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A condenação, a pena e a teoria do crime

Por seu turno, a rejeição unânime pelos jurados do sétimo e último quesito – “a ré [não] estava no uso de todas as suas faculdades intelectuais” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 58, colchetes do autor) –, incluído no rol pela insistência da defesa, é algo não só controverso, mas passível de críticas jurídicas. Em nenhum momento, foi instaurado, pelo juiz, um incidente89 para verificar uma possível insanidade mental da ré. Embora o exame pericial, até mesmo hoje nas legislações e jurisprudências (Cf.

GANEM, 2021), não seja obrigatório ou automático, na narrativa, devido aos comportamentos, à frieza, à ausência de demonstração de sentimentos da acusada perante tão hediondo crime, devido às suas declarações conflitantes e alucinadas e, principalmente, diante da quesitação requerida pela defesa, seria no mínimo de bom senso o magistrado deferir o referido exame. Portanto, o juiz não só não requereu o exame de ofício, como também indeferiu o requerimento da defesa. Maria, sem nenhum exame pericial, foi considerada capaz e julgada como tal, afinal o tom moralizador e religioso do narrador não combinaria com uma ré com problemas mentais. Sendo provado que Maria tinha uma deficiência mental, talvez o leitor, em vez de ódio, sentisse pena da ré e a lição aos filhos não poderia ser aplicada.

Pela última vez, a ré é indagada se tem algo mais a dizer e ela novamente se cala.

campo de Santa Clara, devendo a ré caminhar para aquele patíbulo pela travessa das Mônicas, travessa das Freiras, e por junto das obras de Santa Engrácia; e mais, a condenou nas custas. (CASTELO BRANCO, 1991, p. 59).

O juiz obriga que Maria caminhe até chegar à forca, onde será executada, pelos mesmos lugares em que espalhou os pedaços do corpo de sua mãe. Há alguns dias, tinha andado por aquelas travessas de Lisboa, com os braços, as pernas e o tronco de sua mãe debaixo do seu capote e fora os espalhando. Agora, condenada, escoltada, teria de percorrer o mesmo caminho em direção à sua morte.

Já próximo do final, o narrador afirma, apesar das reações de horror e surpresa do auditório, que o julgamento ocorreu sem desordem. Parece que Camilo não nos fará mais nenhuma surpresa ou armadilha. Entretanto, despretensiosamente, informa a presença de uma pessoa importante na plateia: “Diz-se que durante os debates estivera na sala por várias vezes, a irmã da ré, chamada Matilde. (CASTELO BRANCO, 1991, p. 59). A irmã, aquela que fora colocada a trabalhar em casa de família, sacrificada com o trabalho mais pesado, enquanto Maria ficava em casa com sua mãe, aparece só no final do folheto, sem nenhuma fala ou reação e com o mesmo nome da mãe: Matilde.

Não sabemos se Matilde (a irmã), que teve sua mãe assassinada e esquartejada, demonstra compaixão ou ódio por Maria, se acredita nas diversas versões da acusada ou se a considera inocente. A narrativa não nos conta. O mistério também faz parte da obra camiliana.

O narrador moralista conclui o folheto reforçando uma das principais funções da pena: a chamada prevenção geral (analisada anteriormente): “oxalá que a condenação da ré possa obstar a que se repita um crime tão nefando” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 59). Defende que o castigo sofrido por Maria, a morte na forca, deve servir de exemplo para que crimes dessa natureza não sejam mais cometidos.

E foi para isso que o narrador “teve” de escrever a história.

Para encerrar este capítulo, faremos uma breve análise sobre a teoria do crime, de maneira especial do conceito analítico90 de crime (talvez o principal tema do Direito Penal no que se refere à sua estrutura).

90“Esse critério (conceito), também chamado de formal ou dogmático, se funda nos elementos que compõem a estrutura do crime” (MASSON, 2015, p. 197).

Crime, adotando a teoria bipartite, possui dois requisitos (ou elementos): fato típico91 e fato ilícito92. De acordo com a narrativa, não há nenhuma dúvida de que Maria José praticou um crime, pois realizou um fato típico (conduta: facada, causando um resultado naturalístico, a morte da sua mãe; há um nexo causal, pois foi a facada que provocou a morte; estando previsto em lei93 como crime, tipicidade) e um fato ilícito (contrário ao direito, pois não há nenhuma excludente de ilicitude, nenhuma causa que justifique sua atitude, ou seja, ela não agiu em legítima defesa ou em estado de necessidade, por exemplo). Portanto, se o fato praticado por Maria José é típico e ilícito, o crime ocorreu.

Agora nos afastando do crime, a pergunta que fica é: Maria José era culpável, tinha discernimento mental e poderia sofrer um juízo de reprovação do Estado, como aconteceu? Se sim, o castigo, a punição, a forca restou justa, segundo a legislação da época. Se não, se Maria José, conforme a tese do seu defensor, não tinha culpabilidade, era inimputável, não poderia haver punibilidade (pena) e a sanção correta seria uma medida de segurança, um tratamento, por estarmos diante de uma pessoa com deficiência mental.

Seria possível, analisando os comportamentos de Maria José, responder a essa pergunta? A punição imposta foi justa ou podemos contestar a pena analisando as ações, as omissões, antes e depois do crime? Veremos no capítulo a seguir.

91 “Fato típico, portanto, pode ser conceituado como ação ou omissão humana, antissocial que, norteada pelo princípio da intervenção mínima, consiste numa conduta produtora de um resultado que se subsume ao modelo de conduta proibida pelo Direito Penal, seja crime ou contravenção penal. Do seu conceito extraímos seus elementos: conduta, nexo causal, resultado e tipicidade.” (SANCHES, 2020, p. 239, grifo do autor).

92 “A ilicitude, também denominada de antijuridicidade, é o segundo substrato do conceito analítico de crime. Deve ser entendida como conduta típica não justificada, espelhando a relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico como um todo. [...] para existir o crime, deve ser demonstrado que uma conduta gerou um resultado com ajuste (formal e material) a um tipo penal (fato típico). Em seguida, é imprescindível verificar se essa violação típica não é permitida pelo nosso ordenamento jurídico: se permitida, não há ilicitude (desaparecendo o próprio crime); se não permitida, há ilicitude.” (SANCHES, 2020, p. 319, grifo do autor).

93“Qualquer pessoa, que matar outra, ou mandar matar, morra por ello morte natural” (PORTUGAL, 1870, p. 1184).

6. O PORQUÊ DO MATRICÍDIO SEM EXEMPLO