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CAPÍTULO 5 – Caracterização sócio-ambiental

5.2. Visitas, diálogos e impressões

5.2.5. Visita ao Bairro Ribeirão

Durante o trabalho de campo de novembro de 2004, visitei o Bairro Ribeirão, município de Iporanga, que me foi apresentado pelo pesquisador Nélson Calil, mestrando pela USP. Herdeiro de uma fazenda com extensão aproximada de 600 alqueires, o Sr Nélson tem dado um rumo diferente ao uso que sua família, ao longo das gerações, fazia dessa propriedade que já serviu para extração de madeira e produção de calcário. Essa fazenda foi submetida, recentemente, a um processo que busca transformar a área total da propriedade em Reserva Particular do Patrimônio Nacional (RPPN). Localizada próxima à cidade de Iporanga, no Bairro Ribeirão, possui uma característica muito importante para a manutenção da biodiversidade local definida pela contigüidade ao PETAR.

De acordo com o Sr Nélson, que tem trabalhado com o Bairro Ribeirão como tema de sua dissertação de mestrado, o bairro em questão foi ocupado por negros oriundos de quilombos, embora não se constitua num quilombo propriamente dito. Apesar da proximidade com a cidade, alguns locais do Bairro Ribeirão parecem ter parado no tempo há uns duzentos anos, não por escolha de seus moradores, mas, certamente, devido à negligência da administração pública. Até o final da década de 90, não havia fornecimento de energia elétrica, o que inviabilizava o acesso às facilidades que o mundo moderno nos oferece por meio das linhas elétricas. Hoje em dia, as coisas estão mudando por lá e praticamente todos têm acesso ao abastecimento de energia elétrica. Junto com a eletricidade, a televisão chega aos domicílios mais pobres e abre uma pequena janela, ocupando um lugar privilegiado ao centro da sala, por onde é possível espiar o, até então, pouco conhecido “mundo lá de fora”.

O objetivo central de minha visita ao Bairro era conhecer Nhô Jeca, uma das pessoas mais tradicionais e muito popular regionalmente. Descendente direto dos primeiros quilombolas que chegaram ao Bairro Ribeirão, sua residência está situada dentro da propriedade do Sr Nélson. Logo pelo caminho, nós o avistamos à distância. Com seus 86 anos de idade, acostumado ao trabalho pesado, negava-se a ficar em casa sem fazer nada. Quando chegamos, saudou-nos com alegria e não vi, em nenhum momento, aquele sorriso desaparecer de seu rosto. Acabara de cortar um fecho pesado de lenha verde que ia tentando acomodar, com muita dificuldade, em seu ombro. Seu corpo já muito fragilizado pela idade

se apoiava no machado que se fazia de bengala e dava sustentação ao seu andar claudicante. Intervimos e oferecemos ajuda, a qual foi prontamente aceita. Seguimos por uma trilha acompanhados de nosso anfitrião que nos conduziu até a sua casa. Eu nunca tinha visto uma casa como aquela. Pareceu-me extremamente original. Toda feita em pau-a-pique, o chão irregular em terra batida, portas e janelas, as galinhas transitando livremente pelo interior da casa. Tudo parecia seguir os padrões mais ortodoxos da tradição local. Infelizmente, eu não estava com a minha câmera fotográfica, e assim, perdi a oportunidade de registrar uma das imagens mais marcantes que tive acesso durante este trabalho de campo.

Sentamos na sala sobre longos bancos de madeira justapostos à parede em pau-a-pique. Lá estavam também quatro dos seus vários filhos. Logo, a sua esposa apareceu para nos servir o café que acabara de preparar por ocasião de nossa visita. No outro canto da sala, estava a recém-chegada TV, ligada, causando o seu forte poder hipnótico sobre todos nós e disputando nossa atenção. Meu colega pesquisador interveio e me apresentou ao grupo. Falou brevemente sobre o meu projeto e me passou a palavra. Tentei explicar a natureza e o objetivo do projeto, mas não foi nada fácil traduzir este trabalho para um formato inteligível. Do ponto de vista técnico, todos falamos a mesma língua, mas se tratando de comunidades tradicionais, a coisa não é bem assim.

Um dos filhos de Nhô Jeca se mostrou mais interessado e a televisão foi perdendo o controle sobre a sua atenção. Interpelou-me várias vezes a fim de saber mais detalhes. O Sr Nélson já havia me falado sobre ele e, aos poucos, fui sabendo um pouco mais por ele mesmo. Silnei, 21, trabalha como monitor ambiental, mas não gosta do que faz. Precisa do dinheiro para ajudar a sua família. Assim como outros monitores, Silnei tem dificuldade e não se sente confortável com o aspecto técnico e científico do texto que ele precisa decorar, o que, conseqüentemente, resulta num serviço deficiente. Ao longo de nossa conversa me foi relatado um episódio muito interessante envolvendo esse rapaz. Certo dia, guiando um grupo de turistas pelas cavernas, quiseram saber mais sobre a vida de seu guia e se puseram a lhe fazer perguntas. Silnei contou sobre sua família, sua casa e seu modo de vida, despertando grande curiosidade no grupo de turistas que pediu para conhecer o lugar onde ele vivia. Silnei aceitou a empreitada, e o grupo de turistas teve a oportunidade de experimentar algo que ainda está indisponível no mercado turístico local. Silnei conhece

muito bem o ambiente onde vive e sabe falar com desprendimento sobre as coisas que são o seu dia-a-dia, que são ele mesmo e a sua própria vida. Por ter tido uma educação tradicional, dentro dos costumes locais, ele conhece as plantas, os animais e as trilhas que levam aos diferentes destinos constituintes de seu mundo. Ao passo que ia falando, os turistas ficavam, cada vez mais, encantados com aquele mundo, deixando na boca do rapaz o gosto delicioso de poder se orgulhar de sua própria identidade cultural. Foi um grande sucesso, mas em edição única.

O caso de Silnei, certamente, não é isolado e, provavelmente, integra um grupo numeroso daqueles que, simplesmente, se submeteram à proposta e ao programa do curso oferecido pela SEMA. Tendo pouca afinidade com o formato e conteúdo programático do curso, esses candidatos a monitores ambientais silenciaram diante da postura impositiva de seus proponentes. Com isso, distanciaram-se do universo em que as decisões são tomadas, os projetos são elaborados e as direções são traçadas. Eclipsados pelo destaque de alguns de seus colegas mais afeitos à noção ocidental de saber, permanecem calados e subjugados por um sistema estranho ao seu mundo. Enquanto isso, esse sistema vai se enraizando e se multiplicando por meio de projetos idealizados a partir de proposições de indivíduos que conquistaram lugares privilegiados na liderança de grupos e associações, o que se deve, justamente, a essa maior afinidade com o programa do curso, ou seja, com a noção de saber proveniente do universo científico.

Esse episódio reforça em nossa compreensão a idéia de que o sucesso de um projeto cujo objetivo a ser alcançado dependa da organização comunitária só será possível se for ouvida a voz daqueles que, até agora, permanecem calados sob a sombra das associações de monitores locais.

No caminho de volta para casa, seguindo pela mesma trilha, encontramos com João, o filho mais velho de Nhô Jeca. Diferente de seus irmãos, era falante e agitado. Acabara de voltar da cidade de São Paulo onde fora submetido a um tratamento médico. Estava fascinado com o mundo moderno. As luzes da grande cidade tinham enfeitiçado o rapaz que estava determinado em seus planos e falou-nos abertamente:

- Vou voltar para São Paulo. Não quero continuar vivendo como o meu pai sempre viveu