o Big Brother (CARPENTER, 2015, online, tradução nossa).

Figura 2 – Capa da revista The Nation, com a representação da bibliotecária Alison Macrina

Fonte: The Nation, 2015. Disponível em: <https://www.thenation.com/article/librarians-versus-nsa/>. Acesso em: 29 jun. 2019.

visão abrangente de quem qualquer indivíduo contatou, como e quando, e possivelmente de onde, retrospectivamente”, relatou o jornalista Glenn Greenwald. O programa em si era motivo de alarme, mas a história maior e mais chocante foi como o governo justificou a coleta em massa desses dados pessoais: com uma parte do Patriot Act (Ato Patriota) conhecido como Seção 215 (CARPENTER, 2015). O Ato Patriota foi o Decreto assinado pelo presidente George W. Bush logo depois do 11 de Setembro de 2001, tendo sido prorrogado até 27 de julho de 2015. Em junho de 2015, várias provisões desta lei expiraram e então o Congresso norte-americano aprovou o USA Freedom Act, para substituir o Ato Patriota. Essa nova Lei trouxe diversas mudanças no que tange à manipulação e salvaguarda dos dados obtidos pela NSA.