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Vemos os aspectos religiosos sendo mais uma vez ressaltados com primazia, mas precisamos lembrar que essa narrativa se passa em Lisboa no século XIX.

Portugal é um país de maioria católica e, no Oitocentos, a Igreja ainda influenciava grande parte da sociedade. Com isso, existia uma tendência de que os acontecimentos fossem interpretados como se constituíssem manifestações divinas, com a compreensão dos fenômenos só podendo ocorrer por meio da fé, acima da inteligência, lógica e ciência (FAVORETO, 2009).

Nesse cenário, a situação começa a sair do controle quando Maria, em meio a uma intensa discussão com sua mãe por causa de José, diz que não aturava mais as reclamações de Matilde e que, “se quer estar comigo, há de ver, ouvir e calar, que é a regra de bem viver, se não quiser a rua é larga, o mundo é grande” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 12-13). Ser expulsa de sua casa está além de todos os limites de Matilde, que não admite que a filha a afronte de maneira tão incisiva. Então, cheia de raiva, a viúva diz à filha: “se eu até aqui te tratei como mãe carinhosa, de hoje em diante hei de ser mãe como deve ser” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 13).

A relação entre mãe e filha estava rompida a partir daquele momento. Maria decide afrontar Matilde e assume todos os riscos e consequências para levar adiante sua paixão; nesse enredo, o prelúdio do crime vai se desenhando diante dos nossos olhos. Com as ameaças da genitora, Maria “riu-se de escárnio, e ao mesmo tempo estava com ódio a sua mãe” (CASTELO BRANCO, 1991, p. 14).

materna em sua vida, que passa a ser vista como um empecilho, pois sua obsessão era a concretização da sua vontade.

Romero et al. (2020, p. 57) recuperam um pensamento de Freud que corrobora essa ideia, explicando que, “se o objeto se torna fonte de sensações desagradáveis [...]. Sente-se a repulsão e odeia-se o objeto. Esse ódio pode intensificar-se ao ponto de uma inclinação agressiva contra o objeto, a intenção de destruí-lo”.

Podemos traçar aqui, por meio das lições de Piazzeta, o conflito entre sujeito e objeto na perspectiva da relação existente entre mãe e filha:

O primeiro objeto de amor e ódio do ser humano é justamente a sua mãe. Segundo Klein, e no mesmo sentido Rivière, o recém-nascido estabelece com sua mãe, especificamente com o seio materno que o nutre e lhe assegura a sobrevivência, uma poderosa relação de amor e ódio. No começo ele ama a mãe, pois ela satisfaz suas necessidades de alimento, alivia suas sensações de fome e lhe oferece o prazer sensual quando sua boca é estimulada pelo sugar do seio.

(PIAZZETA, 2020, p. 144).

Não há dúvida de que Maria José tinha amor por Matilde do Rosário. A filha demonstra para todos um afeto e, ao mesmo tempo, uma obediência em relação à sua mãe que causam até admiração. Mas em toda criação e educação, chega o momento do “não” e, neste caso, o “não” é direcionado ao objeto de paixão94.

Mas quando o bebê sente fome e seus desejos não são gratificados, prossegue a autora, ou quando sente dor ou desconforto físico, toda a situação subitamente se altera. O ódio e os sentimentos agressivos são despertados, e ele se vê dominado pelo impulso de destruir a pessoa mesma que é objeto de todos os seus desejos e que em sua mente está ligada a tudo o que ele experimenta – seja de bom ou de mau. (PIAZZETA, 2020, p. 144).

94“Em De la connaissance di dieu de soi-même, Boussuet refere que o ódio que o homem tem por determinado objeto só provém do amor que tem por outro. O desejo não é mais do que um amor por uma coisa que não possui, como a alegria é um amor que se refere àquilo que possui. A audácia é um amor que empreende o que há de mais difícil para possuir o objeto amado. A esperança é um amor que se envaidece de possuir esse objeto e o desespero é um amor desolado por se ver privado dele para sempre. A cólera é um amor irritado por alguém que lhe quer roubar o seu bem e que se esforça para defendê-lo; enfim, afastai o amor e acabaram-se as paixões; trazei o amor e todas elas renascem.”

(PIAZZETA, 2020, p. 133).

Aqui, podemos – de forma superficial e apenas com a intenção de tentar entender a mente de Maria José – pensar um pouco na ideia de Sigmund Freud sobre id, ego e superego (retomaremos o tema adiante para tratar da psicopatia). Essas três instâncias psíquicas talvez possam explicar (em parte, ao menos) os atos de Maria.

O id só busca satisfazer o desejo, só vai atrás do prazer, em um pensamento simplista, como se não houvesse amanhã; é uma espécie de subpersonalidade tarada, agressiva, egoísta e mimada, que vive brigando com as duas outras instâncias:

o superego e o ego. A primeira (superego) é repressora, um avesso do id, enquanto a segunda (ego) é conciliadora e tenta encaixar os desvarios do id nas exigências do mundo real (CARVALHO, 2020).

No nascimento e durante os primeiros meses de vida do indivíduo existe apenas a atuação do id. A criança de tenra idade não é socialmente civilizada ou dessexualizada. O sentido do erótico e do prazer proporcionado pelo toque corporal desencadeia naquele ser em formação uma intensa sensação de bem-estar. Age em busca única e exclusiva da satisfação imediata de suas necessidades. É autocentrada, egoísta, agressiva e dominadora. Com o avanço de seu crescimento e consequente maturação psíquica, auxiliados pelo discurso familiar de controle, domínio das emoções, recompensas e punições, começa a desenvolver o sentido do Eu, do ego, reconhecidamente fraco em sua vida psíquica. O id vai sendo, se assim pode-se dizer, “domado” pelas convenções e pelos papéis sociais, familiares e culturais, que permitem àquela pessoa a inserção saudável na vida em comunidade. (PIAZZETA, 2020, p. 47).

Será que o id de Maria não teria sido suficientemente controlado por sua mãe?

Um fato o narrador deixa claro: Maria foi a filha escolhida, enquanto sua irmã foi sacrificada. Maria ficou com sua mãe e sua irmã teve de trabalhar fora, na casa de outra família. Será que sua irmã, longe da família biológica, teve a educação, a disciplina, o controle do id, que Maria não teve? Ao mesmo tempo, será que sua irmã teve a liberdade que Maria nunca teve?

Assim, podemos pensar que o desejo (o id sem controle) e a paixão95 (que é um sentimento naturalmente descontrolado) de Maria José por José Maria se tornaram tão intensos que ela precisava cometer o assassinato de Matilde para poder

95 “A paixão é uma força terrível, e, mesmo quando nos faz desgraçados, enche maravilhosamente a nossa vida. Se deixasse de existir, em que marasmo e aborrecimento cairia o gênero humano!”

(PIAZZETA, 2020, p. 130).

libertar suas vontades, que ficaram tanto tempo represadas e engessadas pelos desejos da mãe, do pai e pelos dogmas da religião.

Como o narrador faz a invocação (na primeira e na terceira edições), desde a capa até o fim do seu folheto, “aos pais de família”, é necessário analisar o papel da família como fio condutor da narrativa. Quando um sujeito decide cometer um crime, várias questões podem estar envolvidas, inclusive a questão familiar.

Segundo Emerick e Rosso (2020), na família iniciam-se as relações que servirão de base e modelo para as outras; desse modo, ela é a influenciadora dos comportamentos dos sujeitos e o principal meio para o desenvolvimento humano.

Com isso, as interações praticadas entre os membros da família afetam a todos, inclusive no estabelecimento de limites e regras. Se pensarmos na família de Maria, conseguimos perceber que seus pais eram extremamente rígidos, pois ela apresentava uma rotina regrada com diversas funções laborais e exigências preestabelecidas, não existindo uma liderança compartilhada, na qual a sua individualidade fosse preservada, tampouco espaço para que expressasse seus desejos.

Para Loro (2010, p. 144), a família muitas vezes funciona como uma “Igreja Doméstica”, em que os filhos se tornam vítimas passivas da manipulação religiosa, tendo como objetivo impor a fé e introduzir todos no caminho cristão; assim, “muitos pais, preocupados com a formação dos filhos, optam por uma educação castradora ou opressora, semelhante a que tiveram no passado”.

Durante a leitura da narrativa de Camilo Castelo Branco, podemos observar uma vigilância permanente da mãe e do pai, mesmo morto, dirigida a Maria José, na qual a constante imposição de uma disciplina ligada ao controle da filha era absoluta.

Nessa relação de poder por meio de obrigações exacerbadas, constituía-se Maria como um sujeito obediente e útil a Matilde, a Agostinho e, supostamente, a Deus, situação em que a filha não conseguia ter uma subjetividade, pois permanecia submetida a normas, padrões de conduta e comportamentos impostos pela família.

Podemos pensar na relação de Maria e Matilde utilizando as reflexões de Bomfim (2010), segundo as quais o vínculo entre mãe e filha é descrito de maneira problemática desde Freud, retratado como uma ligação permeada pelos sentimentos de amor e ódio da filha para com a mãe durante o início da estruturação sexual da primeira. Segundo Santos e Radaelli,

Embora o momento de afastamento da mãe como primeiro objeto de amor seja superado pela menina, o ressentimento direcionado à figura materna não é completamente esquecido, visto que a mulher vivencia em alguns momentos da vida uma posição reivindicadora em relação à mãe. (SANTOS; RADAELLI, 2016, p. 383).

De acordo com Piazzeta, “o próprio corpo, ou o corpo do ente amado, sofre um violento ataque. É a forma encontrada para acabar com o dilema e libertar-se do outro [...], pela aniquilação do outro na própria vítima, o que configuraria o homicídio”

(PIAZZETA, 2020, p. 143). Ademais, para Santos e Radaelli (2016, 143), a mulher que fica presa na ligação inicial com a mãe sente-se responsável por esta e, por isso, não pode permitir que ela sofra, precisando satisfazer todos os seus desejos, mesmo que isso signifique renunciar aos seus, sentindo-se sufocada a todo momento, pois precisa reprimir suas vontades e manter-se conectada à sua mãe, como Maria fez até, possivelmente, não suportar mais.