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Vkhutemas: o ensino das artes sob o signo da Revolução Russa

No documento Marcelina 4 (páginas 39-53)

* Neide Jallageas é pesquisadora e artista visual brasileira. Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Literatura Russa (FFLCH/USP), com apoio da Funda- ção de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Doutora em comunicação e semiótica (PUC/SP) com tese sobre o cinema de Andriêi Tarkóvski. Mestre em estética e comunicação do audiovisual (ECA/USP).

Neide Jallageas* Palavras-chave vanguardas russas; ensino da arte; Revolução Russa; Vkhutemas. Key words Russian avant- garde; art teaching; Russian Revolution; Vkhutemas**.

Resumo: A fim de contribuir para a discussão em torno do ensino da arte

hoje, apresenta-se a experiência pedagógica em artes da escola Vkhutemas e seu contexto histórico, na Rússia das primeiras décadas do século XX. Con- gregando um conjunto de ateliês com o status do que seria hoje um conjun- to de faculdades, em um sistema universitário, essa escola distinguiu-se por reunir os mais destacados artistas, das diversas correntes de arte russa do início do século XX, e dispor campos múltiplos do conhecimento, articula- dos entre si. O resultado permitiu a quebra dos paradigmas do ensino tradi- cional de artes, inserindo em seu projeto pedagógico disciplinas teóricas, no sentido de oferecer subsídios ao debate e à produção artística.

Abstract: In order to contribute for the discussion about art teaching in

contemporary society, we present here the teaching experience in arts at the Vkhutemas School and its historical context in Russia during the first decades of the twentieth century. Grouping a number of studios with the status of what would be today a set of colleges in a university system, this school has distinguished itself by aggregating the most prominent artists from the several currents of Russian art of the early twentieth century, putting together multiple fields of knowledge. The experience resulted in a rupture of the paradigms usually settled for the traditional teaching of arts and the introduction of theoretical subjects in its pedagogical project, with the aim of supporting the debate and artistic production.

** Tradução: Gilda Morassutti. Agradecimentos a Alvaro Machado pela leitura atenta e sugestões. Este texto é dedicado a Francine Jallageas, pelo mês de abril de 2010, marco em seu jovem caminho intelectual.

Este texto objetiva contribuir com o tema editorial da quarta edição da revista marcelina: o ensino da arte na contemporaneidade. Para tanto, coloca-se em pauta uma experiência pedagógica singular e praticamente invisível no ocidente: os Ateliês Superiores de Arte e Técnica, Vkhutemas1, escola de artes criada em Moscou, durante o processo de reestrutu-

ração do sistema artístico sob as diretrizes iniciais da Revolução Russa e extinta tão logo e na mesma medida em que o espírito revolucionário foi cedendo seu espaço para o espí- rito totalitário, entre os anos 1920 e 1930. Objetiva-se2, ainda, responder à questão, tam-

bém formulada pelos editores da marcelina: “Seria a arte uma profissão que se ensina e se aprende em escolas, uma vez superados os mitos do ‘gênio criador’ e da ‘inspiração?’”

Introduzir no debate contemporâneo os Vkhutemas, uma experiência pou- co discutida, que dista quase cem anos de nossa realidade, requer que se ofereça ao leitor algumas notas preliminares. A primeira é que essa escola (já) propunha que se pensasse, praticasse e se ensinasse procedimentos distintos das “Belas-Artes”, distantes da crença em “gênio criador” e ‘inspiração’?’’’. A segunda nota é que não se perca de vista que, quando o assunto é a produção artística das assim denominadas vanguardas russas3, o mercado de arte não fazia parte do vocabulário desses artistas. E, por fim, 1 Vkhutemas é o acrônimo russo de Visshiie Khudojiéstveno-Tekhnítcheskiie Masterskiie (Ateliês Superiores de Arte e Técnica).

2 Embora vários textos, de diversas procedências e pontos de vista, possam ser encontrados, a maioria em língua estran- geira, discutindo esparsamente e citando os Vkhutemas, o estudo mais denso e respeitado sobre essa escola russa continua sendo o do pesquisador russo Selim Khan-Magomedov, publicado pela primeira vez em russo e traduzido depois para o francês com o título de Vhtemas. Moscou 1920-1930 (2 vols., trad. Joëlle Aubert-Yong, Nikita Krivocheine e Jean-Claude Marcadé. Paris: Editions du Regard, 1990). No Brasil, um esforço louvável foi realizado pelo historiador Jair Diniz Mi- guel, que resultou na dissertação de mestrado pelo Departamento de História/FFLCH/USP, em 2006: Arte, ensino, utopia

e revolução. Os ateliês artísticos Vkhutemas/Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930).

3 Autores contemporâneos vêm chamando a atenção para a categoria “vanguarda” aplicada a esse conjunto de artistas russos do início do século XX. Jean-Claude Marcadé, por exemplo, afirma que essa nomenclatura raramente foi utilizada no período em que os artistas viveram e trabalharam, sendo que na Rússia os mesmos eram conhecidos como “artistas de esquerda”, ainda que essa posição não implicasse obrigatoriamente uma conotação política, mas sim para marcar sua diferença para com os artistas tradicionais (Marcadé, 1995, pp. 5-6). Susan Buck-Morss, por outro lado, esclarece que o termo “vanguardas russas” (Russian avant-garde) passou a ser aplicado sistematicamente após ter sido utilizado no Ocidente apenas no início da década de 1960, quando a primeira obra sobre o trabalho desses artistas, The Great Experiment: Russian Art 1863-1922, foi publicada por Camila Gray, na Inglaterra, sendo que a autora buscara — ao incluir também os russos sob a categoria vanguardas — uma forma de aproximar o conceito “vanguarda” dos artistas do modernismo europeu aos russos da mesma época (Buck-Morss, 2000, p. 303). John Bowlt, por sua vez, enfatiza a singularidade e a diversidade do fenômeno russo, tanto no que respeita à multiplicidade de correntes artísticas quanto das distintas formas de arte, preferindo conceituar as vanguardas russas como “o mosaico de personalidades e eventos que transformaram a face da arte, literatura e música russa nos anos de 1910 e 1920” (Bowlt, 1993). Devo o aprofundamento de minha pesquisa sobre essa distinção a Lisette Lagnado.

A arte é ilimitada e indefinida, é impossível ser aprendida: a única coisa possível é oferecer a quem precisa e quer estudar as artes, ateliês do Estado, livres e gratuitos. [...] Não se deve privilegiar uma corrente ou uma tendência particular na arte. Só se pode comparar duas diferentes correntes, deixando a cada uma delas a possibilidade de se desenvolver livremente.

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ao mesmo tempo em que a produção artística não objetivava a comercialização, o go- verno instalado na Rússia por ocasião da Revolução de Outubro (1917) via na arte um instrumento de caráter educativo.

A pedagogia dos Vkhutemas foi concebida por artistas, teóricos, técnicos e arqui- tetos, sob a tutela do Estado. As bases dessa pedagogia assentavam-se na crença de que era necessário buscar novas relações entre a arte e a sociedade emergente da Revolução. Ensino, portanto, era ação e ação para mudar, pois uma nova sociedade estava se formando. As fun- dações dessa pedagogia buscavam se equilibrar entre atitude estética e postura política. Breve genealogia – 1907-1919

Os Ateliês de Arte Vkhutemas foram criados para que se distinguissem como um novo tipo de escola de arte. Se, por um lado, a comercialização da arte não estava em relevo na pauta da sociedade russa no período de sua criação, a vontade política com expec- tativa na educação social, não apenas esteve a eles intimamente ligada, mas foi a causa de sua concepção, manutenção e extinção. Conhecer a genealogia dessa escola, a partir desse paradigma, é vital para a compreensão de sua proposta pedagógica.

Antes de mais nada, visitemos a Rússia do início do século XX, período no qual a Revolução de 1917 foi a culminância de um longo processo revolucionário, iniciado ainda no século XIX, quando um de seus mais ilustres participantes, Dostoi- évski4, tendo sido acusado de conspirar contra o regime imperial (tzarista), foi conde-

nado à morte. Dela escapou quando já estava com a venda nos olhos, diante do pelotão de fuzilamento. Não morreu fuzilado, mas o tzar o exilou bem longe dos centros de influência: na Sibéria.

Dostoiévski deixaria o planeta muitos anos depois, na mesma década em que nascia a fina flor da arte e do pensamento russo do início do século XX: Maliévitch, Tatlin, Maiakóvski, Ródtchenko, Popova, Stepánova, Gontcharova, Chklóvisk, Flori- ênski, Eisenstein e tantos outros5.

Ao ler o que boa parte dos historiadores da arte do Ocidente escrevem sobre esse sin- gular (e amplo) conjunto de artistas, tem-se a impressão de que todos estavam em uma mes- ma sintonia: a de proclamar o novo, escandalizar os burgueses e produzir formas geométricas, quando não abstratas (isso citando aqui apenas os artistas visuais)6. Embora parte dessas ações

4 Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, romancista russo (1821-1881).

5 Entre esses, nasceu também nessa década o líder bolchevique da Revolução Russa, Vladímir Ilítch Lênin (1870-1934). 6 Entre os autores que contestam essa postura equivocada dos historiadores do Ocidente, destaca-se aqui, além dos mencionados, a pesquisadora italiana Nicoletta Misler, que enfatiza: “Quando examinamos o papel de Floriênski no Vkhutemas, tido genericamente como o bastião da vanguarda e do construtivismo, percebemos que a cultura soviética dos anos 1920 não pode, e não deveria, ser reduzida esquematicamente a uma simples hegemonia do suprematismo e construtivismo. Por outro lado, a cultura soviética não pode ser vista como mera confrontação entre as várias vanguardas e […] o Realismo Socialista. A despeito da ditadura ideológica, a vida artística no início dos anos 1920 foi muito mais complexa que esta oposição poderia nos fazer acreditar, para ser reduzida às categorias simplistas que os historiadores têm

possa ser constatada em seus legados biográficos e artísticos, suas ações estavam longe de ser reduzidas a meras escandalizações, geometrizações ou abstrações. Suas aspirações, atitudes e realizações — quando as estudamos, consultando documentos advindos dos arquivos russos — demonstram uma diversidade dificilmente conciliável, e resta uma indagação que é a de querer saber como a história da arte conseguiu colocar todos esses artistas dentro de um dis- curso normalizador, a saber: o rótulo de “construtivistas”, quando não de “formalistas”.

E mais, se esses artistas revolucionaram e imprimiram uma marca indelével na história da arte, paradoxalmente, pouco vem à tona sobre suas ações nos territórios da produção teórica e do ensino da arte. Estas foram ações fundamentais para o legado artístico por eles deixado, que se relacionavam intrinsecamente com a produção de seus trabalhos artísticos. Ou seja, produção teórica, ensino da arte e produção artística eram ações indissociáveis e interdependentes, tanto quanto o posicionamento ético e político desses artistas em relação ao novo regime que se instalava.Observe-se que esse regime modelava-se através dos paradigmas da ala vitoriosa, em 1917 (que era a bolchevique), uma, entre as várias outras alas — de posições políticas e ideológicas distintas —, que, ainda assim, haviam se aliado aos bolcheviques, nesse período, por um objetivo comum:implantar o socialismo na Rússia. A imposição de uma ideologia dominante sobre a diversidade de pontos de vista explica, em parte, tantas prisões, mortes, exílios e dissidências dos artistas e intelectuais russos desse período7. Tais pe-

nalidades extremas não podem ser justificadas, afinal, pelo uso das formas geométri- cas, das abstrações ou pelo “formalismo”.

Parte dessas lacunas talvez encontre uma explicação no fato de a União So- viética8 ter barrado, por dezenas de anos, o acesso dos pesquisadores à produção — e

aos documentos descritivos dos processos que geraram as mesmas — dos artistas e teóricos russos do início do século XX9.

Entre o final do século XIX e o início do XX, alguns jovens artistas russos almejavam fazer um outro tipo de arte, diferente do que então imperava e era deno- minado realismo e naturalismo nas artes e, ainda, diferente do que era ensinado nas academias (escolas) de arte tradicionais. Com esse propósito, iniciaram suas experi- mentações artísticas e se autodenominavam “artistas de esquerda”, em confronto com aqueles que faziam o que era nomeado “pintura de cavalete”.

Os artistas russos viviam um contexto de grande ebulição política. E nem

estabelecido em suas análises desta cultura” (Misler, 1999, p. 120).

7 Remete-se à consulta de Roman Jakobson, linguista russo, amigo e contemporâneo de boa parte dos artistas em questão que, em seu livro A geração que esbanjou os seus poetas, aborda a morte “prematura” dos poetas, intelectuais e artistas russos, a partir do suicídio do poeta Vladímir Maiakóvski.

8 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, conhecida pelo acrônimo URSS (CCCP, Soiuz Soviétsk Sotsialistitcheskikh Respúblik) congregava um conjunto de países junto à Rússia, cujo centro de poder era Moscou. Embora a Revolução Rus- sa tenha ocorrido em 1917, a URSS passou a existir oficialmente apenas a partir de 1922 e foi extinta em 1991.

9 Sobre o impacto da abertura dos arquivos soviéticos na década de 1990, consulte-se Os escombros e o mito. A cultura e o

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todos posicionavam-se segundo a linha bolchevique. Até essa data, a esquerda política russa caracterizava-se por ser, também ela, extremamente diversificada, onde se desta- cavam os anarquistas, ideologia abraçada por vários artistas jovens.

A esquerda artística, que começara a atuar antes da revolução política propria- mente dita — enquanto movimento organizado —, tem um marco histórico que é o ano de 1907, quando David Burliuk10 organizou uma mostra que apresentava obras que hoje

são categorizadas como neoprimitivistas. Tentando romper os ditames da arte realista, o grupo de artistas em torno de Burliuk mostrava pinturas resultantes de pesquisas de ma- teriais, formas e conteúdos. Reportavam-se à cultura popular russa, à pintura religiosa, introduziam textos escritos nas telas, rompiam com a perspectiva linear e colavam ma- teriais diversos sobre a superfície do quadro. Nesse período também inicia-se um grande deslocamento geográfico e um trânsito cultural entre os artistas da Europa Ocidental e da Rússia entre seus respectivos países. Corresponde também à aquisição, por parte de colecionadores russos11, de grande volume de obras de arte do Ocidente, formando cole-

ções de artistas modernos com destaque para Matisse, Picasso e Cézanne.

Mas Burliuk não estava sozinho em sua empreitada inaugural. Os artistas movimentavam-se em linhas diversas, dando origem a diretrizes artísticas hoje conhe- cidas como cubo-futurismo, raionismo, cézannismo, realismo transmental, abstração, suprematismo, construtivismo, produtivismo e outras.

Os dois polos urbanos russos que concentravam essa arte emergente eram a então capital imperial São Petersburgo12 e Moscou, que também sediavam as

duas maiores escolas de artes então existentes: a Academia de Belas-Artes e a Esco- la de Arte Industrial do Barão Stieglitz, em São Petersburgo, e a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura e a Escola de Arte Industrial Strogánov, em Moscou. Tais centros de ensino artístico e industrial modelavam-se por uma estrutura tradi- cional, hierárquica, artesanal e, já no final do século XIX, não conseguiam mais atender às demandas da jovem arte emergente, nem mesmo habilitar as demandas pela produção industrial.

Porque aspirava a constituir-se em revolução permanente institucionalizada, a Revolução política propriamente dita buscará reorganizar todos os sistemas e institui- ções existentes de forma adequada aos seus objetivos. A partir de 1918, o sistema artísti- co também sofrerá reconfigurações, em vários estágios, no que diz respeito tanto à pro- dução artística quanto ao ensino da arte. Essa reorganização fará parte de um processo,

10 David Burliuk, pintor de origem ucraniana (1882-1967).

11 Esses colecionadores foram principalmente Ivan Morozov (1871-1921) e Serguei Chtchúkine (1854-1936), cujas cole- ções, com a estatização da propriedade privada, logo após a Revolução, foram apropriadas pelo Estado, a partir de 1917, e passaram a integrar museus estatais, principalmente a Galeria Nacional Tretiákov, em Moscou, e o Museu Estatal Russo de São Petersburgo.

12 Logo após a Revolução, São Petersburgo passou a se chamar Leningrado (em homenagem ao líder da revolução bol- chevique, Vladímir Ilítch Lênin), para retomar o nome de São Petersburgo depois da Pierestróika, em 1991.

pois, de início, as diretrizes político-organizacionais deveriam se adequar progressiva- mente à formação de um Estado estruturado, em tese, segundo os princípios marxistas que norteavam os líderes revolucionários. Além disso, a Rússia viu-se envolvida tanto pelos rescaldos da Primeira Grande Guerra quanto pelos quatro anos de Guerra Civil13,

que culminou com a vitória final dos bolcheviques. É diante dessa vitória que os artistas de esquerda (todos eles)14 terão de se posicionar, e não apenas os artistas realistas.

Uma nova arte para um novo mundo/ Educação e Arte

Sabe-se que os líderes da Revolução Russa não almejavam apenas remodelar o seu pró- prio território. Sua ambição era o mundo. Um mundo que, utopicamente, seria muito diferente do que fora até então.

Tendo sido os bolcheviques os vencedores e tendo tido o cuidado preventivo de eliminar aqueles que discordavam de seus pontos de vista (ainda que estes tenham sido seus aliados, como foi o caso dos anarquistas), os artistas, de todas as correntes, depararam-se, de uma hora para a outra, com a necessidade imperiosa de alinharem os seus próprios objetivos — até então individuais — aos de um partido político (e único, cabe ressaltar novamente).

Uma das formas encontradas pelos líderes vitoriosos para organizar e controlar os cidadãos russos foram os “Comissariados”, estruturados por áreas de atuação. Tais estruturas organizacionais equivaleriam ao que conhecemos hoje como Ministérios (da Saúde, da Educação etc.). Para reger as atividades de ensino e arte, foi criado o Comissa- riado do Povo para a Educação, Narkompros15, fruto da junção de vários outros órgãos

governamentais do Império que geriam tanto a Educação quanto a pasta das Artes. A

nova instituição tinha a atribuição de organizar e controlar novos sistemas educacionais

e artísticos que atendessem às demandas de uma nova sociedade. A concepção de todo um funcionamento que demandava mudanças radicais no tecido social exigia, poten- cialmente, uma mudança brutal no cotidiano de cada indivíduo, ou seja, carecia de uma mudança de hábitos à qual ele deveria aderir. Essa mudança implicava em uma siste- mática e efetiva educação da sociedade em transformação para que, de fato, mudasse, e mudasse radicalmente, segundo os princípios da ideologia bolchevique.

Lênin, o líder máximo, vislumbrava na ação dos artistas uma contribuição sem precedentes para educar — por meio de textos, imagens, sons e performances — a classe proletária e os camponeses, em nome dos quais (e com os quais), afinal, a revo-

13 A Guerra Civil, decorrente das ações de 1917, colocava em campos opostos tanto os partidários do império quanto aqueles que contra eles lutavam, ressalvando-se que, entre estes últimos, havia várias facções (de esquerda), com ideolo- gias diferentes, que passaram, de aliadas, a serem consideradas inimigas, pelo único partido, o dos bolcheviques. 14 François Albera defende que houve um “engajamento quase unânime dos artistas de vanguarda na Revolução”, segun- do ele, “animados por um projeto social” (Albera, 2002, p. 169). Susan Buck-Morss (2000), por outro lado, argumenta que os artistas não tinham outra alternativa, a não ser, é claro, deixar o país; como mais tarde efetivamente o fizeram Kandinski, Gabo e outros.

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lução havia sido feita. Lênin cuidou, pessoalmente, de pensar na estrutura do Narkom- pros de forma que essa instituição abarcasse, além das atividades de ensino, as de todas as artes. A direção desse comissariado coube a Anatoli Lunatchárski, um intelectual marxista e influente que fora companheiro de exílio de Lênin. O Narkompros contou com as mais diversas (e divergentes) linhas de pensamento sobre arte, cultura e educa- ção. Inicialmente, os anseios de liberdade para as artes, reivindicada pelos “artistas de esquerda”, seriam respeitados e mesmo estimulados pelo novo poder16 instituído que,

com essa diretriz, cria também os Ateliês Livres, Svomas17, em substituição às Acade-

mias tradicionais de Belas-Artes e às Escolas de Arte Industrial.

Dentro desse espírito, reporte-se à epígrafe deste texto, declarada em 1919, pelo pintor e artista gráfico David Steremberg18, então diretor da Seção de Artes Visu-

ais do Narkompros: “A arte é ilimitada e indefinida, é impossível ser aprendida: a única coisa possível é oferecer a quem precisa e quer estudar as artes, ateliês do Estado, livres

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